Esquecidos no tempo
A sobrevivência de uma banda de 126 anos custa 150 reais
por Luiz Filho
O relógio na parede ao fundo do maestro Nestor Avelino Pinheiro marca sete horas da noite, ele parecia impaciente com seu andar sem direção. Já é hora dos músicos chegarem para começar o ensaio. Enquanto não chegam, seu Luiz, como é conhecido na roda de amigos, uma espécie de "faz tudo" dentro da banda, arruma as partituras, ajeita as velhas cadeiras de plástico, passa pela porta e resmunga: “É sempre assim. Já chamei a polícia, mas não adianta”. Ele se refere ao barulho do bar em frente, onde as pessoas festejam o happy hour com cerveja e músicas de karaokê. Alguns deles, fora do estabelecimento, abrem o porta-malas de um automóvel Gol para ampliar o som da banda Calcinha Preta, que vinha de estridentes alto-falantes. Apesar do ambiente de fim de noite, a polícia chega e acaba com a festa – ameaça multar o proprietário do carro.
Do lado oposto ao bar, lê-se na placa de ferro acima da janela: “Corporação Musical Operária da Lapa – Desde 07 de setembro de 1914”. Localizada há muitos anos na pequena casa doada por Nicola Festa, empresário da região, hoje nome de uma pequena praça. A banda, no entando, além de antiga tem muitas histórias.
O passado
Começou como Lira da Lapa em 1881, pelas mãos do maestro Luigi Chiafarelli, um italiano que veio ao Brasil a pedido da aristocracia paulistana para dar aulas de piano a jovens ricas.Em 1889, mudaram o nome para Banda 15 de Novembro. A banda mudava de nome na base do agrado, de acordo com a autoridade vigente na época. Já 1908 o maestro Chiafarelli deu lugar a Paulo Chianato e o nome ficou Banda dos Funcionários da SPR (São Paulo Railway). Os músicos eram funcionários da empresa que construiu a linha de trem Santos-Jundiaí.
Sem a ajuda da São Paulo Railway e passando dificuldades, os músicos ensaiam na casa de Antonio Machado, outro que dá nome à rua da Corporação. Em 1914 a mudança definitiva. Nicola Festa, o da praça, doou terreno e casa para a Corporação. O comando da banda vai para o maestro Vicente Santoro, primeiro sargento da Força Pública do Estado de São Paulo. Era o começo dos anos dourados da Corporação. Os inúmeros pedidos para apresentações fez com que Santoro nomea-se Vitor Barbieri contra-mestre. Tocaram na Record, na Tupi, e no programa do Moacir Franco.
O presente
As horas passam e são sete os músicos presentes. Omaestro resolve começar o ensaio mesmo assim. O horário um tanto ingrato para uma caótica sexta-feira paulistana. No bairro da Lapa, zona oeste da cidade de São Paulo, não podia ser diferente. O maestro Nestor e seus engomadoscabelos brancos, a saliente barriga e o rosto enorme e vermelho lembram, para os mais antigos, o falecido presidente russo Boris Yeltsin. Ele dá as ordens e a música começa – três toques com a batuta num apoio de partituras. “Pára, pára, pára, j á disse que não é pã, pã, pããã, é pãpãpã”, diz enérgico. Um músico chega atrasado e lentamente se ajeita. É Arnaldo, 73 anos que chama a atenção pelo tamanho do instrumento – a Tuba. Ajeitado na cadeira assopra algumas vezes e percebe que um dos três pistões que dão sonoridade ao instrumento está emperrado. A solução é usar a própria saliva para lubrificar o pistão emperrado.
A Corporação está corroída pelo tempo. Os quadros com fotos históricas, as roupas para apresentação guardadas num guarda-roupa improvisado, fechado apenas por uma cortina e oforro do teto quebrado em dois lugares. O pequeno banheiro e uma salinha com uma mesa e flores de plástico compõe o ambiente. Na porta de entrada a triste constatação. O quadro negro revela os gastos mensais da banda: faltam 46 reais reais para sanar as contas.
