terça-feira, 25 de novembro de 2014

Não pergunte obviedades ao Seu Lunga - Cordel

Cordel do poeta pernambucano Ismael Gaião.

SEU LUNGA - TOLERÂNCIA ZERO!

Eu vou falar de Seu Lunga
Um cabra muito sincero,
Que não tolera burrice
Nem gosta de lero-lero.
Tem sempre boas maneiras,
Mas se perguntam besteiras,
Sua tolerância é zero!

Ao entrar num restaurante
Logo depois de sentar,
Um garçom lhe perguntou:
O Senhor vai almoçar?
Lunga disse: não Senhor!
Chame o padre, por favor,
Vim aqui me confessar.

Lunga tava na parada
Com Renata perto dele.
Esse ônibus vai pra praia?
Ela perguntou a ele.
Ele, então, disse à mulher:
- Só se a Senhora tiver
Um biquini que dê nele!

Seu Lunga tava pescando
E alguém lhe perguntou:
- Você gosta de pescar?
Ele logo retrucou:
- Como você pode ver,
Eu vim pescar sem querer,
A polícia me obrigou.

Pagando contas no Banco
Lunga viveu um dilema
Pois com um talão nas mãos,
Ouviu de Pedro Jurema:
O Senhor vai usar cheque?
- Ele disse: não, moleque,
Vou escrever um poema.

Em sua sucataria
Alguém tava escolhendo,
- Por quanto o Senhor me dá,
Essa lata com remendo?
Lunga, sem pestanejar,
Disse: não posso lhe dar,
Porque eu estou vendendo.

E ainda irritado
A seu freguês respondeu:
Tudo que eu tenho aqui,
Eu vendo porque é meu.
Se o Senhor quiser ver,
Coisas sem ser pra vender
Vá visitar um museu.

Lunga foi comprar sapato
Na loja de Barnabé
E um rapaz bem gentil
Perguntou: é pra seu pé?
Ele disse: não esqueça,
Bote na minha cabeça,
Vou usar como boné.

Lunga carregava leite
Numa garrafa tampada
E um velho lhe perguntou:
Bebe leite, camarada?
Ele disse: bebo não!
Depois derramou no chão.
- Eu vou lavar a calçada.

Seu Lunga tava deitado
Na cama, sem se mexer.
E um amigo idiota
Perguntou, a lhe bater:
- O senhor está dormindo?
Lunga disse: tô fingindo,
E treinando pra morrer!

Seu Lunga foi a um banco
Com um cheque pra trocar
Um caixa muito imbecil
Achou de lhe perguntar:
O Senhor quer em dinheiro?
- Não quero não, companheiro,
Quero em bolas de bilhar.

Lunga olhou pro relógio
Na frente de Gabriela
Quando menos esperava,
Ouviu a pergunta dela:
- Lunga viu que horas são?
Ele disse: não, vi não,
Olhei pra ver a novela!

Seu Lunga comprava esporas
Para correr argolinha
E o vendedor idiota
Fez essa perguntazinha:
- É pra usar no cavalo?
- É não, eu uso no galo,
Monto e dou uma voltinha.

Seu Lunga tava pescando
Quando chegou Viriato
- Perguntando: aqui dá peixe?
Lunga falou: é boato!
No rio só dá tatu,
Paca, cutia e teju,
Peixe dá dentro do mato.

Lunga foi se consultar
Com um Doutor que era Crente
Esse logo perguntou:
- O Senhor está doente?
- Lunga disse: não Senhor,
Vim convidar o Doutor,
Para tomar aguardente.

Seu Lunga, com seu cachorro,
Saiu para caminhar
Um besta lhe perguntou:
É seu cão, vai passear?
Lunga sofreu um abalo,
Disse: não, é um cavalo,
Vou levar para montar.

Lunga trazia da feira,
Já em ponto de tratar,
Uma cabeça de porco,
Quando ouviu alguém falar:
- Vai levando pra comer?
Ele só fez responder:
- Vou levando pra criar!

