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segunda-feira, 26 de maio de 2014

Revista Fórum entrevista o poeta Sérgio Vaz

Sérgio Vaz, o poeta sonhador da quebrada, completa 25 anos de carreira

O escritor que inaugurou um movimento cultural nas periferias paulistanas celebra sua trajetória e reafirma seu compromisso com a militância pelas “quebradas”: “Se o opressor leu, o oprimido tem que ler também”
Por Igor Carvalho para revista Fórum
Sérgio Vaz é do tempo em que ninguém ouvia o soluçar de dor em seu canto no Brasil. Do seu verso de revolta fez nascer, com o poeta Marco Pezão, a Cooperifa, que inaugurou um dos movimentos culturais e sociais mais ativos e importantes das periferias de São Paulo, os saraus.
Completando, em 2014, 25 anos de carreira, Sérgio Vaz fez cumprir a profecia de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte em “Canto das Três Raças”, que diz: “De guerra em paz, de paz em guerra / Todo o povo dessa terra / Quando pode cantar, canta de dor”.
O canto triste de Sérgio Vaz é denúncia de uma periferia que luta contra o genocídio da população negra e jovem, que pede espaços culturais em vez de delegacias e unidades da Fundação Casa, que grita por dignidade, que insiste em formar leitores e que constrói “a Primavera de Praga da periferia”, como o poeta define os últimos dez anos de agitação cultural nas “quebradas”.
Este paulistano de Minas Gerais – “não fala que sou mineiro que eu fico bravo” – gosta de repetir que se soa triste, em sua obra, é por que ele é triste. “Tenho uma tristeza que me visita até nos dias de alegria”. Mas que esse sentimento não se confunda com ceticismo. “Antes, deixa eu só esclarecer uma coisa: não sou pessimista, sou realista”, diz o poeta, com a convicção de quem visita becos e vielas da zona sul de São Paulo há 45 anos.
Ao todo, é autor de sete livros que venderam, somados, 30 mil exemplares. A obra do poeta o levou a seis países, para participar de feiras literárias e congressos. Das viagens, internacionais ou não, Vaz sempre traz reproduções de Dom Quixote, o personagem central da obra homônima de Miguel de Cervantes. “Esse livro salvou minha vida”, diz o poeta, que já possui mais de 30 reproduções do herói da literatura espanhola, entre elas, uma de 2 metros, instalada no quintal de sua casa.
Sobre a Cooperifa e seu tradicional sarau organizado no bar do Zé Batidão toda semana, Vaz se derrama. “É por isso que vale a pena estar vivo. Depois de cada quarta-feira, eu percebo que a vida, ainda que fútil e dolorida, é um milagre.”
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Hoje, um moleque, na quebrada, que tem uma noção artística, vai tocar violão, vai para o sarau, vai cantar um rap, mas e nos anos 70, em que você só seria um jogador de futebol ou trabalharia na metalúrgica? (Foto: Anna Beatriz Anjos)
Sérgio Vaz – O moinho maior foi o seguinte: Meu pai veio morar em São Paulo, antigamente era assim, primeiro vinha o pai, arrumava emprego e depois trazia a família. Bom, quando cheguei aqui tinha quatro anos, sou paulistano, não fala que sou mineiro que eu fico bravo, viemos morar em um cortiço aqui no Parque Santo Antônio (zona sul de São Paulo). Meu pai trouxe o hábito da leitura, ele era um homem que gostava de ler e passou isso para mim.
Logo em seguida meus pais se separaram, numa época em que os pais não se separavam de jeito nenhum. Fiquei muito introspectivo com isso e meu pai começou a me dar livros pra ler. Mas olha quantos moinhos: nasci no Vale do Mucuri, perto do Vale do Jequitinhonha, que é um dos lugares mais pobres do mundo, meu pai, pobre, veio pra cá lutar, os pais separam, você mora na periferia de São Paulo nos anos 70. Mas olha, na minha casa nunca faltou comida e livro. Com 13 anos, gostava de ler mas não gostava de poesia, achava que era coisas de fresco e de maluco, esse povo que acorda e dá bom dia para o sol, abraça árvore [risos]. Já mais crescido, eu era o cara dos bailes blacks e jogador da várzea, jogava bola em time de favela, não ia pegar bem gostar de poesia, se é que você me entende [risos].
Bom, em 1983 vou servir o exército. Era ditadura militar e eu nem sabia que a gente vivia na ditadura militar, olha isso, vivia em Macondo [alusão a vila imaginada por Gabriel Garcia Marquez em Cem Anos Solidão], isolado, a periferia era nosso país, não saíamos daqui pra nada. Quando você é pobre, só descobre que foi triste na infância quando fica mais velho, porque o jovem é feliz em qualquer circunstância, nos escombros do Haiti o moleque consegue ser feliz. Bom, já no exército começo a me interessar por música popular brasileira e me afasto da black music, tinha algo naquelas músicas. Aí descobri as metáforas. Um dia, eu estava na cozinha do exército ouvindo uma música do Geraldo Vandré, na voz da Simone, “Pra não dizer que não falei das flores” e cantando alto, dentro do quartel. Eu nem sabia o que significava aquela porra. Entra o sargento: “Filho da puta, mocorondo, isso é música de Che Guevara, comunista”. Fiquei olhando e me interessei, pensei: ‘Caralho, mano, tudo isso dentro de uma música só?’.
A partir daí começo a me politizar pra valer, descubro o Lorca, que lutou contra a ditadura do Franco, e a poesia vira uma paixão. Aí descubro que a poesia não era só pra ganhar mulher. Nesse momento caiu na minha mão o livro 1968, o ano que não terminou do Zuenir Ventura. Malandro, saí do quartel e estava pronto para seguir Lamarca. Ali eu me torno poeta. Tem uma frase do Ferreira Gullar, em um disco do Milton [Nascimento] em que ele diz: “O canto não deve ser uma traição à vida. Só é justo cantar, quando seu canto arrasta consigo pessoas e coisas que não têm voz”. Pronto, eu queria escrever sobre isso, sobre liberdade. Descobri que queria ser poeta, e como ser poeta é uma construção, comecei a me preparar para isso.
Fórum – Uma vez, você reclamou: “Em toda entrevista que vou tenho que falar de periferia, de sangue, violência, PCC, rolezinho, e nunca consigo falar do quanto eu gosto do Carlos Drummond de Andrade, do Neruda, do Lorca, da Cecília Meireles”. Fala agora.
Sérgio Vaz – Quando entra o Dom Quixote na minha vida, jogava futebol e me achava um cara estranho. Hoje, um moleque, na quebrada, que tem uma noção artística, vai tocar violão, vai para o sarau, vai cantar um rap, mas e nos anos 70, em que você só seria um jogador de futebol ou trabalharia na metalúrgica? Só existiam essas duas opções, mas você gosta de literatura em um meio que ninguém gosta de literatura. Imagina, você joga no meio da malandragem, aí está esperando o contra-ataque e cutuca o zagueiro: “Então meu, leu o último do Jorge Amado?”. Pô, eu era muito estranho, muito apaixonado por literatura, aí caiu o “Dom Quixote” na minha mão, e esse livrou salvou minha vida. Terminei o livro e constatei que eu era um sonhador, e não tem nenhum problema em ser um sonhador.
Fórum – Incomoda, em algum momento, quando vão falar de você e é o escritor marginal, o periférico, o divergente…
Sérgio Vaz – Adoro isso. A periferia é a maioria, mano, sou o poeta da maioria, podem colocar na estante da livraria, “poeta da periferia”. Sou da periferia, assumo isso. Se eu fosse “poeta da classe média” seria chato, menor, teria menos gente me lendo. Sempre vi dragões em lugar de moinhos de vento, encontrei a felicidade quando encontrei a poesia, era pobre, da periferia, sonhador pra caralho, a poesia me possibilitou continuar sonhando nesse ambiente.
Fórum – Quais escritores mas te influenciaram?
Sérgio Vaz – Pablo Neruda com certeza, não vou nem falar o Gullar porque depois ele virou outra coisa, os textos dele de hoje, nossa, enfim… Miguel de Cervantes, Julio Córtazar, Vargas Llosa, Gabriel Garcia Marquez, os latinos mesmo.
Fórum – Quando você lê esses latinos, enxerga as mesmas periferias e os mesmos problemas sociais que você vive e vê?
Sérgio Vaz – É a mesma coisa. No começo do livro Cem anos de solidão, os Buendías são tratados como loucos e fazem o quê? Vão fundar outro bairro, vão ocupar uma outra área, o que é isso? Periferia. Aí, é o mesmo sofrimento.
Fórum – Em alguns poemas seus, a construção lembra uma música de rap. Qual a importância desse gênero na sua trajetória?
Sérgio Vaz – Tenho gratidão pelo rap. Lá atrás, com o pseudo fim da ditadura, os caras da MPB param de falar de problemas sociais, parece que tudo ficou bom só por que não tem mais um militar no poder. Nesse momento, escuto Racionais MCs cantando “Fim de semana no parque”. A MPB não fazia mais efeito. Quando escuto “Fim de semana no parque”, falando do Parque Santo Antônio, que é o bairro que eu moro, só quem falava da gente era o Gil Gomes e o Afanázio. Porra, então eu estava à toa na vida, vendo a banda passar, e não percebi esses caras?