Os músicos não recebem para tocar e ensaiar. “Os gastos com a Corporação é de 150 reais por mês”, diz o maestro. Novamente três toques com a batuta e mais música, um pout pourri de sertanejas. Antigamente a Corporação tocava somente marchas e dobrados, hoje tenta alegrar os diversos ouvidos sem perder a característica de uma banda de sopros. Para arcar com as despesas, a Corporação gravou um CD em 2005 – vendido por 8 reais. Das 200 cópias, 80 ficaram com o Shopping da Lapa, que patrocinou a gravação, distribuídos entre os lojistas. É apenas o segundo disco em 126 anos de história. O primeiro é de 1976, um EP com duas músicas e regência do maestro Érico Salvadori.
Sentado com os pés apoiados no sofá, João Tamburu, 83 anos, olhos marejados, recorda-se: “Viajamos muito por aí, todo final de semana, às vezes a banda se dividia para atender tantos pedidos”. Trompetista, João tem tocado pouco ultimamente. De São José do Rio Preto, João veio moço trabalhar como barbeiro na capital, profissão que sustentou dois filhos e a mulher. Lembra, saudoso, dos tempos em que Adoniran Barbosa circulava pela Lapa e tomava cerveja com os músicos.
A Corporação está minguando, como uma morte anunciada. Desde os anos 1980, a troca de maestros tornou-se constante, e João Tamburu acredita que depois do episódio em que o maestro Benedito Mariano deixou os músicos à deriva numa apresentação na Mooca tudo mudou. “Parece que a partir dali tudo foi acabando. Cheguei a ir num ensaio com apenas seis músicos. Esses dias apareci por lá e vi quase vinte”, lembrou Tamburu. São 21 músicos no total, quatro mulheres.
Aos poucos o maestro Nestor tenta mudar a história da Corporação e trazer, quem sabe, o glamour de outros tempos. As terças-feiras ensina música a um grupo de jovens, gratuitamente, espera que algum deles integre a Corporação no futuro ou dê sequência a hitória centenária. Tentou negociar com a subprefeitura da Lapa, com os comerciantes da região, e enviou uma carta para o programa de Luciano Huck – sem respostas – para conseguir a reforma do lugar. A construção antiga precisa de reforma urgente.
Nestor abre espalmadamente à mão direita e a música para: “Isso que nós fazemos aqui é amor pela arte”. Até quando?
Luiz Filho é jornalista
O relógio na parede ao fundo do maestro Nestor Avelino Pinheiro marca sete horas da noite, ele parecia impaciente com seu andar sem direção. Já é hora dos músicos chegarem para começar o ensaio. Enquanto não chegam, seu Luiz, como é conhecido na roda de amigos, uma espécie de "faz tudo" dentro da banda, arruma as partituras, ajeita as velhas cadeiras de plástico, passa pela porta e resmunga: “É sempre assim. Já chamei a polícia, mas não adianta”. Ele se refere ao barulho do bar em frente, onde as pessoas festejam o happy hour com cerveja e músicas de karaokê. Alguns deles, fora do estabelecimento, abrem o porta-malas de um automóvel Gol para ampliar o som da banda Calcinha Preta, que vinha de estridentes alto-falantes. Apesar do ambiente de fim de noite, a polícia chega e acaba com a festa – ameaça multar o proprietário do carro.
Do lado oposto ao bar, lê-se na placa de ferro acima da janela: “Corporação Musical Operária da Lapa – Desde 07 de setembro de 1914”. Localizada há muitos anos na pequena casa doada por Nicola Festa, empresário da região, hoje nome de uma pequena praça. A banda, no entando, além de antiga tem muitas histórias.
O passado
Começou como Lira da Lapa em 1881, pelas mãos do maestro Luigi Chiafarelli, um italiano que veio ao Brasil a pedido da aristocracia paulistana para dar aulas de piano a jovens ricas.Em 1889, mudaram o nome para Banda 15 de Novembro. A banda mudava de nome na base do agrado, de acordo com a autoridade vigente na época. Já 1908 o maestro Chiafarelli deu lugar a Paulo Chianato e o nome ficou Banda dos Funcionários da SPR (São Paulo Railway). Os músicos eram funcionários da empresa que construiu a linha de trem Santos-Jundiaí.
