segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

A Nova Era da Livre Circulação da Informação, Cultura e Conhecimento

A cultura hacker

por Hernani Dimantas e Dalton Martins


Confundidos propositalmente, pelo pensamento conservador, com invasores de rede, hackers somos todos os que agimos para que informações, cultura e conhecimento circulem livremente. E esta ética de cooperação, pós-capitalista, vai transbordando do software livre para toda a sociedade.

Os hackers surgiram no ambiente universitário. A cultura hacker tem origens no MIT – Instituto de Tecnologia de Massachussets e em outros laboratórios norte-americanos, como o PARC, da Xerox.

O movimento hacker coloca o ser humano no centro do universo e passa a desenvolver toda uma nova relação para satisfazer esta nova variável. Estes são os caras dos softwares de códigos livres, estes são os seres humanos do Linux.

Com as contas balanceadas é fácil, muito fácil, romper com as estruturas impostas pelo capitalismo. Richard Stallman, o guru da Free Software Foundation, podia priorizar o desenvolvimento de um driver para a impressora. E quebrar os modelos da indústria de software. No Brasil ele morreria de fome.

As originalidades das conversações que acontecem no baixo hemisfério devem ser analisadas por outro viés. Ser hacker é uma forma de sobrevivência. Essa análise se descola da cibercultura e entra nas relações que acontecem na sociedade brasileira. A colaboração é uma estratégia de sobrevivência nas periferias. Não vou me alongar nas perversidades das classes dominantes; vou focar na forma como os brasileiros descobrem o atalho para o futuro.

A internet é a obra-prima hacker . Este movimento não vai ficar restrito à arena tecnológica. Ser hacker independe do conhecimento inerente da computação. Faz mais sentido pensar no artífice. Na criatividade do ser humano catalisada pela digitalidade da rede.

É lógico que o debate na sociedade virtual está osmoticamente invadindo a sociedade estabelecida. Alguns princípios do ser humano estão sendo transformados. O novo bom-senso aceita a revolução digital como propulsora de uma nova ordem. Aceita a anarquia como uma forma viável de balanço entre os poderes. Aceita que o conhecimento deve ser livre, e o direito das pessoas comuns a compartilhar esse conhecimento. Empresas e governos tornam-se muito mais frágeis frente a essa realidade. Construíram um verdadeiro muro de Berlim, que divide a sociedade em castas de opressores e oprimidos, de poderosos e fracos, de produtores e consumidores, de bem e mal. Não acredito numa sociedade tão maniqueísta. A multidão hiperconectada rompe a ética protestante, que ajudou a evolução da sociedade industrial. Na era do conhecimento, esses valores devem ser sobrepujados por outra ética. A proposta da sociedade da informação é a ética hacker, que está sendo adotada pelo movimento do software livre.

Para entender esta ruptura dos paradigmas temos que pensar e participar. Um novo sistema está nascendo. Esqueça o velho comando e controle. Está surgindo uma consciência inequívoca de que a construção de baixo para cima tem muito para oferecer para o desenvolvimento do processo coletivo. Uma sociedade que sobrevive e se recria na sua própria diversidade.

Criar para a sociedade. Fazer acontecer independente do retorno financeiro a curto prazo. Qualquer pessoa com um computador conectado pode participar voluntariamente de projetos importantes
Tudo muda. Crianças aprendem a colaborar, a desenvolver projetos online e a espelhar os sonhos no ambiente web. O mundo virtual não é diferente do nosso bom e querido mundo real. A internet está ensinando os usuários a se inter-relacionarem neste espaço virtual. Não existe segredo, apenas boa vontade e obstinação.

Criar para a sociedade. Fazer acontecer independentemente do retorno financeiro a curto prazo. É esta a grande novidade. A metodologia de trabalho é simples e virtual. Qualquer pessoa com um computador conectado na rede e com um pouco de conhecimento tem a possibilidade de participar voluntariamente de alguns projetos importantes. Sem dúvidas, é a melhor opção.

Por trás deste discurso hacker existe uma filosofia. O conhecimento deve ser livre. Isto é muito diferente da ética protestante, para a qual o dinheiro enobrece o ser humano. De acordo com o jargão hacker ,"a original ética hacker significa a crença que o compartilhamento da informação é um bem um poderoso e positivo." Na prática isso significa um dever ético de se trabalhar sob um sistema aberto de desenvolvimento, no qual o hacker disponibiliza a sua criação para outros usarem, testarem e continuarem o desenvolvimento.

Colaboração é a palavra do século 21. Linus Torvalds causou um alvoroço enorme ao liberar o código numa lista de debates. Release early and release often, ou "Libere logo [os resultados do trabalho] e libere com freqüência" passou a redesenhar um modelo de produção. Colaboração como capital social. Colaboração para fazer qualquer coisa que o desejo provoque. Colaboração como condição de sobrevivência.

E com estas prerrogativas uma outra lógica emerge das entranhas da rede. Pois a visão tradicional não corrobora com os anseios da rede e das pessoas. Estamos buscando o diferencial. A possibilidade de trocar informações, de opinar, de desenvolver nossos projetos com liberdade. Utilizar a voz.

Bem-vindo à Era do Conhecimento Livre.

Hernani Dimantas é coordenador do Laboratório de Inclusão Digital e Educação Comunitária da Escola do Futuro - USP. Articulador do MetaReciclagem e editor do comunix.org.

Dalton Martins é um dos articuladores do
MetaReciclagem, Dalton Martins é designer de redes sociais. Colabora com a Coordenadoria de Tecnologia Social da Escola do Futuro e desenvolve o Projeto Ecommunita
, que pesquisa, desenvolve e implementa tecnologias, metodologias e processos de colaboração para o estímulo da aprendizagem e inovação.

Fonte: NovaE

NovaE.inf.br é uma revista pluralista na divulgação de idéias e conceitos a respeito de Internet, nova economia, cibercultura, política, cultura, literatura, mídia, comportamento, filosofia e cidadania. O conteúdo da NovaE está licenciado sob uma lincença Creative Commons.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Tarsila do Amaral - Curiosidades e Textos

Curiosamente nestes últimos dias a página do Música&Poesia mais visitada é a que contém uma postagem sobre a grande pintora Tarsila do Amaral. Com quase um ano no ar, a postagem sobre Tarsila é bem simples contendo apenas uma breve biografia e a reprodução de três de seus famosos quadros. Por isso surpreende as muitíssimas visitas que vem recebendo, quem sabe fruto de um bom posicionamento no Google e no Google Image. Bom, seja pelo motivo que for, Tarsila do Amaral e os leitores deste humilde blogue merecem muito mais. Então abaixo segue algumas curiosidades e trechos de textos escritos por ilustres, como Mário de Andrade, sobre Tarsila do Amaral, tudo retirado do saite oficial da artista.
Y.H.

Curiosidades

1- "Abaporu" foi o quadro brasileiro de maior valor vendido até hoje. Seu preço alcançou US$1.500.000, e foi comprado pelo banqueiro argentino Eduardo Costantini.

2- Tarsila anulou seu casamento com o primeiro marido em 1925 para casar-se com Oswald de Andrade em 1926. O então presidente eleito Washington Luís foi o padrinho de Oswald e Júlio Prestes (na época governador do Estado de São Paulo) o padrinho de Tarsila.

3- Depois de 1929, com a crise do café no Brasil, o pai de Tarsila perdeu grande parte de sua fortuna e ela trabalhou como colunista nos Diários Associados de seu amigo Assis Chateaubriand.

4- Tarsila gostava muito de anotar novas receitas detalhadamente, porém nunca chegava a fazê-las. - A tela O Pescador foi vendida ao governo russo durante sua estada por lá em 1931. O dinheiro obtido teve de ser gasto no próprio país, uma vez que não podia ser convertido em outra moeda.

5- Tarsila possuía um dos melhores acervos pessoais do Brasil com obras de Léger, Picasso, De Chirico, Delaunay, Modigliani, Gleizes, Lhote, Ingres e também dos brasileiros Almeida Junior, Anita Malfatti, Lasar Segall, entre outros.