Reposiciono, então, minha poesia e meu interesse, começo a seguir o hip hop, parei de ir ver show do Chico e do Caetano. O rap deu o gripo de independência da periferia. São eles que vão começar a falar de Malcom X, de Martin Luther King e de Steve Biko. “Dia de luz, fesa do sol, um barquinho a deslizar, no macio azul do mar”, que lindo né? Mas essa era a vista da janela deles, não a nossa. Aqui, quando se abre a janela, eu vejo o que o Gog e os Racionais falavam.
Fórum – Aí vem seu primeiro livro.
Sérgio Vaz – Sim, em 1988 lanço Subindo a ladeira mora a noite, meu primeiro livro. Com o livro eu começo a me posicionar culturalmente na periferia, porque eu ia no Bixiga [região central e boêmia de São Paulo] para ter cultura, comecei a mexer na geografia da cultura na minha cabeça, comecei a falar com os meus daqui, como Fela Kuti. Entendi, então, que quem queria me ouvir estava aqui, na minha rua, na minha quebrada. Começou, aí, a nascer a mentalidade Cooperifa na minha cabeça. Quando eu ia para o centro, já ia com outro olhar, comecei a ver que as pessoas eram todas brancas, de classe média, eu não era nada disso. Aí começo a ser um engajado periférico descarado.
Fórum – Você tinha trabalhos paralelos nessa época, ainda?
Sérgio Vaz – Sim, trabalhei em banco, fui vendedor, auxiliar de escritório, assessor parlamentar em Taboão da Serra. E, sabe, isso era uma loucura na minha cabeça, porque eu queria me dedicar à escrita, eu queria viver da arte e não podia. Essa casa aqui que estamos, eu comprei faz três anos só.
Fórum – Há três elementos muito fortes em sua poesia, a ironia, a metáfora ou o trocadilho.
Sérgio Vaz – Gosto mais da ironia. Ela bate no cara e o cara gosta. Ele dá risada. Você faz a ironia e o cara não entende nada, é como o sistema faz com a gente. As metáforas, nos dias de hoje, não caem tão bem, vivemos um momento em que as questões devem estar colocadas mais às claras, vivemos um outro tipo de censura que vivemos.
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“A periferia é a maioria, mano, sou o poeta da maioria, podem colocar na estante da livraria, ‘poeta da periferia’. Sou da periferia, assumo isso” (Foto: Anna Beatriz Anjos)
Sérgio Vaz – Eu não sou feliz. Tenho uma tristeza que me visita até nos dias de alegria. Tenho meus momentos de alegria e de euforia, mas é engraçado, não consigo ser feliz. Não nasci pra ser feliz. Fico feliz no boteco com os chegados ou na várzea.
Fórum – Por que?
Sérgio Vaz – Eu vendo alegria, os poetas vendem alegria, mas sou triste. Não sei se é o país, se são as pessoas, mas me sinto responsável por muita coisa. Outro dia, fui visitar uma favela aqui e entrei na casa do cara, um barraco de madeira, um rato no meio da sala, o esgoto passa no meio do barraco, saí de lá arrasado. Como ser feliz assim? Aí você bebe mano, porque o mundo sem álcool é foda. Não consigo ir no shopping comprar um tênis novo, me sinto mal. Aí gosto de livros tristes também. O [Ernest] Hemingway falava que para ser um bom escritor tem que ter tido uma infância triste, então estou pronto.
Fórum – Tua infância foi ruim?
Sérgio Vaz – Não, ela foi sem privilégios, mas foi rica.
Fórum – Falando dessa tristeza, me lembro de “Jorginho”, que acho seu poema mais triste.
Sérgio Vaz – É o mais triste mesmo. Antes deixa eu só esclarecer uma coisa, não sou pessimista, sou realista. Muito tempo atrás, acho que em 1999, estava em uma favela e visitei o barraco de uma senhora. Mano, mesmo dentro da favela, tem classe A, B e C. O barraco dela era classe C, muito debilitada a situação daquela família. Tinha uma vala que passava do lado do colchão, só merda. A dona do barraco estava grávida e tinha mais cinco filhos. Fiquei olhando pra barriga daquela mulher e pensando: “Se eu fosse esse moleque, me enforcava com o cordão umbilical”. O que esse moleque vai ter na vida, já tem mais quatro para dividir tudo aqui.
Fórum – Você é disciplinado para ler e escrever?
Sérgio Vaz – Começo a ler 6h, leio o jornal. Estava lendo Filho dos dias, do Eduardo Galeano, terminei hoje. Semana passada terminei O Filho eterno, do Cristovão Tezza. Mas ontem, inclusive, eu estava em Brasília, dando uma palestra, tinha 100 pessoas. Na sala ao lado, 100 mil pessoas vendo o Galeano na palestra dele. E eu me perguntando o que os caras estavam fazendo na minha, porque se eles fossem para a do Galeano eu também poderia ir [risos].
Fórum – Em “O machado, o talarico e a racha” você tira um sarro do Dom Casmurro, usando a oralidade da periferia. Qual a importância dessa oralidade no seu trabalho?
Sérgio Vaz – Amo esse livro. Eu quis fazer uma brincadeira com esse lance da obrigatoriedade, da imposição de se ler determinados livros. Quando você lê Olhai os lírios do Campo ou Dom Casmurro com essa obrigação, não entende. Aí, decidi fazer uma versão que o intelectual não ia entender, coloquei tudo no nosso dialeto e ele que procure alguém da quebrada pra traduzir. Outro dia comecei a ler uma crônica do [Carlos Heitor] Cony, no jornal, e ele começa em alemão, caralho. Quer dizer, se você não entende alemão, não está no mesmo nível, então não serve para ser leitor dele. A oralidade ajuda na generosidade, você pode ler meu livro para alguém ouvir, ajuda na formação de público. Precisamos de mais gente lendo, e essas pessoas só vão ler se conseguirem se identificar com o que está sendo dito. Se eu começar um texto em alemão, não formo público, só reproduzo discurso.
Fórum – Você se orgulha mais dos poetas que a Cooperifa formou ou dos leitores que a Cooperifa formou?
Sérgio Vaz – Dos leitores. O meu trabalho, o trabalho da Cooperifa, é formar leitores. É um paradoxo maluco nosso tempo. Cada dia tem mais filmes, mas cada dia tem menos cinemas. Precisamos formar leitores, não adianta ter 100 livrarias se ninguém vai ler. O [Hugo] Chavez distribuiu um milhão de exemplares do “Dom Quixote”, é isso, tem que formar uma cultura de leitura. Se o opressor leu, o oprimido tem que ler também.
Fórum – Você escreve crônicas. Em que momento a poesia deixou de bastar para o Sérgio Vaz? Você pensa em escrever um romance?
Sérgio Vaz – A crônica surgiu a partir do blogue, a poesia é muito concisa, ela te cobra uma síntese que é cruel. Na crônica, eu posso dar opinião, e eu peguei gosto nisso. E eu sou fã, e me inspiro, no [Eduardo] Galeano e da Cecília Meirelles, escrevendo crônicas. Acho que é algo que vai caminhar comigo sempre, gosto das crônicas. Sempre quis escrever um romance, mas para isso teria que ser mais minucioso, sou muito ansioso, no meio do livro já ia dizer quem matou o cara, não daria certo. Sou um relaxado.
Fórum – O que significa uma quarta-feira, dia do sarau da Cooperifa, na sua vida?
Sérgio Vaz – Puta que pariu, você me pegou [longa pausa]. É por isso que vale a pena estar vivo. Depois de cada quarta-feira, eu percebo que a vida, ainda que fútil e dolorida, é um milagre.
Fórum – A quarta-feira é dia de futebol na TV, o sarau da Cooperifa, inclusive, é no horário da novela, muita gente tem internet em casa. Do outro lado da cidade, o cinema é mais barato. Mesmo assim, toda quarta-feira, tem entre 200 e 300 pessoas ouvindo poesia na Cooperifa. Tem momentos que você se pega pensando nessas coisas durante o sarau?
Sérgio Vaz – Tem, várias vezes. Caralho, mano, acho que é por isso que eu vim pra essa vida, sem brincadeira, vim para juntar gente. Uma das funções da Cooperifa é, também, refundar a amizade. As pessoas são obrigadas, ali, a sentar juntas, elas deve ficar em silêncio e contemplar. Em doze anos, nunca teve uma única briga.
Fórum – Deus está muito presente na sua obra, sempre com ceticismo. Você acredita em Deus?
Sérgio Vaz – Já chamei muito por Ele. Principalmente quando jovem, assustado com as coisas da vida. Aí chegou uma época da vida que cansei e falei: “Quer saber, Ele que vá tomar no cu dEle”. Deus que vá atender aos pedidos de quem Ele sempre atende, aqui Ele não vem mesmo. Então, assim, não me preocupo com nada em relação à religião, sou ateu mesmo e cada vez que caminho na rua, tenho mais certeza que Ele não existe. As pessoas estão provando que Ele não existe, porque se somos a imagem e semelhança de Deus, então estamos fodidos.
Fórum – Neste ano, lembramos o centenário da Maria Carolina de Jesus…
Sérgio Vaz – Primeira vida loca da história [risos].
Fórum – Você está com 49 anos, daqui mais meio século, como acha que será lembrado em seu centenário?
Sérgio Vaz – Sou um poeta simples, de rua. Quero ser lembrado como um sonhador. Nada mais. Sou o poeta do amor, até para falar de uma causa, você precisa amar essa causa. Nunca escrevi contra, por que para escrever contra precisa ter ódio, escrevo a favor dos nossos. Talvez, também, eu seja um covarde, que decidiu escrever poemas para defender suas causas, porque se eu tivesse coragem faria uma revolução, ia pra rua de arma na mão.
Fotos: Anna Beatriz Anjos
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Veja também:

