domingo, 10 de fevereiro de 2008

Gilberto Gil analisa o Patrimônio Intangível

Entrevista com o ministro Gilberto Gil para a revista Itaú Cultural, edição janeiro/fevereiro de 2008.

Uma Política de Ponta
por Marco Aurélio Fiochi
Ministro Gilberto Gil (imagem: Cia de Foto)
Em 1977, Gilberto Gil questionou, na canção De Onde Vem o Baião, a origem dos ritmos musicais nordestinos. A resposta, presente em versos como "Debaixo do barro do chão da pista onde se dança/Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino/[...]/Que sobe pelo chão/E se transforma em ondas de baião, xaxado e xote", credita a uma dimensão imaterial o impulso criativo que dá vida a uma parte da riqueza musical brasileira. Coincidência ou não, o músico tratou poeticamente um aspecto cultural que, três décadas depois, ganharia espaço cada vez maior em sua gestão como ministro da Cultura. Nesta entrevista, concedida em seu gabinete, em Brasília, Gil demonstra entusiasmo com a cultura intangível: "Essa dimensão é a mais importante da cultura para uma parte enorme da humanidade hoje". Justiça seja feita, desde que assumiu o ministério, em 2003, a cultura intangível entrou de vez em pauta no Brasil, com as certificações de patrimônio imaterial concedidas pelo Iphan a celebrações, lugares, ritmos musicais e ofícios. Mas, segundo o ministro, este não é um mérito individual, já que o governo brasileiro é signatário de uma política mundial para esse setor, posta em prática pela Unesco. Lançando o olhar para um futuro que já se apresenta, Gil comenta ainda a interação crescente entre o patrimônio imaterial e a cultura digital.

Qual é sua visão a respeito da cultura intangível?
A cultura intangível é a parte mais importante, mais substancial da cultura. É a cultura que se processa pelos modos de comunicação. Com o crescimento das populações, especialmente em lugares onde prevalecem os cânones clássicos da cultura eurocêntrica, mas também na periferia do mundo, a cultura intangível se torna mais eloqüente, forte e flagrante. Trata-se da cultura oral, dos saberes, dos processos e das trocas simbólicas cotidianas, nas várias formas de linguagem utilizadas pelas pessoas. Essa dimensão é a mais importante da cultura para uma parte enorme da humanidade hoje. Eu diria que bem mais da metade da população mundial tem nessa dimensão cultural sua dimensão principal. Acho que o Brasil se encaixa com perfeição nesse modelo de povos novos, povos que se construíram com base em uma vivência cultural não formalizada.

Embora as manifestações da cultura oral e intangível sejam tradicionais e praticadas desde tempos imemoriais, essa questão só se tornou mais intensa no setor cultural com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, realizada pela Unesco em 2003. Como o senhor vê esse despertar relativamente tardio para um aspecto tão relevante de nossa cultura?
A Convenção nasce de uma importância crescente e indiscutível da dimensão do patrimônio imaterial. Ela consolida a atenção especial da humanidade para com o patrimônio imaterial. Por meio dela são criados instrumentos de consideração apropriada, definitiva e mais acentuada dessa dimensão cultural no mundo. A Convenção traz essa discussão a um campo institucional, para o plano da atuação do Estado nesse processo todo. Decorre disso o fato de que um dos aspectos fundamentais da Convenção é a autorização das nações para a prática de políticas culturais públicas, adequadas segundo seu entendimento, sua conveniência, suas expectativas e expectativas de seus povos. A Convenção coroa um processo natural de um conjunto de iniciativas mundiais tomadas pela própria sociedade internacional. A politização dessa discussão nasce nos países asiáticos, como a Índia e a China, em que a dimensão demográfica é de extraordinária importância e a diversidade cultural é imensa. Nesse continente, os processos orais, simbólicos, imateriais se dão de forma muito mais nítida, dramática do que na Europa ou em países onde prevaleceu, por força da acumulação de riquezas, do colonialismo, uma visão clássica de cultura e de patrimônio. Essa visão foi herdada pelos povos que, ao se assumir como novos, com suas necessidades especiais e peculiaridades, passam a reivindicar uma consideração à dimensão imaterial, intangível do patrimônio.

Um dos objetivos do poder público ao conferir títulos de patrimônio imaterial a determinados bens culturais intangíveis é assegurar sua preservação diante das transformações constantes por que passam a vida e a cultura. Como o senhor vê o aprofundamento do debate sobre a cultura intangível, que via de regra é também o debate sobre a cultura popular, no cenário contemporâneo?
A constituição de um corpo de leis e instrumentos regulatórios que possibilitem a preservação dessa cultura por parte do poder público nasce de um cuidado diante de ameaças de um processo natural, de construção da vida moderna e pós-moderna, que é avassalador, que vai obrigando as pessoas a se enquadrar. Mas outro aspecto importante é a necessidade identitária dos indivíduos e dos grupos sociais, seu auto-reconhecimento, sua autocontemplação. Não basta preservar das ameaças da atualidade, pois não se trata somente do risco de perder algo que é seu, mas, sim, da possibilidade de perder a si próprio. São duas questões, dois cuidados contemplados pelas iniciativas ligadas ao patrimônio imaterial.