Textos

1- Artigos de Menotti del Picchia publicados em 'A Gazeta' nas edições de 27/12/1950, 27/01/1961 e 25/02/1966 nos quais o ilustre articulista fez referências à chegada de Tarsila de Paris em 1922 e seu encontro com os modernistas:

"…foi Anita Malfatti quem me apresentou a artista numa confeitaria elegante onde tomávamos chá…-Esta é Tarsila, paulista, pintora e vem de Paris. Pintora? Tinha eu na frente uma das criaturas mais belas, mais harmoniosas e mais elegantes que me fora dado ver… É claro que todos se apaixonaram por Tarsila…".

2- Trechos de artigo escrito por Tarsila e suas recordações de Paris:

"...Paris de 1923! As recordações fervilham, amontoam-se, atropelam-se… Meu ateliê da Rua Hégésippe Moreau, que Paulo Prado descobrira ter sido habitado por Cézane, foi frequentado por importantes personagens. Aos almoços tipicamente brasileiros, às vezes compareciam Cocteau, Erik Satie, Valéry Larbaud, Jules Romains, Giradoux, Brancusi, Amboise Vollard. Entre os brasileiros, Villa-Lobos, Paulo Prado, dona Olívia Guedes Penteado, Souza Lima, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Di Cavalcanti…".

3- Artigo de Álvaro Moreira em 'Para Todos', edição de 22/07/1928:

"Ela foi o presente mais bonito que Papai Noel botou nos sapatos pobres da pintura brasileira. Desde aquela manhã a pintura brasileira teve uma sorte boa e a gente se esqueceu das coisas feias que tinha visto para ver os quadros de Tarsila como as cores da infância, um cor de rosa que nem as rosas tem, um azul que não é dos céus nem dos rios nem da distância. Cor de rosa de Tarsila. Azul de Tarsila. Sem iguais no mundo".

4- Mário de Andrade, em 21/12/1927:

"Tarsila é um dos temperamentos mais fortes que os modernos revelaram pro Brasil. Afeita às correntes mais em voga da pintura universal, ela conseguiu uma solução absolutamente pessoal que chamou a atenção dos mandões da pintura moderna parisiense. Provinda de família tradicional, se sentindo muito a gosto dentro da história da nossa pintura ela foi a primeira que conseguiu realizar uma obra de realidade nacional…".

5- Do crítico de arte português Antonio Ferro, sobre a exposição de Tarsila em Paris, em 1926:

"Tarsila do Amaral inaugurou, há pouco, em Paris, a sua exposição. Era fácil de prever o acontecimento. Blaise Cendrars, que não quer outra ilustradora para os seus livros, Jean Cocteau, Valéry Larbaud, Rosemberg, Raynal e tantos outros, obrigaram a França a olhar para Tarsila. A França, por sua vez, obrigará o Brasil a consagrar esta grande pintora. Será, de resto, um gesto de gratidão…".

6- Poema 'Atelier', de Oswald de Andrade para Tarsila, publicado em 'Pau Brasil', em 1925:

Atelier
"Caipirinha vestida por Poiret
A preguiça paulista reside nos teus olhos
Que não viram Paris nem Piccadilly
Nem as exclamações dos homens
Em Sevilha
À tua passagem entre brincos

Locomotivas e bichos nacionais
Geometrizam as atmosferas nítidas
Congonhas descora sobre o pálio
Das procissões de Minas

A verdura no azul klaxon
Cortada
Sobre a poeira vermelha
Arranha-céus

Fordes
Viadutos
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado"






Fonte Curiosidades, Textos e Imagem Fash: Saite Oficial Tarsila do Amaral


Confira também
Veja Programa sobre Antropofagia na Cultura Brasileira
Tarsila do Amaral - Vida e Obra


Mostra permanente de cinema www.outrocine.blogspot.com - Outro jeito de ver cinema

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Música&Poesia Latino-Americana: El Necio - Silvio Rodríguez

Vídeo do cubano Silvio Rodríguez interpretando El Necio, belíssima canção de sua autoria.

El Necio - Silvio Rodríguez


Baixe aqui vídeo de Silvio Rodríguez cantando El Necio ao vivo (arquivo .rm)

El necio
Silvio Rodríguez

Para no hacer de mi ícono pedazos,
para salvarme entre únicos e impares,
para cederme un lugar en su Parnaso,
para darme un rinconcito en sus altares.
me vienen a convidar a arrepentirme,
me vienen a convidar a que no pierda,
mi vienen a convidar a indefinirme,
me vienen a convidar a tanta mierda.

Yo no se lo que es el destino,
caminando fui lo que fui.
Allá Dios, que será divino.
Yo me muero como viví.

Yo quiero seguir jugando a lo perdido,
yo quiero ser a la zurda más que diestro,
yo quiero hacer un congreso del unido,
yo quiero rezar a fondo un hijonuestro.
Dirán que pasó de moda la locura,
dirán que la gente es mala y no merece,
más yo seguiré soñando travesuras
(acaso multiplicar panes y peces).

Yo no se lo que es el destino,
caminando fui lo que fui.
Allá Dios, que será divino.
Yo me muero como viví.

Dicen que me arrastrarán por sobre rocas
cuando la Revolución se venga abajo,
que machacarán mis manos y mi boca,
que me arrancarán los ojos y el badajo.
Será que la necedad parió conmigo,
la necedad de lo que hoy resulta necio:
la necedad de asumir al enemigo,
la necedad de vivir sin tener precio.

Yo no se lo que es el destino,
caminando fui lo que fui.
Allá Dios, que será divino.
Yo me muero como viví.


Silvio Rodríguez

Silvio Rodríguez Domínguez (San Antonio de Los Baños, Cuba, 29 de Novembro de 1946) é um músico, poeta e cantautor cubano.

Expoente da música cubana surgida com a Revolução Cubana, Silvio é um dos cantores cubanos contemporâneos de maior relevo internacional, criador juntamente com Pablo Milanés, Noel Nicola e outros músicos do movimento da Nova Trova Cubana. Considerado um poeta lúcido e inteligente, capaz de sintetizar o intimismo e os temas universais com a mobilização e a consciência social.

Fonte:
Wikipédia - a enciclopédia livre.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Clipe de Ressurreições, Jorge Mautner e Nelson Jacobina

Videoclipe da música Ressurreições de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Canção do álbum Revirão (2007), de Mautner, o clipe tem direção de André Martinez.

Ressurreições - Jorge Mautner e Nelson Jacobina

Ressurreições segundo Jorge Mautner: É um rock romântico. Ela foi composta depois de uma longa conversa com Nelson Jacobina sobre Aracy de Almeida e Janis Joplin. Tem um tom heróico, aonde a dor é tamanha que emudece, as lágrimas que são palavras que não podemos pronunciar, segundo mestre Freud, não conseguem brotar dos olhos de quem quer chorar. Existem quartos secretos que guardam segredos, leões, tem um tom de "estrada afora", uma dor que é transfigurada pela eterna esperança das ressurreições do amor.

Alegria é algo muito subjetivo - Confira em texto de Jorge Mautner

Duas Alegrias
Jorge Mautner
Folha de São Paulo - 20/09/2002

Eram dois pequenos apartamentos situados no mesmo andar de um edifício miserável das periferias. Era também um dia de muita chuva. No apartamento da esquerda, um jovem de 18 anos esperava ansiosamente a sua namorada e preparava com muito carinho o ambiente do seu pobre lar. Limpou pela décima vez a poeira dos poucos móveis de pIástico poluído que possuía e trocou mais uma vez a água do jarro que continha aquele par de rosas vermelhas que ele comprara barganhando muito com o florista, argumentando que elas estavam quase murchas, e estavam mesmo. Sorriu satisfeito e, olhando ansiosamente para o seu relógio de pulso, conferiu a hora da chegada do seu amor. E pensou: "Pronto, está tudo preparado, o nosso ninho de amor, assim como nos ensina aquele livro japonês sobre a arte de amar. Será que Josefina não vai se atrasar? Ah! Este trânsito infernal das megalópolis!".