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Veja Programa sobre Antropofagia na Cultura Brasileira

No dia cinco de março deste ano, foi ao ar no programa Starte, da GloboNews, uma matéria muito interessante sobre o Manifesto Antropófago. Oswald de Andrade, inspirado pelo Abaporu, de Tarsila do Amaral, publicou o manifesto em maio de 1928. Assista a seguir o programa completo.

De uma obra de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade publicou um manifesto que se tornaria ícone da cultura brasileira e antropofágica. Depois, Mário de Andrade aderiu ao movimento com a obra Macunaíma. (fonte:
Starte)

Antropofagia na Cultura Brasileira



Abaporu vem de 'aba' e 'poru' e significa o mesmo que Antropofagia, que vem do grego antropos (homem) e fagia (comer), ou seja, "homem que come", em tupi-guarani. Foi pintado em óleo sobre tela em 1928 por Tarsila do Amaral para dar de presente de aniversário ao escritor Oswald de Andrade, seu marido na época. (fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre)


Confira também
Tarsila do Amaral - Curiosidades e Textos
Tarsila do Amaral - Vida e Obra

sábado, 6 de setembro de 2008

Vídeos com Waldick Soriano

Fazem parte da coletânea no reprodutor abaixo os seguintes vídeos:

1. Paixão de um Homem, Waldick interpreta a canção num de seus shows
2. Você Mudou Demais, com Waldick Soriano e Cláudia Barroso
3. Waldick Soriano no programa Buzina do Chacrinha (Rede Globo), em 1972
4. Perfume de Gardênia, com Waldick Soriano
5. Eu vou ter Sempre Você
6. O Dia em que Waldick Soriano foi à Sucupira, trecho da série O Bem-Amado com participação do cantor
7. Show de Waldick Soriano no Sucupirão, do seriado O Bem-Amado

Waldick Soriano - Diversos Vídeos


Waldick Soriano em entrevista com Marília Gabriela

Polêmica entrevista concedida por Waldick Soriano ao extinto programa TV Mulher.



Confira também:
Morre Waldick Soriano
Waldick Soriano, legítimo representante da Música Popular Brasileira
Bandas de rock prestam tributo ao brega

sábado, 16 de agosto de 2008

Homenagem a Dorival Caymmi

O que é que a bahiana tem - Dorival Caymmi

Trecho do documentário Um Certo Dorival Caymmi.

