No dia 27 de março Renato Russo, poeta e líder da banda Legião Urbana, completaria 50 anos. Vítima da aids, teve a vida interrompida precocemente, mas, sua obra se perpetua. A seguir, texto do jornalista Wagner Machado escrito exclusivamente para o Música&Poesia.
Nosso irmão mais velho
por Wagner Machado
Renato Russo - Imagem Ricardo Castro
Eu tinha sete ou oito anos quando ouvi Legião Urbana pela primeira vez. A música era Faroeste Caboclo, grande sucesso naquele momento, a despeito de seus 9 minutos de duração e dos palavrões que a letra continha, a ponto de se criar uma versão que subtraía toscamente os palavrões (“olha pra cá, olha pra cá, seu sem-vergonha” em vez do original “olha pra cá, filho da puta sem-vergonha”) para adequar-se às normas de radiodifusão.
Creio não ser exagero afirmar que este momento, a primeira vez que ouvi Legião, marca o rito de transição da minha infância para a adolescência. Era 1988, o Brasil saíra recentemente do longo e triste período que se iniciara em 31 de março de 1964 para terminar duas décadas depois. O rock nacional efervescia com as tantas bandas surgidas na primeira metade daquela década. Entre as quais despontava a Legião Urbana do Renato Russo, que traduzia, com suas letras fortes e diretas e seu som sujo e sentido, a ânsia de uma geração que chegava a um momento histórico em que havia muitos motivos por que lutar, mas não havia mais um inimigo claro e declarado, uma luta perplexa e vaga, como perplexo e vago era o negro João de Santo Cristo, protagonista de Faroeste Caboclo, que vê sua vida transformada num inferno em Brasília porque queria fazer um patético pedido ao presidente, ajudar toda essa gente que só faz sofrer.
No ano seguinte ao meu primeiro contato com a banda brasiliense do Renato Russo, a Legião lança o disco “As Quatro Estações”, que consolidou meu gosto pela música e minha desconfiança e aversão a tudo o que é rotulável. Porque “As Quatro Estações” era um grande disco de rock, mas era reducionismo demais chamar aquilo de rock. Porque ali havia ecos do punk brasileiro irritado e rebelde ao mesmo tempo em que havia um lirismo tão triste e tão franco. Tinha guitarra distorcida, mas tinha piano. Falava em drogas, em violência, mas citava Camões e textos bíblicos. E as letras de Renato feriam e tocavam, a mim e à minha geração, tão perdida e tão sôfrega.
Renato fazia letras um tanto pobres sob o aspecto da construção poética, mas – ou talvez por isso mesmo – tão bonitas e altissonantes, como se soubesse – e creio que sabia – o que cada um de nós sentia, melhor que nós até. Não tem nada de elaborado no rude verso “parece cocaína mas é só tristeza”, não tem rima rica, métrica precisa e nem acuidade vocabular, mas era a perfeita e dolorida tradução do que sentíamos naquele justo momento. E quem disse isso de forma tão direta e bonita quanto Renato Russo?
Renato Russo era um cara triste, mas sua tristeza era em nada comparável a essas bandas babacas de hoje que ganham grana vendendo melancolia barata e plástica. Era uma tristeza não-egoísta, solidária, abrangente, uma tristeza pelo destino de todos nós, pela opressão, pela ignorância, pela mediocridade, por este país tão rico e tão injusto, e tão hipócrita. Também não era uma tristeza autoindulgente, mas antes uma tristeza autocrítica, convidando à reflexão mas também à ação.
Renato Russo foi o irmão mais velho da minha geração. Liderava a maior banda de rock do meu país. Naquela época, as bandas do primeiro time do rock nacional (Titãs, Paralamas, Barão, Ira! e tantas outras) lotavam ginásios, vendiam milhões de cópias de discos e realmente faziam a cabeça da minha geração. Mas Renato jamais se deixou seduzir pelo lado podre da fama. Não permitiu transformar-se em star superexposto nos meios de comunicação, não aceitou tornar-se um escravo de si mesmo nem da sua imagem. Jamais deixou que jogassem seu trabalho e sua personalidade na vala comum do circo midiático. Não precisava da mídia, pois sabia falar diretamente conosco.
Em um dia qualquer de 1996, chego em casa de volta da aula, e pela MTV recebo a notícia da morte de Renato Russo, vítima da aids. Estávamos desamparados. É tão estranho, cantou ele, os bons morrem jovens. E há tempos são os jovens que adoecem. Penso que há pessoas que precisam mesmo morrer ainda jovens. É o caso de Che Guevara, de Camus, de Glauber Rocha. E de Renato Russo. Pessoas que não suportam viver neste mundo tão mesquinho e tão medíocre. Não suportam amar uma humanidade que a cada dia esquece mais um pouco o que é amor. Precisam partir pra longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita.
