quarta-feira, 25 de abril de 2007

Novo trabalho de Tom Zé tenta conectá-lo aos jovens

Tom Zé em alta potência

por Ricardo Vespucci
ilustração: Osvalter

Tom Zé partiu de três princípios para fazer, ou construir, seu novo CD, Danç-Êh-Sá, lançado no fim do ano. Os três princípios estão logo no início do encarte. O primeiro, uma pesquisa da MTV, de 2005, cujos dados revelam uma juventude consumista, hedonista, sem um pingo sequer de solidariedade, nem de responsabilidade social. O segundo, uma frase dita por Chico Buarque em entrevista, também em 2005: “A canção (música e letra) acabou”. Terceiro, um artigo escrito em 2004 pelo maestro Júlio Medaglia na revista Concerto sobre a potência do som hoje em dia instalado nos carros, lamentando que a criação musical não tenha acompanhado com “novos conteúdos uma revolução técnica gigantesca que levou o raciocínio sonoro a um novo século”.

Os resultados da pesquisa MTV sacudiram o sempre alerta lado político de Tom Zé. Ele sentiu que as respostas dos jovens traduziam um verdadeiro curto-circuito na comunicação entre o mundo e eles e, assim, representavam “um grito de socorro na cara dos formadores de opinião”. Então, ele próprio um formador de opinião, sentiu a necessidade de adotar uma linguagem que o aproximasse daquela grande turma de “desinteressados” e, ao mesmo tempo, lhes transmitisse alguma cultura, no caso, a informação de que fazem parte de uma “nação negra”. O CD, a propósito, tem o subtítulo Dança dos Herdeiros do Sacrifício (as primeiras sílabas dessas palavras compõem o título principal) e cada uma das sete faixas faz referência a revoltas dos negros ao longo da história do Brasil.

Aceitando sem restrição o descompasso evidenciado pelo maestro Medaglia, Tom Zé, porém, nunca acreditou na frase de Chico Buarque (e talvez nem Chico acredite, já que está hoje na praça com um CD inteiro de letras e músicas, ou seja, canções). De todo modo, assumiu a “sugestão” de Chico e partiu para o desafio de uma obra (quase) sem palavras e de som pesado. Era ponte que imaginava poder ligá-lo aos jovens.

Dizem os que acompanharam de perto o trabalho que Tom Zé penou para realizá-lo. Inúmeras vezes fez e desmanchou tudo, refez e voltou a desmanchar, o que lhe valeu noites insones ou o despertar em sobressalto e desespero. Era muita insegurança diante de uma linguagem musical nada familiar.

Ouvir o disco pronto dá mesmo idéia da dificuldade, tal é a miscelânea de sons, que, no entanto, está longe de ser caótica. Ao contrário, é uma miscelânea minuciosamente organizada. Um trabalho cerebral, da concepção à realização. E muito bonito.

No lugar de letras, murmúrios de uma ou mais vozes, gemidos, latidos e chiados, poucas palavras, em geral interjeições, onomatopéias. Só se compreende “uai-uai” na composição intitulada Uai-Uai. Na faixa Atchim, ouve-se um ritmado “a-a-a-a-atchim!” na primeira parte e “ô-ô-ô-atchim/ ô-ô-ô-atchim” cantado na segunda. “Cara-caiá, cara-caiá” e uma “conversa” entre som vocal e instrumento musical em Cara-Cuá. Fungadas que lembram sexo em Acum-Mahá. Só com a pronúncia de vogais são cantados alguns coros espalhados pelas faixas. Está aí, de acordo com Tom Zé, uma espécie de protolíngua, como a ancestral experimentação livre de vogais e consoantes que antecedeu a formação das línguas.

Os instrumentos musicais – entre outros, sanfona, cavaco, baixo, harpa, teclados, mais programação eletrônica e percussão variada – executam trechos melódicos, curtos trechos apenas, melodias fragmentárias que nem sempre se “resolvem”, isto é, percorrem um caminho que não conduz ao final que se poderia esperar, se fossem melodias convencionais, com começo, meio e fim. Por trás delas, e em plena coerência com elas, uma seqüência harmônica repleta de acordes dissonantes, bela e estranha.

O ritmo é de enorme vigor e acento genuinamente brasileiro, do samba ao forró, com alguma marcação de origem no rock. Tudo na melhor tradição da MPB: “música plural brasileira”, como dizem os músicos mais atuais. Também as vozes desempenham papel ritmador, e um exemplo bem acabado disso está na faixa 7, samba lascado em que o vocal faz as vezes do agogô: “cá-cá-cá, qué-qué-qué, qui-qui-qui, có-có-có, cu-cu-cu”. Cada composição tem uma segunda parte em que o ritmo se suaviza e dá lugar a lindas passagens repousantes.

Outra qualidade do trabalho é a utilização na dose certa dos recursos eletrônicos, o que só faz ressaltar a ação humana que lhes dá vida. Nesse aspecto, mas não só nesse, cresce a figura de Paulo Lepetit, que assina com Tom Zé a autoria de cinco das sete faixas. Lepetit é contrabaixista, compositor, arranjador e produtor musical. Acompanhou vários artistas de primeira grandeza, como Cássia Eller e Ithamar Assumpção, e desde 1994 desenvolve carreira-solo. Em suas belas composições costuma usar o baixo como instrumento solista, mostrando técnica apurada. No CD Danç-Êh-Sá, além de tocar em todas as faixas, divide com Guilherme Kastrup a programação eletrônica de instrumentos e responde, com o músico Marcelo Blanck, pela edição e mixagem, fundamentais para o resultado.

O CD transborda de ironia, virtude inerente a Tom Zé. Não emociona no sentido de comover, mas cutuca o tempo todo, mobiliza, faz dançar. E impressiona pela maestria em criar, com tantos elementos sonoros, uma densa e envolvente massa musical. Danç-Êh-Sá é tudo isso e tem mais uma coisa, também própria de Tom Zé: o humor. Danç-Êh-Sá é divertido. No encarte, aliás, os dois compositores se chamam de “ludositores”, criadores lúdicos de música.

Dança-Êh-Sá é a melhor sugestão que se poderia dar aos donos de carros com som potente, às discotecas e aos DJs.

PS - Além de Tom Zé, Lepetit, Guilherme Kastrup (percussão, bateria e programação eletrônica) e Marcelo Blanck (harpa, corneta, flautinha, “orguinho”), participam do CD os seguintes músicos: Adriano Magoo (sanfona), Daniel Maia (cavaco, violão de sete cordas), Jarbas Mariz (percussão), Cristina Carneiro (piano), Éder Rocha (percussão) e Lauro Léllis (pré-assistência de percussão). Vozes: Luanda, Sérgio Caetano, Jarbas Mariz, Adriana Andrette e Cristina Carneiro.

Ricardo Vespucci é jornalista.

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