Nunca Mais - Dorival Caymmi

Dorival Caymmi canta "Nunca Mais" de sua autoria, em fragmento extraído do filme Estrela de Manhã produzido em 1950, com argumento de Jorge Amado, roteiro de Rui Santos e direção de Jonald Santos. As músicas eram do maestro Radamés Gnattali e de Dorival Caymmi. (Fonte:
BossaFilmes)

Caetano Veloso entrevista Dorival Caymmi

Trecho do filme Bahia de Todos os Sambas, de Paulo Cesar Saraceni e Leon Hirszman. Gravado em Roma (1983) e lançado em 1996. (Fonte:
Tavares38)

Só Louco - Dorival Caymmi e Gal Costa

Apresentação de Dorival Caymmi e Gal Costa, em 1981.

O Mar - Dorival Caymmi

Contém trecho de filme de 1940, com participação de Dorival Caymmi. Caymmi confessa no vídeo que seu desejo é que ele fosse lembrado pela canção "O Mar".

Dorival Caymmi e Silvio Caldas

Fragmento do programa Fantástico, de 1974, com Dorival Caymmi e Silvio Caldas interpretando algumas canções.

Dorival Caymmi - Saudade da Bahia (clique para assistir)

domingo, 27 de julho de 2008

Jards Macalé em entrevista

Leia abaixo reprodução de uma entrevista bacana feita com Jards Macalé, por Jarmeson de Lima, para a revista eletrônica Coquetel Molotov.


Jards Macalé
por Jarmeson de Lima

Se tem uma figura na música brasileira digna de respeito e que até agora não obteve um valor devido, este é Jards Macalé. Suas músicas e composições alcançaram e ainda alcançam vôos maiores do que ele. Mas diferente de ser lembrado como “o autor de Vapor Barato” ou como protagonista da polêmica canção/performance “Gotham City” no IV Festival Internacional da Canção, Jards é um sambista inquieto. Mas não só sambista, claro. Ele poderia muito bem viver à sombra de seus velhos sucessos com shows quadrados e lineares. Mas ele mesmo, fugindo ao apelido jocoso de infância, é respeitado na música brasileira justamente por quebrar e fugir dessas regras.

Basta assistir a um show dele para entender isso. Virei fã imediato dele ao ver um desses shows. Incomum, particular e criativo de sobra. E com o projeto “Samba de Breque e outras Bossas”, realizado pelo Circuito Cultural Banco do Brasil, ele veio ao Recife, quando consegui falar com ele para realizar esta entrevista. Sendo assim, com vocês, o talento de Jards Macalé traduzido nesta entrevista, onde muito bem à vontade, ele relembra suas histórias e conta sua vida com muito bom humor.

"Quando eu escolhi fazer arte, e aprendi com os grandes mestres o que pra eles é arte e criação, eu não pensei mais em mercado. Eu apresento meu trabalho é para as pessoas"

Pra começar, queria saber a sua opinião sobre uma coisa. Geralmente os artistas no Brasil são enquadrados na categoria MPB: Música Popular Brasileira. Você como sendo um músico brasileiro, se considera popular?
Eu sou brasileiro e faço música brasileira, independentemente de cantar em inglês, francês, iraniano ou japonês. Já popular... isso é mais relativo. Existe o popularesco, existe forçação de barra pra ter popularidade e existe o popular. Pra mim, popular mesmo é Dorival Caymmi ou uma música como essa aqui (começa a cantarolar): “Não há, oh gente, oh não! / Luar como esse do Sertão”. Popular é música do povo. Música que fica no inconsciente coletivo. Então se me perguntassem se sou popular, eu responderia como Zé Kéti (cantando): “Tenho muitos amigos / Eu sou popular / Tenho a madrugada / Como companheira”.

E o que você acha de ter começado sua carreira carregando um apelido jocoso de infância, como sendo o pior jogador do Botafogo?
Ah, mas ele não era o pior jogador do Botafogo. Isso é sacanagem com ele, o Macalé, do Botafogo. Ele não era um jogador genial, mas também não era um merda como resolveram espalhar por aí. É porque realmente eu nunca joguei futebol bem. Eu gosto de futebol, o Brasil inteiro gosta, mas não tenho talento pra ficar jogando. O pessoal se aproveitava disso e ficava gritando: “Passa a bola, Macalé! Passa a bola, Macalé!”. Mas acabavam sacaneando o jogador Macalé, não a mim! (risos) Ou talvez os dois.

Mas você aceitou bem esse apelido?
Eu não me importo mais, mas a minha mãe na época odiou. Ela ficava dizendo “Meu filho, você tem um nome tão bonito, Jards! E seus amigos ficam lhe chamando de Macalé...”. Aí o Guilherme Araújo, que era o responsável por ter dado os nomes artísticos de todo mundo naquela época - tipo: Gal, virou Gal Costa; Caetano, ficou sendo Caetano Veloso; Gil, ficou como Gilberto Gil – me disse “O Jards vai ser Jards Macalé!”. E ficou! Mas agora a minha mãe já aceita porque viu no jornal, aparece na televisão... Aí perguntam: “Você é a mãe do Macalé?” e ela “Sim, sou”. (risos)

É difícil enquadrar sua obra num só estilo. Você vive constantemente mudando, tua música tem nuances diferentes e a todo instante tem algo diferente na obra de Jards Macalé.
É porque a gente muda, as coisas mudam, a vida muda... As pessoas estão em constante mutação. Eu acho que arte é um processo criativo e evolutivo. Você vai colhendo coisas e informações ao longo da vida e você vai criando e fomentando seu próprio estilo. Então quem exerce a sua atividade e quem escolheu ter como ofício a arte, tem que ter em mente essa constante evolução. Isso não quer dizer que a gente abandone o passado, se fixe no presente e abandone o futuro. É tudo ao mesmo tempo. É autônomo.

Interessante dizer isso porque outros artistas eventualmente mudam seu próprio estilo por pressão das gravadoras ou do mercado. E você se mantém até intacto com relação a esse mercado...
Mas eu não falo de mercado. Eu não gosto de falar de mercado. Eu não sou mercantilista. Quando eu escolhi fazer arte, e aprendi com os grandes mestres o que pra eles é arte e criação, eu não pensei mais em mercado. Eu apresento meu trabalho é para as pessoas. E como vivo de arte, esse também é um ofício como jornalistas, produtores, sorveteiros... cada um cumpre o seu ofício. No meu caso, eu apresento meu trabalho tal qual falei antes, que tá sempre em mutação, e quem quiser que veja e que critique. Na minha vida fui colhendo um público também crescente. Os que têm 50 anos hoje, me viram quando tinham 17, 18 anos. Agora os filhos desse público é que vêm me ver. Até mesmo os netos. E alguns não deixaram nunca de ir.

Realmente, a sua música tem atravessado gerações. Ultimamente, a gente tem visto um público mais novo indo atrás e descobrindo sua obra agora.
Pois é. Agora com a Internet e a disponibilização de coisas na rede, com mp3, baixando isso e aquilo, a informação ficou mais veloz e tudo ficou mais visível pra todo mundo. Se tiver um menino de 14 ou 15 anos que não me conhece, ele pode ir lá na busca do Google, escrever “Jards Macalé”, apertar search e encontrar mais de 80 mil referências sobre mim. Nessa hora, a pessoa vai acabar descobrindo quem eu sou por ali, com várias biografias, músicas, diversos momentos... Então tá lá, a informação está no ar.