Lunga foi à eletrônica
Com um som pra consertar
E ouviu um idiota
Sem demora, perguntar:
- O seu som está quebrado?
- Tá não, está estressado.
Eu trouxe pra passear.

Seu Lunga foi numa loja
Lá perto de Itaqui
- Tem veneno pra rato?
- Temos o melhor daqui.
Vai levá-lo? Está barato.
- Vou não, vou buscar o rato
Para vim comer aqui!

Seu Lunga tava bebendo,
Quando ouviu de Tião:
- Já que faltou energia,
Nós vamos fechar irmão!
Lunga falou: que desgraça!
Eu vim pra tomar cachaça,
Não foi tomar choque não!

Lunga tava em sua loja
Numa preguiça profunda
Quando escutou a pergunta
Vindo de Dona Raimunda:
- O Senhor tem meia-calça?
- Isso em você não realça,
Ou você, tem meia bunda?

Seu Lunga ia pescar
E um amigo encontrou
Depois de cumprimentá-lo
Seu amigo perguntou:
Lunga vai à pescaria?
Seu Lunga só disse: ia.
Pegou a vara e quebrou.

Jacó estava querendo
Apostar numa milhar
Vendo Lunga numa banca
Disse: agora vou jogar!
E foi gritando dali:
- Lunga, passa bicho aqui?
- Passa sim! Pode passar.

Seu Lunga sentia dor
Procurou Doutor Ramon
Que começou a consulta
Já perguntando em bom tom:
Seu Lunga, qual o seu plano?
Lunga disse: sem engano,
O meu plano é ficar bom!

Lunga tava em seu comércio
Despachando a Zé Lulu
Que depois de escolher
Fava e feijão guandu.
- Disse: vou levar fubá.
E o arroz como está?
Lunga respondeu: Tá cru!

Lunga com uma galinha
E a faca pra cortar,
Seu vizinho perguntou:
Oh! Seu Lunga, vai matar?
Com essa pergunta burra,
Disse: não, vou dar uma surra,
Logo depois vou soltar.

Lunga indo a um enterro
Encontrou Zeca Passivo
- Seu Lunga pra onde vai?
Ao enterro de Biu Ivo.
- E Seu Biu Ivo morreu?
- Não, isso é engano seu,
Vão enterrar ele vivo!

Lunga mostrou um relógio
Ao filho de Biu Romão
- Posso botar dentro d’água?
Perguntou o garotão.
Lunga disse sem demora:
- Relógio é pra ver a hora,
Não é sabonete, não!

Lunga fez uma viagem
Pra cidade de Belém
E quando voltou pra casa
Ouviu essa de alguém:
- Oh! Seu Lunga, já chegou?
- Eu não, você se enganou,
Chego semana que vem!

Lunga levou uma queda
De cima de seu balcão
- Quer tomar um pouco d’água?
Perguntou o seu irmão.
Lunga logo, respondeu:
Foi só uma queda, meu!
Eu não comi doce não!

Na porta do elevador
Esperando ele chegar
Seu Lunga escutou um besta
Pro seu lado perguntar:
- Vai subir nesse momento?
- Não, que meu apartamento,
Vai descer pra me pegar.

Se encontrar com Seu Lunga
Converse, mas com cuidado,
Pois ele pode ser grosso
Mesmo sendo educado.
Eu já fiz o meu papel
Escrevendo este cordel
Pra você ficar ligado!



