Crônica do jornalista e escritor Xico Sá, retirada de seu blogue oficial, O Carapuceiro. Neste texto, amparado em depoimentos de pessoas simples do sertão, ele tece uma critica escrachada ao padrão anoréxico imposto pelo mundo da moda, e difundido despudoradamente pela mídia, como sendo exemplo de beleza. Xico é colunista do jornal Folha de São de Paulo e das revistas Trip e TPM, ao lado da banda Mundo Livre S/A teve papel relevante no movimento Manguebeat, é autor do livro Divina Comédia da Fama? Purgatório, Paraíso e Inferno de Quem Sonha Ser uma Celebridade (Editora Objetiva, 2004).
SEM CHANCE, GI!
Xico Sá
Gisele Bündchen não acha marido por aqui. Sim, amigo, em alguns lugares do Brasil, a dita über mega super modelo não arrumaria nem para o sal, como bodejam as gentes antigas do interiorzão.
Mostro a foto da modelo na capa da revista, o caboclo entorta os beiços, silêncio no deserto, fecha um pouco os zolhos gastos pelo solzão das esperas, e economiza palavra e saliva: “Presta no amolegamento não, dotô, pegar adonde eu vô?”.
Amaro, 44, balbucia, agora mirando com um só olho, como se fosse dá um tiro de espingarda soca-soca de matar nambus, preás, codornizes e outras misturas e marrecos: “Tão graciosa calunga e passando necessidade!”
Pense na viagem!
No terreiro de casa, passa o rio São Francisco, meio acabrunhado depois da construção da vizinha hidrelétrica de Xingó. No quintal, tem a grota de Angicos, onde Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram chacinados no ano-calibre de 38, 1938, sete cabalísticas décadas atrás.
No cardápio, dona Gilda Nunes, 58, mãe de 12 criaturas, transforma a memória de necessidades e secas brabas em gastronomia de primeira, coisa fina mesmo. Da cabeça-de-frade, aquele cacto redondinho com o cocuruto vermelho, faz um doce de lamber os beiços; do talo da urtiga faz uma salada para acompanhar o surubim, peixe que já escasseia no velho Chico cansado de tretas. Do facheiro, também nascida na teimosa flora semi-árida, sai uma geléia de matar de inveja o D.O.M. e o Fasano, para citar dois dos mais premiados e metidos restaurantes paulistas.
“A gente tem que aprender a tirar desse deserto tudo que é sustança”, dá o mote-exemplo. “E isso vem de longe, eu já aprendi com a minha mãe, que aprendeu com a dela, que aprendeu mais atrás ainda e as minhas filhas já fazem tudo melhor do que eu.”
Luíza, novinha cheirando a leite, é uma dessas meninas. Faca amolada, tira os espinhos dos cactos com a habilidade de um japonês cortando peixe para fazer sushis. Um mar de água, o cacto desmancha-se na bacia. “Muita gente já matou a sede, em tempo ruim de verdade, com essas plantas”, repete a narrativa que ouviu dos mais velhos. “Os bodes tiram os espinhos espezinhando a cabeça-de-frade, depois enchem o bucho, felizes, Deus sabe o que faz.”
O doce do cacto é de botar abaixo qualquer regime ou cuidado de mulher com a silhueta. Lembra doce de mamão verde, mas é muito melhor mesmo. Embora algumas mais jovens já sigam os padrões estéticos importados na parabólica, sertanejo que é sertanejo aprecia mesmo é uma moça roliça, cheinha. A Gisele, repete Amaro, teria sérias dificuldades para arrumar marido na nação semi-árida.
Macho considerado também é o que apresenta sinais de fartura para encobrir o esqueleto. Homem fornido, redondo na cintura e nas bochechas, barriga que dá o ritmo em qualquer forró. “Quando tu balança dá um nó na minha pança”, como na lição gonzagueana.
“Hoje em dia, na capital, tem essa moda de graveto, coisa sequinha, só o osso, as moças parecem aquelas vaquinhas da seca, andam tudo desconjuntadas, pernas destrambelhadas, que diabo de tempo é esse?”, pergunta dona Gilda. “Tem moça que é só o fiapinho de gente. E moça rica, com condição de comer direitinho, com bufunfa, dinheiro.”
De certa forma, o pendor pelos mais cheinhos e cheinhas, sinais de bonança, não deixa de ser uma vingança estética contra a memória da fome, sertão dos flagelos. A busca da fartura até nas carnes de casamentos e pecados, cercas tantas do amor.
Mas no restaurante familiar de dona Gilda, de nome Angicos, batismo que nem carece de placa, as moças sequinhas das metrópoles escapariam com peixes e saladas da caatinga.
“Mas aviso logo: comer pouco aqui é uma desfeita”, diz. “Gosto de quem come como se o mundo fosse acabar logo um tempinho depois.” Para a sobremesa, além dos doces, redes estendidas debaixo de mangueiras garantem uma sesta de rei de España.
Crônica de uma viagem inesquecível pela nação semi-árida, que me rendeu “Nova Geografia da Fome” (ed.Tempo d´Imagem), homenagem a Josué de Castro, gênio da raça, cujo centenário de nascimento acontece também neste ano de 2008, salve, salve!
Fonte: OCarapuceiro