Inclusive só agora muita gente tá escutando e conseguindo ouvir aqueles teus primeiros discos que tinham saído de catálogo e nunca mais foram relançados.
Por sinal, aqueles primeiros discos da década de 70, são tão vigorosos agora quanto eram naquela época. Por exemplo, eu fui fazer na Virada Cultural, de São Paulo, um show no Theatro Municipal. Escolheram fazer nesta apresentação, o show do meu primeiro disco de 1973 - na verdade, gravado em 1972 e lançado um ano depois. Nesse disco tem eu na voz e violão, e como compositores e parceiros o Capinam, Waly Salomão, Duda, Torquato Neto, além de Lanny Gordin na guitarra e violão e Tuti Moreira na bateria. Então pediram pra eu fazer o show desse disco em São Paulo. Formei a banda e como muita gente daquela época não tava, fui chamando quem podia: convidei o Lanny e mais outros músicos e trabalhamos para fazer ao vivo os mesmos arranjos daquele disco. A banda tocou de tal forma, o som saiu de um jeito tão bom, que ficou uma banda tão forte quanto uma banda de rock barra pesada. E vendo e ouvindo aquilo ali, o público veio abaixo! Pra você ter idéia de como tava, tinha gente pendurada até no lustre! (risos) Então eu acho que de 1972 a 2007, cumpriu-se um período fantástico onde o som desse disco se revitalizou.

Vale lembrar essa renovação de músicos que tocaram e tocam hoje contigo: se naquela época tinha Bethânia, Lanny, Luís Melodia, hoje você trabalha com Kassin, Pedro Sá...
É que eu gosto de estar em boas companhias. Eu só ando em boas companhias. As más companhias, já deixei há muito tempo. E eu nem convivi muito com elas depois que percebi que eram más companhias. E quando falo de boas e más companhias, eu falo de bons e maus músicos e artistas e falo também de pessoas que estão começando como instrumentistas, mas que você já começa a sacar o valor. Neste momento eu vou gravar com a Adriana Calcanhoto com quem eu já tinha trabalhado quando a convidei para participar do disco “Real Grandeza”, que tinha composições minhas em parceria com Waly Salomão. Então esse é o tipo de coisa que faz você reconhecer um ao outro. Não é só uma troca de gentilezas. É uma admiração mútua. Você vai juntando essas pessoas e vai tendo um leque maravilhoso. E como músico eu posso caminhar em qualquer forma de música desde que essa música me atraia, essa forma me atraia e eu consiga colocar tudo do meu jeito.

Por isso que cada show de Jards Macalé é bem diferente um do outro, não é?! Noutro ano vi um show seu com as Orquídeas do Brasil em São Paulo. E dia desses, num formato quase voz e violão. Mas qual é o formato de show que você mais gosta?
Eu já toquei com orquestra, toco sozinho, toco com três ou quatro pessoas. Dependendo do que precise, eu arranjo um formato que viabilize o trabalho. Aí posso fazer um show sozinho, com um percussionista, com mais uns dois músicos ou um trio, um quarteto, ou até mesmo uma orquestra sinfônica se deixarem. No caso das Orquídeas, isso foi muito legal porque me remeteu a um trabalho muito bacana que fiz com Itamar Assumpção há muito tempo, em 1986 e 1987... Noutra vez, aqui em Recife, fiz um show no Teatro do Parque, com o Mombojó, em 2004. O pessoal lá do Projeto Seis e Meia perguntou ao Mombojó com qual artista eles gostariam de tocar e eles disseram: “Macalé!”. Me convidaram e eu vim pra tocar, mesmo sem saber quem era o Mombojó. Tinha chegado aos meus ouvidos que a banda era legal e eu vim, mesmo sem ter a menor idéia de como era a música deles. Eles tocaram primeiro, depois fui eu e no final fomos todos juntos. Aí nessa hora, aquele menino, Felipe me desafiou pra cantar com eles uma música do Mombojó. Aí pronto! Puxei um lance lá que não sabia qual era e comecei a improvisar e foi. Virou uma loucura. Mas eu gosto disso. O resultado ficou muito bom. Eu gosto dessa coisa do improviso. Eu gosto muito de jazz. E o choro também tem muita coisa de improviso. Até mesmo o samba de breque.

Com a ligação que você tem com o samba no Rio de Janeiro, você também costuma participar de algum bloco ou escola de samba por lá?
Há vinte anos atrás, nós, que moramos lá no Jardim Botânico, fundamos um bloco chamado Suvaco do Cristo. Mas por que Suvaco do Cristo? Porque o bairro fica exatamente embaixo do suvaco direito do Cristo Redentor, bem embaixo do braço direito dele. Esse bloco ganhou uma dimensão muito rápida... Começou com umas 200 pessoas, tipo bloco de rua e atualmente tá com umas 30 mil, quase maior do que uma escola de samba. E nessa proporção que o bloco tomou, ele meio que foi virando uma “instituição”. Isso alimentou a terem mais blocos de rua no Rio de Janeiro. É aquele tipo de coisa que não impede você de sair na rua e se divertir. E em todo esse tempo, nunca registramos uma confusão, um problema sequer nesses vinte anos de bloco. Eu falo isso porque eu não sou muito de carnaval. O que eu gosto mesmo é de sair no meu bloco, no Suvaco do Cristo, que vai pra rua um domingo antes do domingo de carnaval. Durante o carnaval, o que eu faço mesmo é descansar.

E dos teus discos, qual aquele que você acha que as pessoas deveriam ouvir mais?
Todos! Eu não posso apresentar um filho só pra rapaziada. Filhos são filhos. Se eu tivesse só um, recomendaria um. Como eu tenho dez, eu recomendo os dez. (risos)


* Foto de Jards Macalé ao vivo no SESC Santana - São Paulo (Set/2007) - por Capitu

** Entrevista publicada originalmente na Revista Coquetel Molotov Nº 4 (Abril / 2008).


Fonte:
CoquetelMolotov

A Coquetel Molotov está licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil, exceto o que for de divulgação.
http://creativecommons.org/LICENSES/BY-NC-ND/2.5/BR

sábado, 28 de junho de 2008

Música de Chico Buarque para os sem-terra

Quando o livro de fotografias Terra, de Sebastião Salgado, com introdução de José Saramago, foi lançado, vinha incluso um CD de Chico Buarque. Chico dedicou o disco "aos milhares de famílias de brasileiros Sem Terra que sobrevivem em acampamentos improvisados às margens das rodovias, lutando, na esperança de um dia conquistar um pedaço de terra para produzir". O álbum contém quatro músicas, todas do Chico, com exceção de Levantados do Chão, parceria dele com Milton Nascimento. Assentamento é a primeira faixa do disco dedicado aos sem-terra e pode ser ouvida no tocador abaixo.