Ismael Gaião da Costa, nasceu em Condado-PE, Zona da Mata Norte de Pernambuco, em 07 de maio de l961. Atualmente reside no Recife-PE.
Engenheiro Agrônomo, Mestre em Melhoramento Genético de Plantas, Funcionário Público Federal, lotado na UFRPE - Estação Experimental de Cana-de-açúcar de Carpina.
Publicou mais de 40 (quarenta) Cordéis e diversas poesias (sonetos, matutas, sociais).
É filiado à UNICORDEL - União dos Cordelistas de Pernambuco, na qual integra a equipe de Poetas Declamadores.
Assina a Coluna COLCHA DE RETALHOS, no JORNAL DA BESTA FUBANA - uma gazeta da bixiga lixa (Blog), (www.luizberto.com), publicando poesias, prosas e contos, rotineiramente.
Ganhador da 4ª RECITATA - 2009 (concurso de poesia declamada) da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, com nota 10 (dez) no Júri Popular, declamando a poesia MENINO DE RUA.
Lançou o CD de Poesias Declamadas, "CAUSOS E CORDÉIS", em parceria com o Poeta Felipe Júnior, em abril de 2010, na UFRPE.
Publicou o seu primeiro livro: "UMA COLCHA - Cem Retalhos", em março de 2011, pela CEPE - Companhia Editora de Pernambuco, do Governo do Estado.
Realiza o Show "Estandi-upi de Poesia Matuta", em parceria com o poeta Felipe Júnior e o Show "Tripé da Rima", com a poetisa Susana Morais e o poeta Felipe Júnior.


Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir e executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A desbiografia oficial de Manoel de Barros - Documentário

Do blog OutroCine - Mostra permanente de cinema

Só Dez Por Cento é Mentira
90% do que escrevo é invenção. Manoel de Barros. Foto Divulgação
Lamentavelmente faleceu nesta quinta-feira, 13 de novembro de 2014, o poeta Manoel de Barros. Em sua homenagem posto o documentário Só Dez Por Cento é Mentira - A desbiografia oficial de Manuel de Barros, dirigido por Pedro Cezar. Infelizmente ainda não assisti, então o texto abaixo descrevendo o longa é do sítio oficial do filme e se manterá o conteúdo original que não apresenta o fato que o poeta faleceu hoje.


Só Dez Por Cento é Mentira é um original mergulho cinematográfico na biografia inventada e nos versos fantásticos do poeta sulmatogrossense Manoel de Barros.
Alternando sequências de entrevistas inéditas do escritor, versos de sua obra e depoimentos de “leitores contagiados” por sua literatura o filme constrói um painel revelador da linguagem do poeta, considerado o mais inovador em língua portuguesa.

Só Dez Por Cento é Mentira ultrapassa as fronteiras convencionais do registro documental. Utiliza uma linguagem visual inventiva, emprega dramaturgia, cria recursos ficcionais e propõe representações gráficas alusivas ao universo extraordinário do poeta.

Procurando resignificar às “desimportâncias” biográficas e à personalidade “escalena” de Manoel de Barros o diretor Pedro Cezar, responsável pelo roteiro e pela narração, pontua o filme com momentos de breves testemunhos ao fundo, como fizera em seu primeiro longa metragem, Fabio Fabuloso. Narrado na maior parte das vezes em tom pessoal o filme busca, sobretudo, “uma voz que aproxime-se da simplicidade e da afetividade do personagem e que se afaste da soberba e da pretensão de uma análise teórica sobre poesia no idioleto manoelês”.

Manoel de Barros tem 93 anos, cerca de 20 livros publicados e vive atualmente em Campo Grande. Consagrado por diversos prêmios literários, é atualmente o escritor brasileiro que mais vende no gênero poesia.

Só Dez Por Cento é Mentira ganhou os prêmios de melhor documentário longa-metragem do II Festival Paulínia de Cinema 2009 e os prêmios de melhor direção de longa-metragem documentário e melhor filme documentário longametragem do V Fest Cine Goiânia 2009. (Fonte: http://www.sodez.com.br)

Só Dez Por Cento é Mentira

Sinopse
Só Dez Por Cento é Mentira é um original mergulho cinematográfico na biografia inventada e nos versos fantásticos do poeta sulmatogrossense Manoel de Barros.

