Duas Alegrias
Jorge Mautner
Folha de São Paulo - 20/09/2002
Eram dois pequenos apartamentos situados no mesmo andar de um edifício miserável das periferias. Era também um dia de muita chuva. No apartamento da esquerda, um jovem de 18 anos esperava ansiosamente a sua namorada e preparava com muito carinho o ambiente do seu pobre lar. Limpou pela décima vez a poeira dos poucos móveis de pIástico poluído que possuía e trocou mais uma vez a água do jarro que continha aquele par de rosas vermelhas que ele comprara barganhando muito com o florista, argumentando que elas estavam quase murchas, e estavam mesmo. Sorriu satisfeito e, olhando ansiosamente para o seu relógio de pulso, conferiu a hora da chegada do seu amor. E pensou: "Pronto, está tudo preparado, o nosso ninho de amor, assim como nos ensina aquele livro japonês sobre a arte de amar. Será que Josefina não vai se atrasar? Ah! Este trânsito infernal das megalópolis!".
No apartamento da direita, urn homem de 48 anos, tossindo muito corn bronquite crônica, chorava sem parar derramando muitas lágrimas em uma fotografia de urna menina de 12 anos e que era sua filha e que fora assassinada por urn casal de sádicos. O assassinato ocorrera há mais de dois anos e a sua filhinha, cujo nome era Dorotéia, fora sequestrada pelo dito casal sádico e numa noite de orgia, exatamente dois anos atrás, fora amarrada na cama e obrigada a fumar crack e em seguida torturada e estuprada até a morte. Após o crime, o cadáver foi encontrado numa lixeira e, como o pai de Dorotéia era pobre, assistiu a impunidade reinar sobre mais este caso de terrível e hediondo crime.
Naquela noite, o pai da menina hediondamente assassinada - e cujo nome era José - pensava enquanto chorava segurando o retrato da filha: "Sim, hoje será a noite da ira sagrada, da vingança justificada, porque, como disse Jesus de Nazaré, “quem fizer mal a um destes pequeninos que me acompanham, melhor seria que amarrassem uma mó de atafona ao redor do seu pescoço e o jogassem no fundo do mar”, e também está na Bíblia: olho por olho, dente por dente , e já que a polícia e a justiça da terra são inoperantes, vou fazer o que meu coração ordena que seja feito!". E fechando os olhos e parando de chorar, sorriu levemente e apertando a fotografia de sua pequena Dorotéia contra o seu coração, depositou a fotografia em cima da mesa, bem defronte de uma pequena estátua de Nossa Senhora da Aparecida, e em seguida abriu a porta do armário de roupas puídas e velhas, e de lá retirou um revólver de calibre 38 que comprara após muita economia. Em seguida saiu pela noite e foi procurar os medonhos assassinos. Eram quase seus vizinhos. Encontrou-os em plena orgia fumando crack desvairadamente, e sem piedade descarregou todas as balas do seu 38 em cima deles. Embora já estivessem mortos, carregou novamente o revólver comprado a muito custo e descarregou novamente todas as balas nos cadáveres hediondos. E foi com imenso sorriso de alegria que saiu daquele apartamento do demônio.
No mesmo instante, quando, no apartamento da esquerda, Josefina, a namorada do jovem de 18 anos, chegou, e ambos se beijaram, o sorriso da alegria do amor em seus olhos também brilhou!
***
Jorge Mautner é escritor e compositor. Sua obra literária completa está reunida nos três volumes da “Mitologia do Kaos” (editora Azougue)
Fonte: JorgeMauter saite oficial
domingo, 17 de fevereiro de 2008
Alegria é algo muito subjetivo - Confira em texto de Jorge Mautner
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