No apartamento da direita, urn homem de 48 anos, tossindo muito corn bronquite crônica, chorava sem parar derramando muitas lágrimas em uma fotografia de urna menina de 12 anos e que era sua filha e que fora assassinada por urn casal de sádicos. O assassinato ocorrera há mais de dois anos e a sua filhinha, cujo nome era Dorotéia, fora sequestrada pelo dito casal sádico e numa noite de orgia, exatamente dois anos atrás, fora amarrada na cama e obrigada a fumar crack e em seguida torturada e estuprada até a morte. Após o crime, o cadáver foi encontrado numa lixeira e, como o pai de Dorotéia era pobre, assistiu a impunidade reinar sobre mais este caso de terrível e hediondo crime.

Naquela noite, o pai da menina hediondamente assassinada - e cujo nome era José - pensava enquanto chorava segurando o retrato da filha: "Sim, hoje será a noite da ira sagrada, da vingança justificada, porque, como disse Jesus de Nazaré, “quem fizer mal a um destes pequeninos que me acompanham, melhor seria que amarrassem uma mó de atafona ao redor do seu pescoço e o jogassem no fundo do mar”, e também está na Bíblia: olho por olho, dente por dente , e já que a polícia e a justiça da terra são inoperantes, vou fazer o que meu coração ordena que seja feito!". E fechando os olhos e parando de chorar, sorriu levemente e apertando a fotografia de sua pequena Dorotéia contra o seu coração, depositou a fotografia em cima da mesa, bem defronte de uma pequena estátua de Nossa Senhora da Aparecida, e em seguida abriu a porta do armário de roupas puídas e velhas, e de lá retirou um revólver de calibre 38 que comprara após muita economia. Em seguida saiu pela noite e foi procurar os medonhos assassinos. Eram quase seus vizinhos. Encontrou-os em plena orgia fumando crack desvairadamente, e sem piedade descarregou todas as balas do seu 38 em cima deles. Embora já estivessem mortos, carregou novamente o revólver comprado a muito custo e descarregou novamente todas as balas nos cadáveres hediondos. E foi com imenso sorriso de alegria que saiu daquele apartamento do demônio.

No mesmo instante, quando, no apartamento da esquerda, Josefina, a namorada do jovem de 18 anos, chegou, e ambos se beijaram, o sorriso da alegria do amor em seus olhos também brilhou!

***
Jorge Mautner é escritor e compositor. Sua obra literária completa está reunida nos três volumes da “Mitologia do Kaos” (editora Azougue)

Fonte:
JorgeMauter saite oficial

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Bate-Papo entre Arrigo Barnabé, Augusto de Campos e Caetano Veloso

Os jovens Caetano Veloso e Arrigo Barnabé conversam com o poeta Augusto de Campos, no programa Fábrica do Som, TV Cultura, sobre Poesia Concreta.

Arrigo Barnabé, Augusto de Campos e Caetano Veloso

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

O Dia em que Festa Popular foi Censurada

Todo dia é dia

14 de Fevereiro: Primeira censura ao Entrudo

JOGARAM TANTO CONFETE NO ENTRUDO, QUE ELE SE CIVILIZOU
Entrudo, ilustração de Debret
Bastava chegar o carnaval, lá estavam os limões de cheiro, bisnagas d’água, farinha, tinta, quando não baciadas de excrementos e outras agressões. Entrudo, brincadeira de rua, conhecido desde a chegada dos portugueses, era atividade violenta. Escravos descontavam as diferenças nos senhores; e senhores ficavam nas sacadas sujando quem passasse embaixo. Não escapava ninguém, até o imperador Pedro I brincava – em casa, é claro.

Jornais faziam campanhas pela pacificação da festa, até que em 14 de fevereiro de 1857, no Rio, O Jornal publica a primeira censura ao entrudo. Delegado de polícia da corte, Antônio Rodrigues proíbe a brincadeira sob pena de oito dias de cadeia e multa de 4 a 12 mil-réis.

Não adiantou. Quando chegava o sábado de carnaval, a população não via a hora de ir para a rua se esbaldar, zombando até a quarta-feira de cinzas. Ao longo do tempo, confete, serpentina e lança-perfume acabaram civilizando o entrudo.
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Segue Campanha de distribuição de livros para penitenciárias

Campanha de distribuição de livros para penitenciárias completa dois meses

por Felipe Linhares
da Agência Brasil


Brasília - A campanha nacional de doação de livros às bibliotecas dos presídios, que completa dois meses hoje (12), já recebeu 35 mil exemplares. O projeto da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Movimento Nacional dos Direitos Humanos e o Centro de Produção da Justiça Federal tem o objetivo de auxiliar o sistema carcerário na reeducação de presos e prevenir o crime.

Dezoito estados e o Distrito Federal aderiram à campanha. De acordo com o secretário da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, Márcio Araújo, um livro pode mudar a vida dos detentos. “Um livro técnico pode ajudar uma pessoa a se tornar um profissional. Um livro, de certa forma, envolve a pessoa em uma capacidade de raciocínio, de aprofundar a compreensão da natureza humana.”

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara já recebeu relatos de detentos de que os livros os fazem mudar o comportamento. “Muito deles passam a ter um comportamento mais solidário, mais cooperativo e acabam conseguindo a redução da pena”, diz Araújo.

Grande parte das doações foi feita por funcionários públicos federais e municipais. Os livros estão em boas condições de uso. A campanha vai até março, mas pode ser prorrogada. Para saber mais onde doar os livros acesse o site da
Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Fonte: AgênciaBrasil


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domingo, 10 de fevereiro de 2008

Gilberto Gil analisa o Patrimônio Intangível

Entrevista com o ministro Gilberto Gil para a revista Itaú Cultural, edição janeiro/fevereiro de 2008.

Uma Política de Ponta
por Marco Aurélio Fiochi
Ministro Gilberto Gil (imagem: Cia de Foto)
Em 1977, Gilberto Gil questionou, na canção De Onde Vem o Baião, a origem dos ritmos musicais nordestinos. A resposta, presente em versos como "Debaixo do barro do chão da pista onde se dança/Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino/[...]/Que sobe pelo chão/E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote", credita a uma dimensão imaterial o impulso criativo que dá vida a uma parte da riqueza musical brasileira. Coincidência ou não, o músico tratou poeticamente um aspecto cultural que, três décadas depois, ganharia espaço cada vez maior em sua gestão como ministro da Cultura. Nesta entrevista, concedida em seu gabinete, em Brasília, Gil demonstra entusiasmo com a cultura intangível: "Essa dimensão é a mais importante da cultura para uma parte enorme da humanidade hoje". Justiça seja feita, desde que assumiu o ministério, em 2003, a cultura intangível entrou de vez em pauta no Brasil, com as certificações de patrimônio imaterial concedidas pelo Iphan a celebrações, lugares, ritmos musicais e ofícios. Mas, segundo o ministro, este não é um mérito individual, já que o governo brasileiro é signatário de uma política mundial para esse setor, posta em prática pela Unesco. Lançando o olhar para um futuro que já se apresenta, Gil comenta ainda a interação crescente entre o patrimônio imaterial e a cultura digital.

Qual é sua visão a respeito da cultura intangível?
A cultura intangível é a parte mais importante, mais substancial da cultura. É a cultura que se processa pelos modos de comunicação. Com o crescimento das populações, especialmente em lugares onde prevalecem os cânones clássicos da cultura eurocêntrica, mas também na periferia do mundo, a cultura intangível se torna mais eloqüente, forte e flagrante. Trata-se da cultura oral, dos saberes, dos processos e das trocas simbólicas cotidianas, nas várias formas de linguagem utilizadas pelas pessoas. Essa dimensão é a mais importante da cultura para uma parte enorme da humanidade hoje. Eu diria que bem mais da metade da população mundial tem nessa dimensão cultural sua dimensão principal. Acho que o Brasil se encaixa com perfeição nesse modelo de povos novos, povos que se construíram com base em uma vivência cultural não formalizada.