Gênero Documentário
Diretor Pedro Cezar
Depoimentos Manoel de Barros, Bianca Ramoneda, Joel Pizzini, Abílio de Barros, Palmiro, Viviane Mosé, Danilinho, Fausto Wolff, Stella Barros, Martha Barros, João de Barros, Elisa Lucinda, Adriana Falcão, Paulo Gianini, Jaime Leibovicht e Salim Ramos Hassan
Ano 2008
Duração 82 min
Cor Colorido
País Brasil


Mais filmes em OutroCine

Poemas de Manoel de Barros

Poemas de Manoel de Barros do livro Manoel de Barros - Poesia Completa.


ODE VINGATIVA

Ela me encontrará pacífico, desvendável
Vendável, venal e de automóvel.
Ela me encontrará grave, sem mistérios, duro
Sério, claro como o sol sobre o muro.

Ela me encontrará bruto, burguês, imoral,
Capaz de defendê-la, de ofendê-la e perdoá-la;
Capaz de morrer por ela (ou então de matá-la)
Sem deixar bilhete literário no jornal.

Ela me encontrará sadio, apolítico, antiapocalíptico
Anticristão e, talvez, campeão de xadrez.
Ela me encontrará forte, primitivo, animal
Como planta, cavalo, como água mineral.

-----

O MORTO

I

A chuva lavou
As pessoas do morto
E lavou o morto
Com a sua fisionomia
De torto
E com seus pés de morto
Que arrastava um rio seco
E suas mãos de morto
Onde se dependurou
Insistente, um gesto oco.
À noite enterrou-se
O homem
Na raiz de um muro
Com sua roupa no corpo.
E a chuva regou no horto
Desse vitorioso
Homem morto
Enormes violetas
E uns caramujos férteis…

-----

O MORTO

II

Veja esse morto como esgotou um por um seus segredos.
Sentado como um doutor
Veja que respeito nutre pelo silêncio…
Que morto!
Um piano dormindo no fundo de um poço
Não é mais cômodo do que um homem morto num porto.
Veja que comodidade.
Ele não usará seus dedos secos nunca mais para pegar em
moças…
Que morto!

-----

ZONA HERMÉTICA

De repente, intrometem-se uns nacos de sonhos;
Uma remembrança de mil novecentos e onze;
Um rosto de moça cuspido no capim de borco;
Um cheiro de magnólias secas. O poeta
Procura compor esse inconsútil jorro;
Arrumá-lo num poema; e o faz. E ao cabo
Reluz com a sua obra. Que aconteceu? Isto:
O homem não se desvendou, nem foi atingido:
Na zona onde repousa em limos
Aquele rosto cuspido e aquele
Seco perfume de magnólias,
Fez-se um silêncio branco… E aquele
Que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será marcado. Nunca será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.