Creio não ser exagero afirmar que este momento, a primeira vez que ouvi Legião, marca o rito de transição da minha infância para a adolescência. Era 1988, o Brasil saíra recentemente do longo e triste período que se iniciara em 31 de março de 1964 para terminar duas décadas depois. O rock nacional efervescia com as tantas bandas surgidas na primeira metade daquela década. Entre as quais despontava a Legião Urbana do Renato Russo, que traduzia, com suas letras fortes e diretas e seu som sujo e sentido, a ânsia de uma geração que chegava a um momento histórico em que havia muitos motivos por que lutar, mas não havia mais um inimigo claro e declarado, uma luta perplexa e vaga, como perplexo e vago era o negro João de Santo Cristo, protagonista de Faroeste Caboclo, que vê sua vida transformada num inferno em Brasília porque queria fazer um patético pedido ao presidente, ajudar toda essa gente que só faz sofrer.
No ano seguinte ao meu primeiro contato com a banda brasiliense do Renato Russo, a Legião lança o disco “As Quatro Estações”, que consolidou meu gosto pela música e minha desconfiança e aversão a tudo o que é rotulável. Porque “As Quatro Estações” era um grande disco de rock, mas era reducionismo demais chamar aquilo de rock. Porque ali havia ecos do punk brasileiro irritado e rebelde ao mesmo tempo em que havia um lirismo tão triste e tão franco. Tinha guitarra distorcida, mas tinha piano. Falava em drogas, em violência, mas citava Camões e textos bíblicos. E as letras de Renato feriam e tocavam, a mim e à minha geração, tão perdida e tão sôfrega.
Renato fazia letras um tanto pobres sob o aspecto da construção poética, mas – ou talvez por isso mesmo – tão bonitas e altissonantes, como se soubesse – e creio que sabia – o que cada um de nós sentia, melhor que nós até. Não tem nada de elaborado no rude verso “parece cocaína mas é só tristeza”, não tem rima rica, métrica precisa e nem acuidade vocabular, mas era a perfeita e dolorida tradução do que sentíamos naquele justo momento. E quem disse isso de forma tão direta e bonita quanto Renato Russo?
Renato Russo era um cara triste, mas sua tristeza era em nada comparável a essas bandas babacas de hoje que ganham grana vendendo melancolia barata e plástica. Era uma tristeza não-egoísta, solidária, abrangente, uma tristeza pelo destino de todos nós, pela opressão, pela ignorância, pela mediocridade, por este país tão rico e tão injusto, e tão hipócrita. Também não era uma tristeza autoindulgente, mas antes uma tristeza autocrítica, convidando à reflexão mas também à ação.
Renato Russo foi o irmão mais velho da minha geração. Liderava a maior banda de rock do meu país. Naquela época, as bandas do primeiro time do rock nacional (Titãs, Paralamas, Barão, Ira! e tantas outras) lotavam ginásios, vendiam milhões de cópias de discos e realmente faziam a cabeça da minha geração. Mas Renato jamais se deixou seduzir pelo lado podre da fama. Não permitiu transformar-se em star superexposto nos meios de comunicação, não aceitou tornar-se um escravo de si mesmo nem da sua imagem. Jamais deixou que jogassem seu trabalho e sua personalidade na vala comum do circo midiático. Não precisava da mídia, pois sabia falar diretamente conosco.
Em um dia qualquer de 1996, chego em casa de volta da aula, e pela MTV recebo a notícia da morte de Renato Russo, vítima da aids. Estávamos desamparados. É tão estranho, cantou ele, os bons morrem jovens. E há tempos são os jovens que adoecem. Penso que há pessoas que precisam mesmo morrer ainda jovens. É o caso de Che Guevara, de Camus, de Glauber Rocha. E de Renato Russo. Pessoas que não suportam viver neste mundo tão mesquinho e tão medíocre. Não suportam amar uma humanidade que a cada dia esquece mais um pouco o que é amor. Precisam partir pra longe dessa confusão e dessa gente que não se respeita.
Wagner Machado é jornalista, atualmente trabalha na redação do portal Terra. Siga o Wagner pelo Twitter
Foto de Ricardo Castro sob uma licença Creative Commons - Alguns Direitos Reservados
4 comentários:
Renato Russo, um poeta de versos sujos. A meu ver, letras e arranjos bem mais “expressão” do que “harmonia musical” propriamente dita. É legal resgatar a recende história deste artista que marcou de forma significativa as décadas de 80 e 90, como bem exalta a matéria. Aliás, impossível não reverenciar um cara que canta uma das minhas mais fortes “quase certezas” hehehe... Putz, bom demais!
Ai ai... esse "anônimo" aí é declarado, sou eu hehehe... Foi desatenção. Beijo.
O guri é bom!
Beijos.
Há dias estou querendo ler essa crônica e não me dava ao luxo de parar e ler. Perdi tempo! É muito boa!!! Aliás, o Wagner escreve muito bem.
Parabéns pela postagem e parabéns ao Wagner pelo texto!
beijos
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