Embora as manifestações da cultura oral e intangível sejam tradicionais e praticadas desde tempos imemoriais, essa questão só se tornou mais intensa no setor cultural com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, realizada pela Unesco em 2003. Como o senhor vê esse despertar relativamente tardio para um aspecto tão relevante de nossa cultura?
A Convenção nasce de uma importância crescente e indiscutível da dimensão do patrimônio imaterial. Ela consolida a atenção especial da humanidade para com o patrimônio imaterial. Por meio dela são criados instrumentos de consideração apropriada, definitiva e mais acentuada dessa dimensão cultural no mundo. A Convenção traz essa discussão a um campo institucional, para o plano da atuação do Estado nesse processo todo. Decorre disso o fato de que um dos aspectos fundamentais da Convenção é a autorização das nações para a prática de políticas culturais públicas, adequadas segundo seu entendimento, sua conveniência, suas expectativas e expectativas de seus povos. A Convenção coroa um processo natural de um conjunto de iniciativas mundiais tomadas pela própria sociedade internacional. A politização dessa discussão nasce nos países asiáticos, como a Índia e a China, em que a dimensão demográfica é de extraordinária importância e a diversidade cultural é imensa. Nesse continente, os processos orais, simbólicos, imateriais se dão de forma muito mais nítida, dramática do que na Europa ou em países onde prevaleceu, por força da acumulação de riquezas, do colonialismo, uma visão clássica de cultura e de patrimônio. Essa visão foi herdada pelos povos que, ao se assumir como novos, com suas necessidades especiais e peculiaridades, passam a reivindicar uma consideração à dimensão imaterial, intangível do patrimônio.

Um dos objetivos do poder público ao conferir títulos de patrimônio imaterial a determinados bens culturais intangíveis é assegurar sua preservação diante das transformações constantes por que passam a vida e a cultura. Como o senhor vê o aprofundamento do debate sobre a cultura intangível, que via de regra é também o debate sobre a cultura popular, no cenário contemporâneo?
A constituição de um corpo de leis e instrumentos regulatórios que possibilitem a preservação dessa cultura por parte do poder público nasce de um cuidado diante de ameaças de um processo natural, de construção da vida moderna e pós-moderna, que é avassalador, que vai obrigando as pessoas a se enquadrar. Mas outro aspecto importante é a necessidade identitária dos indivíduos e dos grupos sociais, seu auto-reconhecimento, sua autocontemplação. Não basta preservar das ameaças da atualidade, pois não se trata somente do risco de perder algo que é seu, mas, sim, da possibilidade de perder a si próprio. São duas questões, dois cuidados contemplados pelas iniciativas ligadas ao patrimônio imaterial.

Em sua gestão houve um empenho pessoal em promover o levantamento e a certificação dos bens culturais intangíveis como patrimônios. O senhor acredita que essa política poderá se tornar uma política de Estado?
Não vejo isso no futuro, é agora! Estamos fazendo uma política de Estado ao criar os estatutos da certificação. É uma política que se constrói agora e tem vida longa. Ela reflete um desejo e uma ação da Unesco - não por acaso a Organização é dirigida por um dos maiores entusiastas do patrimônio imaterial, o secretário Koïchiro Matsuura. A formação do secretário na esfera institucional da cultura vem do patrimônio imaterial no Japão. Ele veio para a Unesco para representar a grande demanda asiática pelo fortalecimento dessa dimensão. O governo brasileiro, por meio do Iphan, a autoridade cultural patrimonial do país, é signatário dessa política. Vários estados brasileiros, por meio de suas políticas culturais, também assumiram a questão do patrimônio imaterial como política, caso do Ceará, da Paraíba, da Bahia, de Minas Gerais. Alguns programas estaduais, como o do Ceará, são anteriores ao programa do Ministério da Cultura. Trata-se, de fato, de uma política do Estado brasileiro.

Os Pontos de Cultura do programa Cultura Viva, do ministério, poderão abrigar no futuro manifestações da cultura intangível?
Muitos deles já abrigam essas manifestações. São Pontos de Cultura ligados a populações indígenas e a remanescentes históricos da interação cultural afro-brasileira. Não só os Pontos de Cultura, mas também outros programas do ministério, outras vertentes do programa Cultura Viva já contemplam as manifestações certificadas como patrimônio. Se não os certificados, aqueles que estão em processo para se certificar. É uma forma de fazer com que essas manifestações cumpram seu percurso. Há um primeiro estágio, que é a afirmação da identidade, e num segundo momento sua exposição, difusão para públicos que não teriam acesso direto a elas.

Para as comunidades, qual é o impacto das ações planejadas pelo ministério para garantir a sustentabilidade dos modos de fazer e das celebrações da cultura intangível?
O associativismo é um passo natural para a visibilidade dessas comunidades, para que elas fortaleçam seus vínculos com as manifestações culturais intangíveis. Portanto, esses grupos passaram a se estabelecer como força política, como força empreendedorística, como força de protagonismo social. O associativismo é baseado na consolidação da cidadania. A primeira noção do associativismo é a politização, as pessoas se associam para se tornar corpos políticos. Claro que o ministério não vai fazer cidadania, não vai fazer de ninguém um cidadão, mas ele ajuda na medida do possível, dando ferramentas técnicas, materiais e conceituais. A parte conceitual é importante, pois dá às pessoas a visão, a noção sobre identidades e diversidades, sobre preservação e conservação, sobre o papel da sociedade e também do governo.

Enfocando aspectos mais contemporâneos da questão, gostaria que o senhor falasse a respeito de outra forma de patrimônio imaterial, constituído a partir do advento da cultura digital. Como o senhor vê o papel das obras de referência virtuais, a exemplo de enciclopédias, para assegurar a preservação da memória cultural?
Esse é um tema novo e importantíssimo. Acabo de chegar dos Estados Unidos, onde tive contato com a Internet Archive, instituição não-governamental criada por um egresso do mundo dos negócios no Vale do Silício, Califórnia, Estados Unidos. A instituição [criada em 1996 por Brewster Kahle] nasceu exatamente para preservar acervos com a digitalização. São arquivos, memórias variadas encontradas fragmentadas no campo digital, produtos que são conseqüência, são frutos da internet, bem como tudo aquilo que ela veio a abrigar do mundo analógico, das linguagens anteriores. Trata-se dos grandes filmes do mundo inteiro, do patrimônio musical, do teatro, da literatura. A instituição possui 200 bilhões de páginas da internet arquivadas, fora os 200 mil filmes digitalizados. Essa relação entre o patrimônio imaterial e o mundo digital está cada vez mais próxima, eles estão convergindo, não há como recusar isso.
Ouça trechos da entrevista.

Blogues do MinC

Blogs do Ministério da Cultura

O MinC reformulou seu site há pouco tempo e, além de ter tornado mais fácil o acesso aos diversos conteúdos, como os editais em andamento, criou alguns blogs de assuntos específicos. Entre eles, ganham espaço próprio e de destaque os Pontos de Cultura, no blog Ponto Brasil, que veicula trechos dos programas que vão ao ar na recém-lançada Tv Brasil; e o Cultura Digital aborda os temas relacionados às tecnologias digitais e aos softwares livres, que têm possibilitado uma crescente democratização do acesso à informação e ao conhecimento de bens e serviços culturais. Há ainda blogs sobre Diversidade Cultural, Direito Autoral, Internet Governance Forum , Rede Olhar Brasil, sobre os núcleos de produção digital no país, e o Mercosul Cultural.

Fonte: RevistaIdiossincrasia

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Animação dá Tapa na Cara da Classe Média

Vídeo de animação da música Classe Média, do cantor Max Gonzaga, feito a pedido da revista CartaCapital.

Classe Média - Max Gonzaga

Em 2005 Max Gonzaga lançou seu primeiro CD solo com o título Marginal e teve sua música Classe Média classificada para o Festival Cultura - A Nova Música do Brasil.

Fontes: CartaCapital, Saite Oficial Max Gonzaga

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Condomínio, belo texto de Luis Fernando Veríssimo

Condomínio
por Luis Fernando Veríssimo


João, 39 anos, entrou no apartamento com um olhar tão estranho que sua mulher exclamou, quase o acusou:

- Você foi assaltado!

- Não, não...

