FITA MIXADA “ROTAÇÃO 33”
Em entrevista sobre lançamento do novo trabalho e de outros projetos, KL Jay, DJ dos Racionais MC's, expressa sua opinião: “nenhuma geração foi tão empreendedora quanto a geração do hip hop”
por Liliane Braga para a CarosAmigos
A primeira vez em que estive em contato com KL Jay foi no show em homenagem ao rapper Sabotage após três meses de seu falecimento, em março de 2003. Algum tempo depois, nos sentamos em um restaurante para a nossa primeira entrevista. O que me impulsionou a falar com ele ao fim daquele show foi um depoimento seu: “DJs têm que ouvir música brasileira, não apenas rap”.
Eu ainda não havia ido a Cuba, lugar que visitei algumas vezes daquele ano para cá, e com o qual foi estabelecida uma proposta de intercâmbio. Por duas vezes, KL Jay esteve envolvido no projeto que tinha por intenção ajudar raperos e raperas da ilha caribenha a desenvolverem elementos do hip hop ainda tímidos por lá – caso do DJ.
Contatos realizados nesse período aguçaram o desejo de realização desta matéria. A filipeta de divulgação anunciando o lançamento da mix mape de KL Jay me foi trazida por uma amiga. O folheto-miniatura ficou pregado à geladeira por meses... Fita mixada “Rotação 33”. Participantes: Gaspar (Z´África Brasil), Max B.O., Parteum, Kamau, a dupla Andrômeda (MCs Phantone e Indião), Aori, Lívia Cruz e De Leve (os últimos três, do Rio de Janeiro).
Em uma das festas em que discotecava, anunciei a ele a minha intenção. Alguns dias depois, uma cópia do CD da mix tape chegava até mim. O DVD, já tinha visto na Mostra de Cinema Hip Hop de São Paulo, organizada pelo Sesc, em agosto de 2007.
“Mix tape” é uma seleção musical em que o DJ escolhe partes das músicas que quer usar e em que momento quer interrompê-las para que sejam mixadas com outra música. Para que essa ação fique harmônica, o/a DJ utiliza-se das diversas técnicas desse elemento do hip hop, como os scratches e o back-to-back (movimento em que o vinil parece ser arranhado e que possui diferentes modalidades e momentos em que o DJ volta uma ou mais vezes a um trecho já tocado da música utilizando-se de dois discos iguais).
“Hoje eu faria mais dinâmico, mais rápido. Com mais cortes, mais idéias, com mais dificuldade, na hora das trocas de discos, da passagem de som”, ele se auto-avalia, durante a conversa que realizamos no dia 21 de dezembro, uma sexta-feira, na Galeria 24 de Maio (centro de São Paulo). Para quem ouve a gravação, há que fazer um esforço para ficar parado. Para quem assiste à performance, difícil é despregar os olhos da troca de vinis nos toca-discos, da precisão da agulha tocando o pedaço escolhido da faixa, dos feltros de proteção dos discos que se grudam às bolachas na hora errada... Nos momentos de mais fôlego entre uma troca e outra de vinil, é possível curtir a empolgação do DJ, soltando o corpo para acompanhar a batida, cantando junto a letra que sai das caixas de som.
Algumas das batidas selecionadas e mixadas por KL Jay foram completadas por versos de nove MCs diferentes (as já citadas “participações”). Na performance ao vivo, as performances dos MCs têm que acontecer de forma cronometrada, sincronizada com a atuação do DJ. Acompanhando o CD, a imagem que me vem é a de um compositor que faz a harmonia utilizando-se de dois toca-discos e um mixer e convida letristas-cantores para parcerias quanto à parte melódica. Nos trechos de “trabalho solo”, KL Jay imprimiu a marca de seus “desenhos” musicais a raps cheios de balanço de nomes como Xis, MV Bill, RZO, Sabotage, SP Funk, SNJ, Rota de Colisão, GOG, Slimrimografia, 509-E... A opção foi usar apenas rap nacional em um trabalho que, nas palavras do próprio, envolveu muita pesquisa. Tanto para a escolha das músicas como dos trechos usados – por exemplo, um trecho instrumental que sobra de uma música pra outra.
Foram cerca de 17 anos de estrada como DJ para que Kleber Geraldo Lellis Simões, 38 anos, encarasse o desafio de fazer uma mix tape (diferente das fitas artesanais gravadas no período em que dava som na boate Soweto). Antes dela, ele lançou um único trabalho solo, o CD duplo “KL Jay na batida – volume III”, em 2004.
Em suas palavras, foi quando começou a treinar para a gravação que se deu conta de que era capaz de fazê-la. As três apresentações ao vivo da fita mixada demonstram a empolgação do público em acompanhar detalhes na apresentação do DJ, ovacionado nos momentos de mais dificuldade ou de improvisos (há clipes da mix tape no site Youtube). Foram uma apresentação no Rio, duas em São Paulo. A última delas dois dias depois dessa entrevista, durante a final do Hip Hop DJ 2007, campeonato organizado há 11 anos por KL Jay e Xis. Na última edição do evento, Erick Jay e RM, ambos do Clã Leste, conquistaram o primeiro e o segundo lugares respectivamente, pelo segundo ano consecutivo. Foi com eles que conversei para saber um pouco mais do papel da competição na cena hip hop brasileira.