Assentamento - Chico Buarque



Assentamento
Chico Buarque/1997
Para o livro Terra

Quando eu morrer, que me enterrem na
beira do chapadão
-- contente com minha terra
cansado de tanta guerra
crescido de coração
Tôo

(apud Guimarães Rosa)

Zanza daqui
Zanza pra acolá
Fim de feira, periferia afora
A cidade não mora mais em mim
Francisco, Serafim
Vamos embora

Ver o capim
Ver o baobá
Vamos ver a campina quando flora
A piracema, rios contravim
Binho, Bel, Bia, Quim
Vamos embora

Quando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim
Vamos embora



Trecho de entrevista com Chico Buarque

Chico Buarque canta sobre a terra

Cerca de quinze minutos depois de terminado o evento de lançamento do livro "O Espírito e a Letra", de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, na última sexta-feira no Masp, o cantor e compositor Chico Buarque foi embora para sua casa em São Paulo caminhando pelas ruas. Dispensou seguranças e seguiu a passos acelerados: "Adquiri sotaque paulista nos pés".
Foi apenas interrompido por um guardador de carro: "Oi, estou guardando vosso motor". Cumprimentou-o: "Mas você não me guardou, não, estou a pé". Em uma conversa rápida nesse trecho, Chico falou sobre o projeto que vem fazendo com Sebastião Salgado para o livro "Terra".

Folha - Você prepara um CD para ser lançado com o livro "Terra", do fotógrafo Sebastião Salgado?

Chico Buarque - É um projeto em conjunto com o Salgado e a Companhia das Letras. Na capa do livro vai ter um encarte com o CD, que é um compacto pequeno, com umas quatro músicas, uma coisa simples... Tenho uma música e meia pronta. A que está feita chama "Levantadas do Chão", e a outra é um baião, que estou querendo terminar agora.

Folha - Mas você e Salgado trabalharam juntos?

Chico Buarque - Tivemos uma conversa, e ele deixou as fotos que vão constituir o livro. Isso foi o que eu dispus para compor. O tema é a terra, o trabalhador sem terra, o sem-terra na cidade e no campo.

Folha - Tem pesquisa de ritmos?

Chico Buarque - Não, não existe uma fidelidade ao folclore. São canções que me apareceram. Na verdade, a letra que já escrevi foi sobre uma música que Milton Nascimento me mandou para fazer. Falei: "Opa, essa música tem tudo a ver com as fotos do Salgado". Aí fiz a letra em cima das fotos e da música do Milton.


Entrevista para Daniela Rocha, Folha de São Paulo, 25/11/96

(entrevista completa)


Fonte entrevista e letra de "Assentamento": Saite oficial Chico Buarque

Fonte música e imagem: MST

terça-feira, 10 de junho de 2008

Trecho da entrevista de Ney Matogrosso para CarosAmigos

A revista Caros Amigos, número 135, de junho de 2008, traz na capa Ney Matogrosso. A versão online da publicação tem um pedaço do bate-papo com o intérprete. Confira abaixo alguns trechos dessa entrevista.

Trecho 1

Thiago Domenici Você tem ascendência indígena?
Tenho. Conheci meu bisavô índio de 104 anos, pai da minha avó, ele morava na fazenda do meu avô. Minha bisavó não conheci, soube que foi laçada pelo meu bisavô.

Thiago Domenici E o período da infância em Mato Grosso?
Não foi lá, não. Teve uma fase de dois ou três anos na Bahia, depois Recife, numa casa da rua do Jenipapeiro, que tinha um cheiro que nunca mais esqueci, e depois Rio de Janeiro. Saí do Rio com 13 anos e fui pro Mato Grosso.

Thiago Domenici A história de viver muito no mato foi lá?
Foi. É uma coisa minha, me embrenhava com meus 11 cachorros. Chegava do colégio e entrava no mato. Nunca tive medo. Até hoje, as pessoas acham que a natureza é uma ameaça. Sair aqui, no Leblon, acho que é mais ameaçador do que andar no meio do mato sozinho. Comecei a observar que existia um fluxo, uma coisa que não se repetia, ia acontecendo, via entrar a primavera, as flores abrir, os passarinhos procriar, aí comecei a entender.

Thiago Domenici Sempre gostou de animais?
Sempre. Criei lagarto, coruja, cobra, esses animais que não são gato e cachorro.

Trecho 2

Sérgio Kalili E você acha que chegou a lutar para que outras pessoas pudessem ter mais liberdade no amor?
Quem é a pessoa mais escancarada que você conhece no Brasil em termos de sexualidade? O movimento gay quer o seguinte: eles me cobram porque não me resigno a ser um estandarte gay, e não vou me aceitar jamais ser estandarte de qualquer coisa. Muitas coisas me interessam. Quero ter liberdade de me expressar a respeito de todas as coisas que me incomodarem ou interessarem. Durante um tempo o movimento gay me cobrou isso. Houve um acontecimento aqui no Rio, queriam que eu presidisse, falei “não vou presidir nada, vocês é que estão nessa”. Entendi que era uma coisa organizada e não estou contra, mas houve uma aceitação dessas manifestações e isso só representava um público com certo poder econômico, aí deixou de me interessar. Revistas gay, cruzeiros gay, Deus me livre, o que vou fazer com isso, cruzeiro gay? Gosto da mistura, de todo o mundo junto, vou em boate gay, mas boate que não é restrita, em boate restrita não entro, vou em boate que tem todo o mundo, homem, mulher, lésbica, gay, gosto de todas as possibilidades.

Roberto Manera Mas no caso brasileiro, os movimentos também despertam a consciência para verdadeiras atrocidades, não?
São assassinados. Entendo que as pessoas precisam se unir para se sentirem fortes. Agora, não podem querer determinar que eu seja o que leve a bandeira. Sérgio Kalili Existem vários tipos de movimentos. Por exemplo, a parada gay. Nunca fui à parada gay. Não me interessair numa parada para ser aquilo. Eu sou. Vou falar uma coisa que vai parecer uma enorme incoerência. Sou mais sério, embora minha vida artística seja uma... Sou uma pessoa muito séria nos meus princípios e os coloco diante da vida, tenho princípios éticos. Então, aquilo ali não me interessa. Acho interessante juntar três milhões de pessoas, é significativo. Agora, eu assisto.


“O Brasil tem que passar por reformas que ninguém quer. Querem gastar, ter cartões.
Ué, gente, não dá para ter ilusões.”


Trecho 3

Cinthia Pascueto E como você definiria sua relação com o palco?
É a mais satisfatória possível. A coisa mais estimulante é meu relacionamento com o público. Vivo para isso. E é tão satisfatório que não preciso disso fora de lá.

Raquel Junia Você quis criar esse imaginário nas pessoas, de ser extravagante?
Não! Eu sou extravagante! Quando subo no palco, não tenho controle sobre aquela manifestação. Por mais contido que esteja, sou extravagante para o médio brasileiro, o médio humano. Não tem como, é uma coisa que vem. Também não fico preocupado em conter nada. O engraçado é que quanto mais manifesto minha loucura, mais o público quer loucura, isso é que é maluco: quanto mais eu extravaso, mais loucura esperam de mim.

Thiago Domenici Por quê?
Talvez porque não tenham coragem de se manifestar, mas não se contentem comigo, sempre falo: “Não se satisfaçam com a minha manifestação, sejam, existam, sejam como vocês são, não se escondam.”