Ele começou a desfazer o nó da gravata, maldita gravata. Continuou com o olhar perdido. O apartamento era novo. Ainda tinha o cheiro de tinta nova.

- Então viu um fantasma...

João mexeu os lábios. A intenção era um sorriso, mas não conseguiu.

- Isso mesmo. Vi um fantasma. No elevador.

- Olha os sapatos.

O prédio ainda não estava pronto. O chão da garagem, no subsolo, estava coberto de pó de cimento que pegava nos sapatos. A mulher não queria cimento no seu tapete novo. Tapete, não. Carpete.

- Sabe quem foi que subiu comigo no elevador?

- Quem?

- Um dos caras que me torturaram em 68.

- Você está maluco.

- Estou te dizendo. Reconheci na hora. Era o chefe deles.

- Como é que ele é?

- Forte. Está mais gordo agora. Meio careca. Mas a mesma cara.

- Olha o meu carpete, João!

- Deve morar no prédio. No oitavo. Apertou o botão do oitavo.

- No oitavo mora o Serginho. O melhor amigo do Vado.

- Do Vladimir?

João não gostava que chamassem o filho de nove anos pelo apelido.

- É. Os dois passam o dia inteiro na piscina do prédio. Se dão muito bem. O guri se chama Serginho.

- É isso. Ele se chamava Sérgio. Agora me lembro. Sérgio. Mas tinha um apelido. Como era o apelido?

João estava parado no meio da sala. A sala com poucos móveis ainda. Os poucos que tinham trazido do apartamento velho. A mulher estava escolhendo móveis novos. Finalmente tinham condições para montar um apartamento decente. João continuava com o olhar perdido. De pé no meio da sala. A gravata despencando de uma mão, a pasta de executivo na outra. As grandes janelas abertas do apartamento davam para uma encosta coberta de casebres. Mas além dos casebres se via o rio. Um pôr-do-sol de verão. As janelas ainda não tinham cortinas.

- João, por favor, tira os sapatos. Está deixando marcas no carpete.

- Puta que os pariu.

- Eu não entendo por que você ficou assim.

- Ó Sandra, você não vê o que que isso significa?

- Não. O que é que significa.

João olhou para a mulher. Sandra banhada em sol sobre o seu carpete. O território conquistado. Sandrinha do Alaska que um dia enfrentara toda a Brigada Militar a bolsadas e agora sonhava com cortinas para a sala. O que era mesmo que significava?

Por mais de um ano depois de ser solto João não conseguia dormir. De noite chorava no colo de Sandra. Ela afagava a sua cabeça. Pronto, pronto, isso passa. Ele se recusava a tomar qualquer coisa contra a dor ou para dar sono. O pai, médico, conseguiria o que ele quisesse, mas ele não queria nada. Arranjara trabalho - influência do pai - e o DOPS o deixara em paz. O emprego era bom, ele era bom no seu trabalho. Mas de noite chorava nos seios de Sandra. Eu não denunciei ninguém, Sandrinha. Não denunciei ninguém. Me quebraram mas eu não traí ninguém.

Pronto, pronto, isso passa.


- Você lavou as mãos, Vado?

Para construírem a área de lazer do edifício tinham tirado uma fatia do morro. Uma parte do terreno ainda não estava calçada. As crianças ficavam sujas de barro vermelho. O síndico reclamava, as crianças estavam enchendo a piscina de barro.

- Lavei, mãe.

Os três na mesa de jantar. A mesa ainda era a antiga. A nova ia chegar no outro dia.

- Vladimir, como é que se chama o pai do seu amigo?

- Do Serginho? Sei lá. Ele tem uma tartaruga que se chama Lopes.

- A tartaruga não interessa. O pai dele também se chama Sérgio?

- Sei lá.

Sandra:

- A mãe eu conheço. Se chama Leonor. Muito simpática. O marido eu nunca vi. Vai ver você subiu no elevador com uma visita.

- Não. Tinha o ar de quem estava chegando em casa. E deixou o carro na garagem também. Um Passat. Igual ao nosso.

- Ele reconheceu você?

- Não. Acho que não. Filho da Puta.

- Quem?

- Come, Vado.

- O nome desse menino é Vladimir.

- Eu acho o meu nome uma merda.

- Olha o palavrão.

- Ué, tu não disse um também?

- Cala a boca e come.

- Você provavelmente vai conhecê-lo hoje na reunião do condomínio.

- Essa não! Tinha me esquecido da reunião do condomínio. Porra.

- Olha aí! - acusou o filho, apontando com o garfo.

O interrogatório era feito por três, às vezes quatro. O que comandava se chamava Sérgio. Mas tinha um apelido. Como era mesmo que aquele outro preso dissera? Você caiu nas mãos do... Um apelido. Um nome de bicho. Como era? Você caiu nas mãos do... Esse é fogo. Mas ele não denunciara ninguém. Agüentara firme. Depois de um mês o tinham soltado. Ele nunca mais ouvira falar no tal de Sérgio. Forte. A voz rouca.

A reunião do condomínio era no apartamento do Miranda, no décimo. Comerciante, quarenta e poucos anos. Duas filhas adolescentes. Uma mulher que já fizera plástica e andava dentro do apartamento com um kaftan de seda multicolorido que zunia quando roçava no chão. A mulher recebia a todos com um grande sorriso artificial. Talvez a cirurgia não tivesse dado certo e o sorriso fosse permanente.

- Vamos sentando, pessoal. A gente mais ou menos já se conhece, não é mesmo?

- As mulheres já se conheciam. Os homens, só de encontros casuais no elevador ou na garagem. Eram os primeiros proprietários do Sunset Palace (“Um prêmio dourado para quem subiu na vida”, a frase nos anúncios) e estavam todos no prédio há pouco tempo. João ouviu Sandra elogiando as cortinas da senhora Miranda.

- Ainda não consegui botar as minhas...

Mulheres para um lado, homens para o outro. Oito casais. Faltavam só os pais do Serginho, do oitavo. Miranda esfregou as mãos. Acho que com este calor vai todo mundo na cerveja, é ou não é?

- Vamos lá.

- Pra mim está ótimo.

- Está falando a minha língua.

Um certo constrangimento entre os homens naquele primeiro contato social. Miranda, temendo ser mal compreendido, declarou que para quem não quisesse cerveja havia uísque, do legítimo. Fez questão de mostrar sua coleção de uísques estrangeiros. Mas todos concordaram que, em certas ocasiões, nada como uma boa cerveja. O Pires do sétimo - magro, mas com uma barriguinha já esticando a camisa comprada em butique - anunciou que ia dizer uma coisa. Todos se viraram para ele. Na falta geral de assunto, quem propusesse qualquer um tinha a atenção dedicada dos demais. O Pires então disse que preferia a cerveja em qualquer ocasião. Os outros sacudiram a cabeça, gravemente. Então o Lima do quinto começou:

- Isso me faz lembrar aquela anedota, eu sou péssimo em anedota, mas...

- João não ouviu a anedota. Ouviu a campainha de dois tons tocar e a senhora Miranda zunir na direção da porta com seu sorriso prêt-a-porter. Eram os pais do Serginho do oitavo. Os olhos de Sérgio e de João se encontraram. Sérgio deu um abano amistoso. Afinal, já se conheciam. Pelo menos de uma viagem de elevador.


Quando ele contou ao pai o que tinha passado no interrogatório, ouviu do pai uma frase surpreendente. Então vê se agora você toma jeito. O pai tinha os olhos cheios de lágrimas. Puta que os pariu. Lágrimas pelo que o filho tinha passado ou pelo que tinha feito com o nome deles. Traição. Um subversivo na família.

- Acho que o nosso maior problema - disse Miranda, dando início, informalmente, à parte formal da reunião - são os assaltos.

- Ai meu Deus, nem fale! - disse a senhora Pires.

- Infelizmente - continuou Miranda - estamos numa zona perigosa. Aqui tem malocas de todos os lados. Eu sei que a prefeitura vai remover mas por enquanto elas estão aí. E todos nós temos aqui temos um patrimônio valioso que precisamos defender.

- Inclusive as nossas vidas - disse Sérgio. A voz rouca era a mesma.