Desempregado, começou a treinar
Nas finais do Hip Hop DJ, é perceptível a presença de familiares dos competidores. Nos diferentes espaços onde já foram realizadas etapas da competição, a proibição de venda de bebida alcoólica é uma prerrogativa. Naquele dia, depois de competir com outros dez finalistas, Erick Jay levou para casa um par de pick-ups (toca-discos) avaliados em cerca de R$ 2000,00. Antes da vitória atual, o rapaz de 27 anos treinava na casa do “professor” Zulu, da Nação Zulu e fundador do Clã Leste. Às vezes, iam para a casa do outro parceiro, RM. Montavam as performances e mostravam uns aos outros. Por muitos meses, Zulu abriu o portão de sua casa ao aluno às 7h da manhã, que só ia embora 12 horas depois. Boa parte dos discos usados para o treino eram emprestados. E é preciso muito treino... A arte dos scratches – que podem chegar a 100 tipos diferentes, segundo o DJ filipino-estadunidense Qbert – nunca se esgota.
Atualmente com um salário de menos de R$ 500 mensais, Erick demoraria muito para poder adquirir toca-discos iguais aos do 1º lugar da premiação - a sobra do salário também precisa ser guardada para a compra das agulhas extras, usadas para treinar e discotecar em festas, e que custam R$ 90 cada.
Duas semanas após o fim do campeonato, Erick me recebeu em sua casa, acompanhado de Zulu e RM, os companheiros do que é o primeiro time de DJs do Brasil, cuja proposta é treinar conjuntamente para aperfeiçoar as performances individuais, além de atuar em apresentações coletivas no palco. Pergunto a ele o que significa o Hip Hop DJ em sua vida: “por causa do Hip Hop DJ, eu quis me tornar DJ. Ia ao campeonato e dizia a mim mesmo: quero treinar para ser DJ e um dia chegar à final desse campeonato”. Entre a meta auto-proposta e o fato, passaram-se cerca de seis anos. Erick estava desempregado quando começou a treinar. Mesmo com 2º grau completo e vários cursos complementares (informática, matemática financeira, sonoplastia...), ele ficou cerca de cinco anos sem conseguir emprego. De 2003 a 2005, acordava às 4h da manhã para entregar folhetos promocionais do comércio da região onde mora, no Sapopemba. Aos fins-de-semana, pegava latinhas vazias para vender. Pergunto a Erick se acha que o mercado de trabalho é mais difícil para ele pelo fato de ser negro. “Com certeza! Depois que eu fiquei todo esse tempo desempregado e, das pessoas que conhecia, só eu que não arrumava emprego!”. Atualmente ele trabalha numa copiadora, operando máquina de xerox.
Para participar do Hip Hop DJ, cada candidato(a) deve enviar uma performance gravada com duração de três minutos. Os que são classificados para as semifinais e para a final precisam montar novas performances e treiná-las para as etapas seguintes da premiação. Em 2002, quando Erick se inscreveu pela primeira vez para o campeonato, a notícia de que havia passado na pré-seleção quase o fez chorar. A sensação era a de que havia passado na faculdade. Quatro anos depois, ele chegaria ao primeiro lugar da competição. “O Hip Hop DJ, é que me fez mudar a visão do DJ e musicalmente. Cê aprende a ouvir mais coisas, igual o KL Jay fala, meu. Ele fala ‘cê tem que ouvir música, vê como o cara canta, vê como o instrumento é tocado. Até pela performance. Pra você achar uma coisa lá no meio (de uma música), você tem que ouvir a música toda’”. Hoje, ele avalia que música é coisa séria. “Tira o cara da depressão, muda o seu ânimo”.
A mentalidade branca morre de medo
Além de organizar o mais importante campeonato da sua categoria, o DJ KL Jay tem se firmado como produtor de diferentes grupos e artistas de rap. As produções lançadas pelo selo pessoal do artista, o Equilíbrio, têm revelado nomes como Relatos da Invasão e Ca-Ge-Be, grupos de rap da Zona Norte de São Paulo, a mesma região do DJ.
Como fonte de inspiração para tantos empreendimentos – que incluem ainda a 4P, selo, loja de roupas e salão de cabeleireiros dele e de Xis, e por onde está sendo lançada a mix tape –, KL Jaycontou com os exemplos de artistas afro-estadunidenses, como o cantor Curtis Mayfield, que entre as décadas de 60 e 70 abriu seus selos próprios, entre eles,“Windy C”, e o rapper Jay-Z, dono da Roc-A-Fella – gravadora, produtora de filmes e marca de roupa. No Brasil, o exemplo seguido foi o do rapper brasiliense GOG, dono da gravadora “Só Balanço”, criada em 1993.