Fonte: CarosAmigos


Disritmia - Ney Matogrosso e Pedro Luís e a Parede
Disritmia - Ney e Pedro Luís

Do disco Vagabundo (2004), de Ney Matogrosso e Pedro Luís e a Parede. Disritmia é uma composição de Martinho Da Vila.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Eduardo Galeano lança novo Livro

A dominação transforma o mundo em um manicômio

Em seu novo livro, "Espelhos: uma história quase universal", o escritor conta 600 histórias curtas, "que recolhem uma experiência de toda a vida, muitas leituras e muitas perguntas". Relatos que falam dos esquecidos pela história oficial, uma história, diz Galeano que sacrificou e mutilou o arco-íris terrestre. Relatos de um mundo que está enlouquecendo.

por Armando G. Tejeda - La Jornada
Eduardo Galeano
MADRI - Aos 63 anos, Eduardo Galeano dedica-se diariamente a tentar resolver o maior desafio da linguagem, sabendo que isso é “impossível”: utilizar em seus textos apenas palavras que sejam melhores do que o silêncio.

Foi com esse desejo de depuração do idioma que o escritor uruguaio escreveu seu livro mais recente, Espelhos: uma história quase universal (Editora Siglo XXI), no qual, por meio de 600 histórias breves, oferece um panorama inquietante sobre o devir do mundo e da história da humanidade.

Em entrevista a La Jornada, Galeano levanta a voz frente ao “sistema mundial de dominação que está levando todos nós para o matadouro ou para o hospício”. E critica a obstinação do ser humano em “mutilar” o arco-íris terrestre com “o racismo, o machismo, o elitismo e o militarismo”.

Todos somos africanos emigrados


La Jornada: Dá a impressão que com este livro você se esvaziou, que colocou nele o conhecimento, as leituras e os aprendizados acumulados ao longo de sua vida.

Galeano: Acho que sim. A idéia era reunir em um único livro estas 600 histórias ou relatos que viajam pelo mundo e pelo tempo, sem limites, sem fronteiras. E eles vão e vêm pelo mapa do mundo e do tempo. E é verdade que recolhem uma experiência de toda a vida, muitas leituras e muitas perguntas.

Sobretudo recolhe as perguntas que tenho me formulando ao longo da minha própria vida. Desde que eu era pequenininho e ia para a escola e a professora me dizia que o basco Núñez de Balboa foi o primeiro homem que viu os dois oceanos, do alto de um monte do Panamá. E eu levantava a mão e dizia: ‘Senhorita, senhorita, então os que viviam aí eram cegos’. E ela me expulsava da aula por ser atrevido.

E as perguntas que depois fui me fazendo que foram ficando e esperando respostas que fossem, por sua vez, novas perguntas. Por exemplo, esta outra, que abre o livro, quando pergunto se Adão e Eva eram negros, porque se a viagem humana começou na África, de lá partiram nossos avós para a conquista do planeta e foi o Sol que repartiu todas as cores, porque somos todos africanos e somos todos emigrados. É bom lembrar agora que todos somos africanos emigrados, diante de tanta demonização que se faz da emigração, como se fosse um crime.

Mas sim, também é um livro de perguntas incômodas. Eu sempre digo que uma boa resposta é uma fonte de novas perguntas, ou seja que o livro está escrito por um 'perguntão', por um curioso que quer despertar a curiosidade de quem ler.

La Jornada: Essas 600 histórias, contadas assim, de maneira aparentemente desconexa, é porque você também pretendia chamar a atenção para a anarquia que há no mundo e na história da própria humanidade?

Galeano: Sim, mas que estão atadas por fios invisíveis, que fazem com que essa aparente desconexão não seja mais do que uma expressão da diversidade da vida humana, da história e da presença dominante, nessa diversidade, dos esquecidos pela história oficial. Que é uma história que sacrificou, que mutilou o arco-íris terrestre.

Sempre digo que o arco-íris terrestre tem mais cores do que o celeste. É muito mais belo, mais fulgurante, mas tem sido mutilado pelo racismo, pelo machismo, o elitismo, o militarismo… Então, não somos capazes de ver a nós mesmos em toda a nossa plenitude assombrosa, em toda a nossa prodigiosa capacidade de beleza.

O livro rende homenagem à diversidade humana e à diversidade da natureza, da qual também fazemos parte.

Então, na aparência pode parecer desconexo, mas quando a gente entra para lê-lo está armado de tal maneira que há muitíssimo trabalho por trás. É como um rio que às vezes corre por baixo da terra, outras por cima, mas que nunca deixa de correr. É um único fluxo de um rio, de muitos rios.

Discípulo de Juan Rulfo

La Jornada: Como uma sinfonia.

Galeano: A literatura e a música são muito parecidas. Por isso é bom ler em voz alta. Quando a gente escreve, quando termina um texto, a gente lê em voz alta, porque essa leitura nos dá a música das palavras. E a música manda. Tem que haver uma continuidade da música.

La Jornada: Depois de tantos livros e, principalmente, aprendizados, você acha que chegou ao máximo de depuração da sua própria linguagem literária?

Galeano: Acho que sim. A linguagem que eu utilizo, não quero que apareça, mas cada um destes relatos teve 15 ou 20 tentativas. Como dizia um escritor chileno quando reeditava seus contos: edição corrigida e diminuída. Eu também vou diminuindo; é um trabalho de tirar a gordura, para que só fique a carne e o osso daquilo que se quer contar. É um trabalho de despir e purificar a linguagem.

La Jornada: Uma linguagem pouco freqüente nas letras latino-americanas, que às vezes tendem a exagerar na verborréia, você não acha?

Galeano: Pode ser, mas eu não acho que a literatura latino-americana deva ser isto ou aquilo, porque o melhor desta nossa região é que ela é tão diversa. Ou seja, que contém todas as cores, os cheiros, os sabores do mundo.

Se o melhor que o mundo tem está na quantidade de mundos que o mundo contém, poucas regiões do mundo contêm tantos mundos como a nossa. E, portanto, há uma diversidade de linguagens e essa é a nossa riqueza. Eu escrevo do meu jeito, o que sinto e como sai, mas há muitas outras formas de escrever. Toda linguagem é legítima, na medida em que as palavras nasçam da necessidade de dizer.

La Jornada: Mas há influências, gerações literárias.

Galeano: Sim, eu escrevo do meu jeito, que por sua vez é um jeito muito influenciado pelo meu mestre Juan Rulfo. Em uma entrevista, já faz algum tempo, pediram que eu escolhesse os escritores mais importantes na minha formação literária. Eu respondi: Juan Rulfo, Juan Rulfo e Juan Rulfo.

Histórias sentipensantes

La Jornada: Em sua busca por novas linguagens, suponho que também está à par da evolução do nosso idioma na sociedade atual.

Galeano: Sim, é um aprendizado cotidiano. Recebo muitas vozes da rua, que são as que mais me alimentam. E é um trabalho de recriação das vozes que a gente recebe. Quando Rulfo me dizia que se escreve mais com a borracha do que com o lápis, isso é verdade, mas não toda. Porque também é preciso ver quais são as palavras.

Outro de meus mestres, Juan Carlos Onetti, com quem compartilhei poucas palavras e muitos silêncios, sempre dizia que havia um provérbio chinês que dizia que as únicas palavras que merecem existir são as palavras melhores que o silêncio.

É uma idéia muito linda, porque o silêncio é uma linguagem muito funda e profunda; então, é muito difícil que as palavras sejam melhores que o silêncio. Na verdade, isso é impossível, mas a gente tem que tentar esses impossíveis. É o maior desafio da linguagem.