- Exato - disse Miranda. - O doutor Sérgio, aqui, para os que não sabem, é dono de uma firma de vigilância. Uma das maiores que existem.

- Vigilância e segurança - corrigiu Sérgio.

- Ele quer nos propor uma coisa. Doutor Sérgio com a palavra.

Sérgio falou olhando diretamente para João.

- A minha proposta é a seguinte. Posso dispor de oito ou dez homens para fazerem a segurança do prédio, em rodízio. É gente minha que faria hora extra. Por conta da firma, é claro, já que o principal interessado sou eu mesmo. O resto dos condôminos só pagaria uma quantia pequena para eu poder contabilizar. Senão meus sócios podem me acusar de estar usando a firma em proveito próprio. É isso. Nós teríamos, dia e noite, sempre dois ou três homens vigiando o prédio.
- Eu acho ótimo - disse o Pires.

- Olha que esta zona é braba - reforçou o Miranda.

- E não são só os assaltos. Qualquer dia vai ter criança desse morro aí atrás querendo pular o muro para entrar na piscina - disse a sra. Miranda, sem parar de sorrir.

- Eu acho isso até pior do que assalto - disse João, mas ninguém notou a ironia. Nem Sandra.

- O que é que vocês dizem? - quis saber Miranda.

Todos votaram a favor. Menos João. Quando chegou a sua vez de falar, ele disse que não sabia.

- Como, não sabe? - disse o Lima do quinto. - Você já viu a cara dessa negrada que mora aí perto? É tudo bandido. Está tudo esperando a hora de nos passar na faca.

- Tem uma coisa - disse o Pires. - A decisão tem que ser unânime. Afinal, a vigilância vai proteger a todos, os que pagam e os que não pagam. Então, ou todos pagam ou ninguém paga. Respeitando a opinião do senhor.

Um certo ressentimento. João sentindo o olhar de Sandra no seu rosto. Riu e disse:

- Por favor, só não me chame de senhor.

Todos riram. O João parecia difícil, mas era boa praça. E não ficava bem, divergências logo na primeira reunião. Estavam todos juntos naquela cidadela. Tinham que se entender. João aproveitou a descontração. Continuou:

- O prédio já não tem dois porteiros?

Seu Leiva, o síndico, falou pela primeira vez.

- Não adiantam muita coisa. O seu Valdir já está velho e o outro, não sei não.

- Também tem cara de bandido - observou a mulher do Lima.

- E nenhum dos dois tem arma - disse Miranda.

- Mas também ninguém está esperando um ataque com massa, não é? - disse João. Desta vez ninguém riu com ele.

- Pois nem disso eu duvido - disse Miranda. - Essa gente está ficando atrevida. Volta e meia fazem um quebra-quebra. Não viram ontem, no Jornal Nacional?

- Pobre gente... - suspirou a mulher do Pires, magra e triste. Seus cabelos encaracolados pareciam ter sido acrescentados à última hora para disfarçar a melancolia. Sem sucesso.

- É uma pobre gente - concordou Miranda - mas também tem muito vagabundo no meio. Marginal mesmo. Emprego é o que não falta neste país, mas trabalhar que é bom ninguém quer. Preferem tirar o nosso dinheiro. Está fácil. O negócio é dificultar. Eu, por exemplo, tenho uma arma em casa e outra no carro. Vagabundo nenhum vai tirar o que é meu sem uma briga.

João tentou encontrar o olhar de Sandra. Ela estava olhando para o Pires, que anunciava uma declaração com a mesma solenidade com que proclamara seu gosto pela cerveja.

- Vou dizer uma coisa - disse o Pires. - Eu acho que a coisa está chegando num ponto em que a gente tem que reagir no pau. Tem que matar meia dúzia em praça pública que aí o resto sossega. Esse negócio de direitos humanos é muito bonitinho mas em país desenvolvido. Aqui não. Aqui é nós ou eles.

- Credo, Pires - disse a mulher do orador, olhando em volta. Podiam pensar que o Pires era um reacionário.

- Está certo - continuou o Pires. - É um problema social e coisa e tal. Mas o governo que acabe com a miséria. Eu defendo o meu patrimônio. Trabalhei por ele, não tirei de ninguém, tenho direito, é meu e vagabundo nenhum vai botar a mão.

- Concordo cem por cento - disse o Miranda, que tinha o hábito de sacudir as pernas, como se estivesse fazendo cavalinho para as duas filhas, quando falava. Devia ser um ótimo pai. - Em vez de processarem a polícia, tinham que dar mais força. Eu, por exemplo, sempre fui a favor do esquadrão da morte.

Sandra fitava as próprias mãos. Sérgio também tinha os olhos baixos. Modestamente. Ao seu lado dona Leonor, gorda e bonachona, parecia estar pensando em outra coisa. Bolos e costuras, a sua segurança. Nós finalmente encontramos o inimigo, pensou João, e ele tem a cara de uma tia boa. O Lima disse que realmente os marginais estavam se passando. Seu Leiva arrematou:

- E agora estão aí os comunistas de volta para pôr lenha na fogueira. Baderna é com eles.

Seu esquerdinha veado! Filhinho de papai. Está pensando o quê? Sérgio falava com o rosto bem perto do de João. Não fizera nenhuma questão de esconder sua identidade. Forçava João a lhe olhar na cara. Comunista tem que morrer! Ele tinha um apelido. Como era? Um nome de bicho. Ele mesmo se chamara pelo apelido. Para enfrentar o... tem que ter culhão. Tu tem culhão, veado? A mão entre as pernas de João para apertar os testículos. Cara a cara. Mas ele enfrentara o bicho. Perdera os sentidos antes de trair os companheiros.

- Proponho uma votação.

A sugestão foi de Müller, do terceiro. Sérgio concordou sorrindo.

- Afinal, a abertura democrática está aí mesmo.

- Mas se o nosso amigo aqui votar contra...

Sandra interveio:

- Se ele votar contra, eu voto a favor.

Risadas e palmas.

- Aí, hem? Uma rebelião dentro de casa.

Sandra se justificou.

- Cada vez que a gente põe o carro na garagem, de noite, eu sempre tenho a certeza que vai aparecer alguém para nos assaltar.

- Nem me fale - disse a senhora Pires.

Miranda levantou-se um salto. Foi buscar mais cerveja. A senhora Miranda anunciou que na mesa da sala de jantar tinha salgadinhos para quem quisesse. Alguém gritou:

- Já estou começando a gostar da vizinhança!

Não havia mais constrangimento entre eles. Todos eram mais ou menos da mesma idade e da mesma classe. Se entendiam bem. Seria um prédio feliz. Seu Leiva, o síndico, disse que havia outros assuntos para tratar. As crianças estavam enchendo a piscina de barro. Até uma tartaruga aparecera na piscina. Mas Pires, a caminho dos salgadinhos, declarou:

- Fica para depois da comida, seu Leiva!

Nunca mais tinha ouvido falar em Sérgio. Não sabia se era do DOPS ou militar. O pai não queria saber nada a respeito. O senhor acha que eles tinham razão de me torturar, papai? Eu só acho que você perdeu muito tempo com esse negócio de política. Vai cuidar da tua vida, formar uma família. Você não vai reformar o mundo. Podia ter morrido, podia ter matado a sua mãe e a sua mulher de desgosto e não teria mudado nada.

Um dos companheiros tinha desaparecido. Dois tinham se exilado. Mas ele não traíra ninguém.

Acabaram ficando sozinhos na sala dos Miranda. Os outros rodeavam a mesa na sala de jantar. O Lima contava outra anedota. João ficara numa poltrona. Sérgio no sofá. Cara a cara.

- Vocês são do sétimo, certo?

- É, e vocês...

- Oitavo. Conheço o seu guri. O Vado.

- Vladimir.

- É um pouco mais moço do que o meu, o Serginho.

- Ele tem nove.

- O Serginho vai fazer nove. Se dão muito bem.

- O Vladimir nasceu dois anos depois que eu fui solto. Até havia dúvida se eu podia ter filhos. Depois do que me fizeram...