-----

ENCONTRO DE PEDRO COM O NOJO

A rosa reteve Pedro. E a mão reteve a música como
paisagem de água na retina.
Era noite no bairro do Flamengo. As pensões de estudantes
dormiam nas transversais.
Pedro mergulhado em trevas, no quarto, pensa no
rouxinol e na bomba atômica.
As coisas mais importantes lhe aconteciam no escuro,
como a surpresa de uma flor desabrochada à noite.
Pedro recebe uma brisa no rosto e se olha, inundado de
solidão. Se chorasse poderia dormir depois. Prefere andar.
Pedro carrega a beleza como um prédio em ruínas. Desce
as escadas e ganha a rua.
Pedro anda tendo temores esquisitos. Por exemplo: que
desapareçam os fracos da face da terra e restem apenas
pessoas blindadas de sol.
Teme que desapareçam as criaturas roladas dos abismos de
Deus, com seus andrajos, com as suas cicatrizes.
Pensou em plantar uma árvore. Em pensamento viu-se
desmembrado, seu corpo espalhado nos pedaços de um
espelho.
Entrou numa pequena rua. Viu pássaros roubando suicidas.
Meninos carregando escadas. Respirou um odor de mofo e
rosas velhas.
Estava bem longe agora de seu quarto pobre. Seu paletó
estaria dependurado no cabide. Esmeralda, a mulata, se
surpreenderia de não encontrá-lo àquela hora.
Pedro começa a esfregar os olhos para espantar Esmeralda;
mas ela vinha de flancos nua rolar na aresta dos desejos.
Vinha de chapéu de breu e sonos… Distraiu-se afinal vendo
os azulejos roídos pelos peixes do Ministério da Educação.
Pedro ficou parado. Depois entrou no Frege, atraído por
um samba. Viu lá dentro um negro sentado com uma
clarineta fincada no rosto!
O negro atropelava as pessoas com as suas queixas que
escorriam pelas ruas como água. Pedro foi saqueado pela
angústia. Cuspiu e retirou-se.
No largo, entre pássaros, acalmou-se. Uma funda sensação
de pertencer às coisas mudas, como a folha que pertence à
árvore, invadiu-o.
Doce pélago! Pedro saiu leve para junto do mar. Coral e flor
de caos ia colher — entre baixios sangrentos.
Seu era o mundo. Dormiu entre pedras. O dia amanheceu
em suas mãos.
Pedro entregou-se ao dia, como ao seu musgo se entrega o
verde.
Pureza de ruínas nos olhos de Pedro! Estava sujo e coberto
de lírios.
Às doze horas Pedro regressou ao quarto. Debaixo da
escada um homem dormia como um peixe: a boca
descampada úmida e serena. Subiu.
Pedro deitou-se, pensando… A inércia me devora, enraízase
em meu corpo, como líquenes na pedra — se fico deitado.
Sentia fluir de seus ossos a inércia e brotar de seus dedos,
como cardos, o nojo.
Preciso caminhar. Pedro se levanta e vai à janela. Lá fora,
bem rente ao muro encardido, uma pereira florida…
Pedro quer nascer do chão. Pedro acha que precisa florir até
a altura de uma janela. Oferecer-se ao luar… e…
Ó propício frio das sombras! Entra Esmeralda autêntica
com sol nas carnes e nas palavras. Pedro retorce, quebra
Esmeralda nos braços, baba-a toda e a engole.
Agora Pedro vai jiboiar nas ruas de novo. Pedro é louco.
Arrasta-se pelos becos com a sua porcaria na alma.
Engole sua anulação como água. O nojo lhe cresce como
um braço podre, mirrado. Um braço podre saindo das
costas…
Pedro engole a maçã do caos. Vai trôpego deitar-se nas
pedras. Esmeralda tritura-o agora.
Tudo que há de noturno está entranhado nas roupas de
Pedro. Bebe goles de treva. Liberdade que se evola de ti, no
escuro, Pedro! Não percebe.
Cogumelos brotavam de seu ventre, e ocasos. Calangos
vinham lamber os seus pés e mascar suas roupas os bois.
Pedro se aproximara das coisas. Para dormir com elas.
Pedro deitou-se entre objetos. A terra comia seu abdômen.
A terra cheia de poros, fermentada de raízes, rosas podres,
bichos corrompidos, penas de pássaros, folhas e pedras — o
atraíam.
Pedro era um barro ofegante. Como um fruto peco, deixou
sua boca no chão, imóvel, aberta.
Tinha de recostá-la na terra e haurir, das raízes
intumescidas, seiva.
Pedro sabia: todo aquele que não bebe água no solo, secará
como cana cortada no pé. Ficou deitado.
Pedro estava só. Deixava-se completamente às coisas,
recebendo suas emanações físicas.
Pedro se encostava nas coisas, afagava-as como se elas
fossem criaturas íntimas. Pedro era reconstruído.
Agora Pedro ressurge. Vem botando o pescoço para o sol.
Despegando-se da escuridão, pesadamente, como um bêbado
gordo, e aos pedaços, estraçalhado…
Pedro vem tateando na luz, subindo nas bordas do poço,
soltando de sua casca o moliço… Deixa pedaços dele no
escuro.
Pedro entra em seu quarto. Está perfeito e pobre.
Poderemos sequer fazer uma ideia de que resultará do
encontro de um homem com o nojo?
Agora Pedro está dormindo.