La Jornada: Justamente. Seu livro "Espelhos" tem muitos silêncios e muita calma em sua leitura.

Galeano: O livro pede lentidão, como o amor. E silêncio, para que as palavras tenham sonoridade realmente.

La Jornada: Você também assume a literatura como esse saltimbanco que vai de vilarejo em vilarejo contando histórias, declamando, lendo em voz alta essas histórias?

Galeano: Sim, mas se são só conhecimentos, ou seja, mensagens da razão, terão curto percurso. Precisam ser histórias sentipensantes, para que cheguem a quem as lê; elas têm que vir da razão e do coração. Têm que unir o que foi desvinculado pela cultura do desvínculo, que é a cultura dominante. Que, entre outras coisas, desvinculou a razão da emoção, assim como desvinculou o passado do presente.

Por isso, no livro misturo muitíssimo o passado e o presente; o extermínio do Iraque pelas mãos de um senhor que acredita que a escritura foi inventada no Texas e, ao mesmo tempo, o nascimento do primeiro poema de amor da história humana, que é um poema escrito no Iraque, quando ainda não tinha esse nome, em língua suméria e em tabuletas de barro.

La Jornada: Uma dessas linhas invisíveis que dão sentido às 600 histórias de "Espelhos", é a vocação do homem pela guerra, por essa tendência de destruir a si mesmo?

Galeano: Acho que aqueles que acreditaram que a contradição é o motor da vida humana não erraram. Somos uma contradição incessante. E isso ajuda você a sobreviver em um mundo difícil; a certeza de que não existe horror que não implique alguma maravilha. A certeza de que somos metade lixo e metade beleza. Então, o livro alimenta-se dessa contradição incessantemente. Não só do horror, mas também do amor.

La Jornada: Com especial foco nas guerras, você não acha?

Galeano: Sim, porque a guerra é parte do horror. Não penso que a guerra seja um destino humano, mas é verdade que continua sendo uma realidade do nosso tempo. A cada minuto morrem de fome ou de doença curável 10 crianças no mundo. A cada minuto! E a cada minuto os Estados Unidos gastam meio milhão de dólares matando inocentes no Iraque!

La Jornada: Também o machismo é uma constante da história da humanidade...

Galeano: Sim, por isso menciono o paradoxo das vidas de Santa Teresa e de Joana Inés de la Cruz. As duas perseguidas pela Inquisição, pelos setores mais dogmáticos e ferozes da Igreja católica e suas verdades únicas. Suspeitas por serem mulheres inteligentes, criativas, por terem tanto ou mais talento que os homens. E, portanto, culpadas do imperdoável delito de serem elas mesmas.

O caso de Santa Teresa é o mais trágico. Penso que um braço de Santa Teresa acompanha Francisco Franco em sua longuíssima agonia, porque foi esquartejada e mandaram os pedaços para todas partes; e o braço incorruptível – como é chamado –, na mesinha de cabeceira de Franco. É uma piada de mau gosto da história. Ela, que tinha sido vítima dos equivalentes de Franco do seu tempo.

La Jornada: Como Eduardo Galeano vê o que ocorreu recentemente na África do Sul, que desconcertou o mundo: a explosão xenófoba no país que sofreu durante tantas décadas com o apartheid?

Galeano: Acho que há um sistema mundial de dominação que está transformando o mundo em um matadouro, e também em um manicômio. Está enlouquecendo a todos nós e a prova de que isto está se transformando em uma loucura total é que esse sistema de dominação mundial conseguiu que os negros se matem entre si, como está ocorrendo na África do Sul, ou que os iraquianos se matem entre si, como ocorre no Iraque, ou que os palestinos se matem entre si. Enlouquecem-nos. Já não sabemos quem é quem, nem por quê, nem para quê.

Agora o mundo entrou em um período de crise muito perigoso e isto vai gerar explosões de racismo por todas partes. O imigrante, o que vem de fora, principalmente se for de pele escura, será o bode expiatório do desemprego, da desocupação.

La Jornada: Dá a impressão que o mundo não pensa nem guarda silêncio para analisar isto desse jeito, como podemos fazer com seu livro, por exemplo…

Galeano: Sim, porque vivemos em uma vertigem incessante. Somos presos. Instrumentos dos nossos instrumentos. Máquinas das nossas máquinas. E a vertigem da vida urbana impede que disponhamos do tempo necessário para recuperar a memória perdida e para lembrar das coisas mais óbvias: que ninguém pediu passaporte para Colombo, que ninguém exigiu contrato de trabalho para Hernán Cortés, que ninguém exigiu certificado de boa conduta para Francisco Pizarro —que, por outro lado, ele não teria obtido, porque era um cara com péssimos antecedentes.

Como dizia no começo, somos todos africanos emigrados. São coisas elementares que esquecemos completamente e que devemos recuperar para fazer perguntas como as seguintes: este mundo é um destino? Será que ele não está grávido de outro?

La Jornada: No livro você também reflete sobre a conquista, depois de cinco séculos. Como você vê a situação dos povos indígenas?

Galeano: Acho admirável a capacidade que tiveram os indígenas das Américas de perpetuar uma memória que foi queimada, castigada, enforcada, desprezada durante cinco séculos. E a humanidade inteira tem que estar muito agradecida a eles, porque graças a essa obstinada memória sabemos que a terra pode ser sagrada, que somos parte da natureza, que a natureza não termina em nós. Que há possibilidades de organizar a vida coletiva, formas comunitárias que não estão baseadas no dinheiro. Que competir com o próximo não é inevitável e que o próximo pode ser algo muito mais do que um competidor.

Todas estas coisas que foram herdadas das culturas originais e que tiveram uma persistência admirável, porque sobreviveram a tudo, e que agora se manifestam. Por exemplo, a nova Constituição do Equador, que tem nome indígena, pela primeira vez na história da humanidade consagra a natureza como sujeito de direito. Nunca ninguém tinha pensado nisso.

No Equador, apesar de ser um país muito infectado pelo racismo, como o México e todos na América Latina, conseguiu perpetuar-se uma memória subterrânea que torna possível esta recuperação de verdades pronunciadas por vozes do passado mais remoto, mas que falam para o futuro.

Troca de senhor

La Jornada: E o fato de que agora estejamos em plena “comemoração” do bicentenário das independências, o que você acha disso?

Galeano: As independências foram, em geral, as certidões de nascimento das nações, mentira nestas que vivemos. Porque todas as constituições das nossas repúblicas independentes negaram os direitos para aqueles que derramaram seu sangue para conseguir essas independências. Foram emboscadas feitas contra os filhos mais pobres das Américas. Isso foi unânime e sempre foi assim.

Foram repúblicas nascidas para a negação de direitos, para a maldição e para o desprezo da maioria de seus habitantes, muitos dos quais passaram a ter uma vida pior da que tinham sob a dominação colonial. Ou, em todo caso, limitaram-se a trocar de senhores. Como dizia uma pichação anônima em uma parede de Quito, quando foi promulgada a independência do Equador: ‘Último dia do despotismo e primeiro da mesma coisa’.

Tradução: Naila Freitas/Verso Tradutores


Fonte: AgênciaCartaMaior