Por que eu não disse “depois do que vocês me fizeram”? pensou João. Sérgio não mudou de expressão. Ficou em silêncio, olhando para João. Talvez estivesse tentando se lembrar. Mas continuou em silêncio. João falou mais. Estava calmo. Era estranho. Não sentia nada.

- Passei mais de um ano com dores. Quase não conseguia dormir.

O que era aquilo? Um apelo ao remorso? Você não tem jeito, João. Dona Leonor veio saber se o marido queria alguma coisa da mesa. Ele disse que não. Dona Leonor se virou para João.

- E o senhor, não quer nada?

- Só quero que a senhora não me chame de senhor. Obrigado.

Os dois de novo sozinhos. Sérgio tomou um gole de cerveja. Ainda em silêncio. João perguntou:

- Como era o seu apelido? Você tinha um apelido.

- Eu?

- É. Não consigo me lembrar.

- Faz tanto tempo.

O filho da puta se lembrava de tudo. Se lembrara de tudo no momento em que vira João. Por alguma razão, João considerou isto uma vitória.

- Eu não me esqueci de nada. Só do seu apelido.

Os outros começaram a voltar para a sala. O Lima do quinto combinava a inauguração da churrasqueira do prédio para o próximo domingo. Todos se cotizariam para comprar a carne. A não ser que o João não quisesse pagar, é claro. Todos riram. João disse que ia pensar no assunto.

- O que é que o amigo faz? - perguntou Miranda a João. - Desculpe a indiscrição.

João era economista. Deu o nome da firma em que era assessor da diretoria. Isso impressionou os outros. João dissera o nome da empresa exatamente para impressionar os outros. Era sua credencial do condomínio, também tinha o que defender da horda.

- Você também tinha um codinome.

João olhou rapidamente para Sérgio. Os outros não estavam ouvindo.

- Eu?

- Tinha. Me esqueci como era. Essas coisas não têm mais importância.

Dona Leonor se sentou ao lado do marido no sofá. Pôs a mão na sua coxa como se fosse um dever. Falou para João.

- O filho de vocês é um mimo!

- Eu ainda não conheci o Serginho...

- Eles vivem no apartamento um do outro. São unha e carne.

João se lembrava. Era verdade. Também tinha um codinome na época. Um bicho. Qual? Diabo de memória. Era importante. A senhora Miranda chamou as mulheres para verem o resto do apartamento. O único do prédio que já estava completamente decorado. Sandra era a mais animada. Dona Leonor foi junto. O Pires lançou a idéia de usarem a parte sem pavimentação da área de lazer para jogarem futebol. João estava ferido. O filho da puta ainda o forçava a lhe olhar na cara. Nenhum remorso. O Pires perguntou se João gostava de futebol.

- Gosto, gosto. Estou um pouco fora de forma, mas...

Seu Leiva insistia para que discutissem a questão da piscina. João inclinou-se na poltrona. Sérgio estava falando baixo.

- Soubemos quem você era. Filho de quem. Seu pai mexeu os pauzinhos e você foi solto.

- Meu pai não mexeu pauzinho nenhum. Vocês me soltaram porque não conseguiram me dobrar. Me quebraram, mas eu não traí ninguém.

Sérgio fez um gesto com as mãos. Uma das mãos segurava o copo vazio de cerveja. Queria dizer que não tinha importância. Que não pretendia discutir mais o assunto.

- Já podemos formar os times - disse o Pires. - Dá cinco para cada lado. Fora a gurizada, é claro.

- Vocês não me dobraram!

- Pode ser grenal. Quem é que é colorado aqui?

- Eu - disse João.

- Eu - disse Sérgio.

- A gente podia fazer um futebolzinho antes do churrasco, domingo.

- Eu topo - disse Sérgio.

- Contem comigo - disse João.

No interrogatório um deles, um preto grande, tinha dito, esses burguesinhos se entregam logo. Burguesinho de merda. Mas ele não traíra ninguém. Ele não se entregara. Como era mesmo o seu codinome? Fazia tanto tempo.


- Pai, o pai do Serginho mandou dizer que é pra tu não esquecer o dinheiro da carne.

- Está bem, Vado.

- Ué, me chamando de Vado?

- Vladimir. O seu nome é Vladimir. Nunca esqueça isso.

Talvez tivesse denunciado alguém. Depois de inconsciente. Talvez tivesse falado. Um dos companheiros tinha desaparecido.Dois tinham se exilado. Mas ele não traíra ninguém. Conscientemente, ninguém.

Fazia tanto tempo. No futebol, domingo, antes do churrasco, arranjou para não ficar no mesmo time com Sérgio. Isto, pelo menos, não. No morro, do outro lado do muro, uma multidão se reuniu para ver o jogo deles. Depois o churrasco e o banho de piscina. João tentou discernir os seus rostos mas não enxergava a expressão de ninguém. Procurou uma maneira de mostrar que estava daquele lado do muro mas na verdade não estava, estava do lado deles. Codinome... Mas não havia maneira. Quando começou a escurecer, deixaram a piscina e entraram no palácio. Vado foi ver os “Trapalhões” no apartamento de Serginho.


Este texto está no livro Outras do Analista de Bagé.


Fonte: PortalLiteral

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A lei e a lei do cão, matéria da Caros Amigos

A lei e a lei do cão
por João de Barros

Valdinei de Souza Silva, o Nei da Silva, é preto e pobre. Aos 31 anos, é um dos ativistas sociais mais conhecidos na cidade do Embu, na Grande São Paulo. Escultor, poeta, professor de música, ator de teatro, coordenador da Primeira Semana Lítero-Cultural da cidade, militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), sempre lutou por igualdade étnica e social. Entre seus trabalhos voluntários, ele leva em conta o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) das comunidades mais carentes, mais propensas ao tráfico de drogas. No dia 12 de setembro passado, Nei estava de bicicleta – procurava gente para o seu grupo de teatro –, numa entrada da favela São Marcos e deu com dois rapazes, negros como ele, e começou a conversar. Entusiasmado, convidava os jovens para participar de uma peça que seria encenada dali a seis meses.

“Cadeia é um bagulho muito louco e, pior, se o Choque entrar vai sobrar pra todo mundo”

Então, surgem os policiais militares William Ricardo Pereira e Cláudio Antônio de Moraes, a pé, apontando armas e gritando: “Mão na parede! É polícia!” Nei sabia como são as batidas policiais. Reclamou da abordagem, mas afinal aceitou levar mais uma revista geral. Os policiais encontraram, dentro de uma sacola de supermercado que estava com o adolescente EAS, cem pedras de crack, vinte papelotes de cocaína, 51 porções de maconha e 312 reais em notas de pequeno valor. O menor confirmou ser dele a droga e que Nei e o menor MVO nada tinham a ver com a história. “Os três vão pro distrito”, sentenciou um policial. Nei tentou argumentar. Não tinha passagens pela polícia. Não conhecia os rapazes; arregimentava-os para levar ao teatro. Nunca mexera com drogas, portanto não era traficante, como diziam os policiais. Era um artista, que se dedicara à criação de uma casa de cultura, da biblioteca na favela do Inferninho. “Artista? Você é um negro fuleiro, corruptor de menores, um bandido filho da puta”, respondia o soldado William, também ele um negro. No Brasil, há muito tempo as PMs aboliram o princípio do direito da presunção de inocência. Todos acham que o tráfico de drogas usa os menores, para livrar a cara do adulto. Esse caso, para eles, era típico.

Preso número 494773-5
Na delegacia, os policiais contaram a seguinte versão: eles receberam “a informação do tráfico de drogas no local e depararam com Valdinei e os menores vendendo os entorpecentes, evidenciando-se considerável grau de organização e eficiente divisão de tarefas – com Valdinei fazendo a vigilância na extremidade da viela e o EAS menor revendendo as drogas”. Tratava-se, pois, de um crime hediondo, sem os benefícios da progressão de pena e reclusão de cinco a doze anos em regime fechado. O delegado Higino Grizio mandou então lavrar o boletim de ocorrência com o que lhe foi relatado. Ao ouvir as alegações de Nei, não quis saber de conversa. “Se você disser mais uma vez que o barato não é seu, eu lhe quebro na pancada”, ameaçou. E Nei foi levado para o Centro de Detenção Provisório (CDP) de Itapecerica da Serra, na tarde de 13 de setembro. Era o preso 494773-5.