Quem está envolvido com hip hop tem um lado empreendedor mais presente do que normalmente se vê em outras expressões e estilos artísticos. Mesmo em Cuba, há um movimento por parte da juventude em ser autora de seus próprios eventos, em coordenar suas próprias atividades, e o governo demonstra tentar colaborar com os eventos. KL Jay revela sua opinião. “Eu acredito que nenhuma outra geração fez tanto isso quanto a geração do hip hop. O (Steven) Spielberg é diretor de cinema e tem restaurante, né? O Robert de Niro também tem o restaurante dele, e ele é ator. Mas isso nunca aconteceu tanto como com a geração do hip hop. Eu acho que isso tem a ver com uma emancipação negra também, né? Sermos donos das nossas coisas, gerar emprego, fazer o dinheiro girar...”.
KL Jay não busca apoio para nenhuma de suas iniciativas, por questão de princípios. O importante, para ele, é ter liberdade para criar, é não estar vinculado a exigências alheias às suas próprias. “Passo dívida? Passo. Tô devendo? Tô. Mas o dinheiro vem de outras maneiras, meu. Vai ficar pedindo pros outros fazer? Aí fica de rabo preso, por tudo que você vai ter que cumprir, exigência de quem tá te ajudando”. A importância que ele dá a empreendimentos encampados por negros e negras na sociedade brasileira me leva a questioná-lo se achava que os Estados Unidos possuíam mais exemplos nesse campo do que o Brasil. Ele contesta. “A gente tem! Na Bahia, tem uma comunidade de mulheres que juntam dinheiro e compram a liberdade do outro escravo...”, referindo-se à Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte, da cidade de Cachoeira, atuante desde o século 19. “A Irmandade dos Homens Pretos tem vários terrenos aqui no centro (de São Paulo), mas não é divulgado”. Por quê? “E o medo? E o medo que o sistema tem? Cê acha que os caras não têm medo de nóis? Eu vejo os olhares, os olhares aqui na galeria... ‘Pô, mano, o cara além de ser DJ, além de fazer sucesso, o cara é dono e a loja do cara ainda tem um monte de gente que compra?’. O sistema, a mentalidade branca, morre de medo de nóis, meu’ ”.
Duvido que vai ser publicado!
“Eu acho que a grande revolução no Brasil vai acontecer quando a educação for democrática. Para todos. Uma educação de alto nível para todos! Educação grátis. A criança que mora no Morumbi, de 10 anos, estudar a mesma coisa que a criança que mora na favela do Buraco Quente, na Zona Sul. Aí a concorrência vai ser justa. A disputa pelos empregos, pelo mercado de trabalho, vai ser justa, honesta! Aí os valores vão começar a mudar. Inclusive os valores raciais. Mas os anglo-saxões não querem isso, os judeus não querem isso, os espanhóis, os portuguêis, os italianos, que são os donos da terra, não querem isso. Porque eles vão perder! Pode pôr! Duuuvido que vai ser publicado!”.
Pai de cinco filhos, neste ano de 2008 KL Jay optou por transferir Lincoln, Jamila, Hanifah e Kaofani para escolas particulares. William, o mais velho, não está mais na escola e dedica-se à carreira de DJ. “Tenho condições que meus filhos estudem em escolas privadas, porque o ensino é melhor. Que eles vá pra escola privada! Porque amanhã eles podem mudar essa porra! Eles podem fazer o sistema virar gratuito! Eu não quero o melhor para os meus filhos, eu quero o melhor para a nação. Porque eles podem mudar a nação, entendeu?”.
Rap é música de preto? Apesar de achar que a música não tem fronteiras e o talento é algo inquestionável, “(rap) é um bagulho que os preto faiz com uma força do caralho”. Por essa razão, quem está na linha de frente, é preto: Jay-Z, Tupac Shakur, Notorius BIG, Doctor Dre, NAS... “Por que a maioria dos pilotos de fórmula 1 são brancos? Porque o meio deles é esse, eles são ricos, gostam de carros, fazem os carros muito bem, sabem dirigir muito bem, é natural do meio”.
Mas rap é música. O rap “não tem que construir escola, hospital...”, diz ele. O papel do rap é contribuir para a boa música do planeta.
É possível ouvir uma mostra do trabalho dos grupos citados nos links www.myspace.com/relatosdainvasao e www.myspace.com/cagebe
Liliane Braga é jornalista, autora da dissertação de mestrado “De Oyó-Ilé a ‘Ilé-Yo’: Xangô e o patrimônio civilizatório nagô na identidade de um rapper afrodescendente” (Psicologia Social - PUC-SP) e diretora do curta-metragem “Zona Caliente – Santiago de Cuba Hip Hop”. bragaliliane@hotmail.com
Fonte: CarosAmigos
Rotação 33 Fita Mixada - Dj Kl Jay - Intro.
Introdução da "Rotação 33 - Fita Mixada", performance do Dj KL Jay, dos Racionais MC´s, ao vivo em estúdio, composta de faixas de rap nacional, muitas produzidas por ele mesmo, extraídas de discos de vinil.
Clipe Rotação 33 Fita Mixada - Dj Kl Jay
Videoclipe da "Rotação 33 - Fita Mixada", com KL Jay. Conta ainda com a participação de um time de MC´s da nova escola como: Gaspar, Max B.O., Parteum, Kamau, Aori, Lívia e Andrômeda.
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