Morre, aos 97 anos, o poeta Manoel de Barros

Poeta, escritor Manoel de Barros
MANOEL DE BARROS - Primeiros poemas aos 13 anos
O poeta Manoel de Barros morreu hoje (13), em Campo Grande. Considerado um dos maiores autores da língua portuguesa, ele estava internado desde o último dia 24, no Hospital Proncor, da capital sul-mato-grossense, devido a uma obstrução intestinal. Segundo a assessoria do hospital, o poeta faleceu às 8h05, devido à falência múltipla de órgãos.

Conhecido pela linguagem coloquial – à qual chamava de idioleto manoelês archaico - e por buscar inspiração nos temas mais simples e banais, Barros dizia ser possível resumir sua trajetória de vida em poucas linhas. “Nasci em Cuiabá [à época, 1916, dezembro. Me criei no Pantanal de Corumbá [MS]. Só dei trabalho e angústias pra meus pais. Morei de mendigo e pária em todos os lugares da Bolívia e do Peru. Morei nos lugares mais decadentes por gosto de imitar os lagartos e as pedras. Publiquei dez livros até hoje. Não acredito em nenhum. Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo. Sou fazendeiro e criador de gado. Não fui pra sarjeta porque herdei. Gosto de ler e de ouvir música - especialmente Brahms. Estou na categoria de sofrer do moral, porque só faço poesia", escreveu o autor.

Barros começou a esboçar seus primeiros poemas aos 13 anos de idade. Seu primeiro livro, intitulado Poemas, foi publicado em 1937, quando o autor tinha 21 anos. Pouco afeito à política partidária, chegou a integrar o Partido Comunista Brasileiro, mas por pouco tempo. Desde a década de 1950, conciliava a literatura com a gestão da fazenda que herdou dos pais.

Perfeccionista, conquistou os prêmios literários Jabuti (1989 e 2002); Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) (2004); Nestlé (1997 e 2006); Alfonso Guimarães da Biblioteca Nacional (1996) e Nacional de Literatura, concedido pelo Ministério da Cultura ao conjunto de sua obra, em 1998. Em 2000, foi agraciado com o Prêmio Academia Brasileira de Letras, pelo livro Exercício de Ser Criança.

Os governos de Mato Grosso – onde o poeta nasceu, e do Mato Grosso do Sul – onde Barros vivia, decretaram luto oficial de três dias. Em nota, o governador sul-mato-grossense, André Puccinelli, diz que a obra de Barros divulgou as belezas e as potencialidades do estado, “enriquecendo assim, a história da literatura e a cultura do local que ele escolheu para viver ao lado de sua esposa.”

Também em nota, o Ministério da Cultura lamentou a morte do poeta e manifestou solidariedade aos parentes, amigos e leitores de Barros. “Simples, de poesia delicada e repleta de seu imaginário pantaneiro, Manoel de Barros jamais será esquecido – ao contrário do que dizem estes seus versos: "Quando o mundo abandonar o meu olho. Quando o meu olho furado de beleza for esquecido pelo mundo. Que hei de fazer.”

Nas redes sociais, o diretor da Fundação Manoel de Barros, Marcos Henrique Marques, comentou que toda a equipe da instituição está triste, mas continuará a honrar e divulgar a obra do poeta. “O homem Manoel de Barros foi finito como todos nós, mas o poeta e suas obras – pautadas em seu belo sorriso, simplicidade, amor e criatividade, vão permanecer para sempre, gerações após gerações”.

Barros costumava brincar com a importância da poesia: “Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia”. Trechos de seus poemas são frequentemente citados pela perspicácia e bom humor. Desde que foi internado, dois versos, em particular, estão sendo bastante citados na mídia e em redes sociais: “Não preciso do fim para chegar” e “Do lugar onde estou já fui embora”, ambos da obra Livro Sobre Nada, de 1996.

Fonte: EBC 

Todo o conteúdo da EBC está publicado sob a Licença Creative Commons Atribuição 3.0 Brasil exceto quando especificado em contrário e nos conteúdos replicados de outras fontes.


Leia Também
Poemas de Manoel de Barros