Quando soube da prisão do marido, Ivanete Ferreira Barbosa, 40 anos, grávida do terceiro filho de Nei, que nascerá neste mês, ficou “em estado de choque, anestesiada, sem saber o que fazer”. Depois foi à luta. Inscreveu-se para as visitas dominicais no CDP e tratou de espalhar a notícia na cidade. Todos os que ouviam a história se solidarizavam com Nei. Jornais da região denunciavam o preconceito. Um abaixo-assinado, revelando a violência, teve mais de duzentas assinaturas. Os artistas do Embu – entre os quais Raquel Trindade, Wanderley Ciuffi, Tônia do Embu e Luiza Caetano – organizavam rifas para vender as obras por eles doadas para bancar um advogado.

“Às vezes eu pensava se eu não tinha evoluído e virado um gigantesco inseto, como o personagem do livro Metamorfose, de Franz Kafka. E desatava num choro incontrolado ao pensar na mulher, nos filhos. Porque é duro ficar na prisão sem culpa e ter de esperar ser julgado por um barato que você não fez"

Depois de uma semana trancafiado num lugar abafado, úmido, sujo e cheio de percevejos, onde se perde a noção do tempo porque mal se vê a claridade do dia, Nei foi para a cela 4, do raio 1 do presídio. Lá, viveu com até quarenta presos numa cela com capacidade para doze. “O Estado trata o preso como um aglomerado de bichos”, diz. Há presos que dormem no chão. A comida é ruim para todos. “Cadeia é um bagulho muito louco e, pior, se o Choque entrar vai sobrar pra todo mundo”, ensinaram-lhe. Por isso, não havia violência nem agressão verbal. Vigoravam o respeito, a disciplina de um com o outro, a paz forçada.

Na primeira visita que fez ao CDP, Ivanete viu que o que ela ouvia falar é, na verdade, muito pior. “Os funcionários são treinados para tratar a todos como joão-ninguém. A revista é o pior momento: você fica nua e faz três flexões de frente e de costas para as moças verem que não há nada escondido na vagina e no ânus. Depois há a passagem por várias portas de aço, quando vasculham suas coisas, furam a comida que você leva. Enfim, você entra numa cela apertada e fedorenta. Assim é o sistema carcerário.” Quando voltava ao barraco onde mora, no Jardim Idemori, em Itapecerica da Serra, ela levava um temor: o medo de uma rebelião. “Lá é um estopim. Meu medo era esse, de ele estar inocente naquele lugar e acontecer alguma coisa lá dentro.”

Cárcere de um inocente
Durante os 96 dias que ficou no CDP, Nei foi se familiarizando com o novo ambiente. Quando as trancas se abriam, ele encontrava cerca de 240 presos no pátio. Olhava para cima e via uma imensa grade. Sob os pés, cerca de 2 metros de concreto, que recobriam as mantas de aço. Ao redor do pátio, muros altíssimos, de uns 50 centímetros de espessura, igualmente permeados de telas de aço. Podia ver, ao longe, o portão de saída, numa muralha de ferros e cadeados. Pela lei, teria de ser julgado em 81 dias, portanto no dia 8 de dezembro. “Às vezes eu pensava se eu não tinha evoluído e virado um gigantesco inseto, como o personagem do livro Metamorfose, de Franz Kafka. E desatava num choro incontrolado ao pensar na mulher, nos filhos. Porque é duro ficar na prisão sem culpa e ter de esperar ser julgado por um barato que você não fez", conta Nei.

Para vencer o tédio e a revolta que sentia, passou a “ler feito um doido”. Lia os Pensamentos, de Che, Arte da Guerra, de Sun Tzu, Guerra de Guerrilhas, de Fernando Portela, obras de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Castro Alves, Augusto dos Anjos, além de viajar na República, de Platão, com dois amigos recentes. “A gente fazia a relação entre o mito da caverna e a cadeia. Víamos uma réstia de luz que vinha de fora. Aí, imaginávamos todos nós de costas para a entrada da prisão, de onde eram projetadas sombras de outras pessoas que, adiante do muro, mantinham uma fogueira acesa. Os presos então julgavam ser uma realidade essas sombras. Contudo, um deles foge, e descobre que elas são feitas por homens como eles, assim como todo o mundo e a natureza.”

O julgamento foi marcado para 18 de dezembro. Ele foi ouvido e mandado de volta ao CDP. Já anoitecia quando perguntaram pelo preso 494773-5. “Ih, caramba, o que vão inventar agora? Será que vão forjar mais crimes contra mim”, pensou. A notícia era outra: o juiz Ítalo Fernandes concedera-lhe liberdade provisória, depois de ouvir o advogado de defesa, Tadeu Galeti, desmontar a farsa dos policiais. Agora, até o Ministério Público pede a absolvição de Nei por “falta de provas”.

No entanto, a liberdade que lhe deram transformou-o num meio cidadão. Não pode sair de casa depois das 10 horas da noite nem antes de 8 da manhã. Se precisar viajar, tem de pedir uma autorização ao juiz. Mal pode andar pelos becos onde caminhava, por temer nova prisão. Nem retomar o seu cotidiano. Para ele, filho de um índio mineiro da tribo maxacali, nômade por natureza, “ser quase livre é ser quase morto”. E resume assim a sua chaga: “A polícia vê no negro, no favelado e na periferia o perigo. Isso caracteriza uma sociedade deformada, uma anomalia social. Nós, os pobres, trabalhamos para construir a riqueza da nação e somos, ao mesmo tempo, vistos como uma ameaça”.

Enfim a sentença...

No último 25 de janeiro, aniversário de 454 anos de São Paulo, Nei foi absovido pela Juíza de Direito do Embu, Denise Cavalcante Fortes Martins. Leia o trecho da decisão:

"Os elementos indiciários não se prestam à formação da convicção acerca da materialidade e autoria do crime imputado ao réu. Ante o exposto, e tudo mais que dos autos consta, com fundamento no artigo 386, inciso IV, do Código de Processo Penal, JULGO IMPROCEDENTE a ação e ABSOLVO o réu VALDINEI SOUZA SILVA, em relação à pratica do ato delitivo previsto no artigo 33 "caput" e artigo 35, combinados com o artigo 40, todos da Lei 11.343/06 por não existir nos autos indícios suficientes da autoria delitiva.

Transitada em julgado, procedam as anotações e comunicações necesárias. Publique-se, registre-se e intime-se.

Embu, 25 de janeiro de 2008."

João de Barros é jornalista.


Fonte: CarosAmigos

Comunidade Negra quer Leci Brandão como Ministra

Comunidade negra quer Leci Brandão como ministra, diz fundador da ONG Educafro

por Luana Lourenço
Repórter da Agência Brasil


Brasília - A cantora Leci Brandão é apontada por Frei David, fundador e conselheiro da organização não-governamental (ONG) Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes (Educafro), como a indicação da comunidade negra para substituir a ex-ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Matilde Ribeiro, que pediu desligamento do cargo hoje (1º).


“Frente ao erro da Matilde, nós entendemos que o governo Lula deve pensar com sabedoria e escolher um nome de consenso nacional. E nós achamos que o nome da Leci Brandão é o grande nome do momento”, afirmou.

Frei David contou que, em reunião após a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, propôs o nome de Leci Brandão para o cargo. E que a cantora “achou a proposta interessante” na ocasião.

“Eu estou procurando a Leci, não encontrei ainda; mas estou transmitindo oficialmente que nós, comunidade negra, estamos indicando a Leci Brandão como candidata a ministra das relações raciais”, anunciou. A cantora integra o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR).

Na avaliação de Frei David, Matilde Ribeiro “foi vítima de um problema maior”, porque existe, na sociedade brasileira, “um vício de escravidão, de uma nação onde só negros eram punidos”. Para ele, o governo deve dar mais atenção à Seppir, com aumento da dotação orçamentária da pasta, por exemplo.


Fonte: AgênciaBrasil

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