Sem a ajuda da São Paulo Railway e passando dificuldades, os músicos ensaiam na casa de Antonio Machado, outro que dá nome à rua da Corporação. Em 1914 a mudança definitiva. Nicola Festa, o da praça, doou terreno e casa para a Corporação. O comando da banda vai para o maestro Vicente Santoro, primeiro sargento da Força Pública do Estado de São Paulo. Era o começo dos anos dourados da Corporação. Os inúmeros pedidos para apresentações fez com que Santoro nomea-se Vitor Barbieri contra-mestre. Tocaram na Record, na Tupi, e no programa do Moacir Franco.
O presente
As horas passam e são sete os músicos presentes. Omaestro resolve começar o ensaio mesmo assim. O horário um tanto ingrato para uma caótica sexta-feira paulistana. No bairro da Lapa, zona oeste da cidade de São Paulo, não podia ser diferente. O maestro Nestor e seus engomadoscabelos brancos, a saliente barriga e o rosto enorme e vermelho lembram, para os mais antigos, o falecido presidente russo Boris Yeltsin. Ele dá as ordens e a música começa – três toques com a batuta num apoio de partituras. “Pára, pára, pára, j á disse que não é pã, pã, pããã, é pãpãpã”, diz enérgico. Um músico chega atrasado e lentamente se ajeita. É Arnaldo, 73 anos que chama a atenção pelo tamanho do instrumento – a Tuba. Ajeitado na cadeira assopra algumas vezes e percebe que um dos três pistões que dão sonoridade ao instrumento está emperrado. A solução é usar a própria saliva para lubrificar o pistão emperrado.
A Corporação está corroída pelo tempo. Os quadros com fotos históricas, as roupas para apresentação guardadas num guarda-roupa improvisado, fechado apenas por uma cortina e oforro do teto quebrado em dois lugares. O pequeno banheiro e uma salinha com uma mesa e flores de plástico compõe o ambiente. Na porta de entrada a triste constatação. O quadro negro revela os gastos mensais da banda: faltam 46 reais reais para sanar as contas.
Os músicos não recebem para tocar e ensaiar. “Os gastos com a Corporação é de 150 reais por mês”, diz o maestro. Novamente três toques com a batuta e mais música, um pout pourri de sertanejas. Antigamente a Corporação tocava somente marchas e dobrados, hoje tenta alegrar os diversos ouvidos sem perder a característica de uma banda de sopros. Para arcar com as despesas, a Corporação gravou um CD em 2005 – vendido por 8 reais. Das 200 cópias, 80 ficaram com o Shopping da Lapa, que patrocinou a gravação, distribuídos entre os lojistas. É apenas o segundo disco em 126 anos de história. O primeiro é de 1976, um EP com duas músicas e regência do maestro Érico Salvadori.
Sentado com os pés apoiados no sofá, João Tamburu, 83 anos, olhos marejados, recorda-se: “Viajamos muito por aí, todo final de semana, às vezes a banda se dividia para atender tantos pedidos”. Trompetista, João tem tocado pouco ultimamente. De São José do Rio Preto, João veio moço trabalhar como barbeiro na capital, profissão que sustentou dois filhos e a mulher. Lembra, saudoso, dos tempos em que Adoniran Barbosa circulava pela Lapa e tomava cerveja com os músicos.
A Corporação está minguando, como uma morte anunciada. Desde os anos 1980, a troca de maestros tornou-se constante, e João Tamburu acredita que depois do episódio em que o maestro Benedito Mariano deixou os músicos à deriva numa apresentação na Mooca tudo mudou. “Parece que a partir dali tudo foi acabando. Cheguei a ir num ensaio com apenas seis músicos. Esses dias apareci por lá e vi quase vinte”, lembrou Tamburu. São 21 músicos no total, quatro mulheres.
Aos poucos o maestro Nestor tenta mudar a história da Corporação e trazer, quem sabe, o glamour de outros tempos. As terças-feiras ensina música a um grupo de jovens, gratuitamente, espera que algum deles integre a Corporação no futuro ou dê sequência a hitória centenária. Tentou negociar com a subprefeitura da Lapa, com os comerciantes da região, e enviou uma carta para o programa de Luciano Huck – sem respostas – para conseguir a reforma do lugar. A construção antiga precisa de reforma urgente.
Nestor abre espalmadamente à mão direita e a música para: “Isso que nós fazemos aqui é amor pela arte”. Até quando?
Luiz Filho é jornalista
Fonte: CarosAmigos
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