Em sua gestão houve um empenho pessoal em promover o levantamento e a certificação dos bens culturais intangíveis como patrimônios. O senhor acredita que essa política poderá se tornar uma política de Estado?
Não vejo isso no futuro, é agora! Estamos fazendo uma política de Estado ao criar os estatutos da certificação. É uma política que se constrói agora e tem vida longa. Ela reflete um desejo e uma ação da Unesco - não por acaso a Organização é dirigida por um dos maiores entusiastas do patrimônio imaterial, o secretário Koïchiro Matsuura. A formação do secretário na esfera institucional da cultura vem do patrimônio imaterial no Japão. Ele veio para a Unesco para representar a grande demanda asiática pelo fortalecimento dessa dimensão. O governo brasileiro, por meio do Iphan, a autoridade cultural patrimonial do país, é signatário dessa política. Vários estados brasileiros, por meio de suas políticas culturais, também assumiram a questão do patrimônio imaterial como política, caso do Ceará, da Paraíba, da Bahia, de Minas Gerais. Alguns programas estaduais, como o do Ceará, são anteriores ao programa do Ministério da Cultura. Trata-se, de fato, de uma política do Estado brasileiro.

Os Pontos de Cultura do programa Cultura Viva, do ministério, poderão abrigar no futuro manifestações da cultura intangível?
Muitos deles já abrigam essas manifestações. São Pontos de Cultura ligados a populações indígenas e a remanescentes históricos da interação cultural afro-brasileira. Não só os Pontos de Cultura, mas também outros programas do ministério, outras vertentes do programa Cultura Viva já contemplam as manifestações certificadas como patrimônio. Se não os certificados, aqueles que estão em processo para se certificar. É uma forma de fazer com que essas manifestações cumpram seu percurso. Há um primeiro estágio, que é a afirmação da identidade, e num segundo momento sua exposição, difusão para públicos que não teriam acesso direto a elas.

Para as comunidades, qual é o impacto das ações planejadas pelo ministério para garantir a sustentabilidade dos modos de fazer e das celebrações da cultura intangível?
O associativismo é um passo natural para a visibilidade dessas comunidades, para que elas fortaleçam seus vínculos com as manifestações culturais intangíveis. Portanto, esses grupos passaram a se estabelecer como força política, como força empreendedorística, como força de protagonismo social. O associativismo é baseado na consolidação da cidadania. A primeira noção do associativismo é a politização, as pessoas se associam para se tornar corpos políticos. Claro que o ministério não vai fazer cidadania, não vai fazer de ninguém um cidadão, mas ele ajuda na medida do possível, dando ferramentas técnicas, materiais e conceituais. A parte conceitual é importante, pois dá às pessoas a visão, a noção sobre identidades e diversidades, sobre preservação e conservação, sobre o papel da sociedade e também do governo.

Enfocando aspectos mais contemporâneos da questão, gostaria que o senhor falasse a respeito de outra forma de patrimônio imaterial, constituído a partir do advento da cultura digital. Como o senhor vê o papel das obras de referência virtuais, a exemplo de enciclopédias, para assegurar a preservação da memória cultural?
Esse é um tema novo e importantíssimo. Acabo de chegar dos Estados Unidos, onde tive contato com a Internet Archive, instituição não-governamental criada por um egresso do mundo dos negócios no Vale do Silício, Califórnia, Estados Unidos. A instituição [criada em 1996 por Brewster Kahle] nasceu exatamente para preservar acervos com a digitalização. São arquivos, memórias variadas encontradas fragmentadas no campo digital, produtos que são conseqüência, são frutos da internet, bem como tudo aquilo que ela veio a abrigar do mundo analógico, das linguagens anteriores. Trata-se dos grandes filmes do mundo inteiro, do patrimônio musical, do teatro, da literatura. A instituição possui 200 bilhões de páginas da internet arquivadas, fora os 200 mil filmes digitalizados. Essa relação entre o patrimônio imaterial e o mundo digital está cada vez mais próxima, eles estão convergindo, não há como recusar isso.
Ouça trechos da entrevista.

3 comentários:

Anônimo disse...

Meus parabéns ao nosso MInistro da Culçtura, Gilberto Gil, pela importante atuação diante da Cuçltura Popular. Hoje somos valorizados como bens, somos lembrados pelas políticas de Estado.

Anônimo disse...

cultura e não culçtura

Yerko Herrera disse...

Valeu a visita, Fátima!

Beijão!