quarta-feira, 30 de abril de 2008

Não sou Anjo Nenhum, Conto

Não sou anjo nenhum
Samara Leonel

Foi a primeira frase que ela me disse. "Não sou anjo nenhum e jamais disse que era." Modo estranho de começar um depoimento. Depoimento, de resto, todo estranho. Por isso agora, expediente acabado, escrevo neste quarto de hotel. Para tirar de dentro e dormir. Desintoxicar

Não era um anjo, mas era verdade que demorou na vida para conhecer o pecado. Foi mais, mesmo, quando conheceu o homem. Antes, seus pecados eram a preguiça – para a qual logo não sobrou muito tempo, filha que era de uma família de pescadores. E um tiquinho de gula, quando a mãe fazia doce, que ela adorava. O resto não conhecia, não. Cresceu reta na vida de sol e trabalho, igreja aos domingos, aprender a rezar para que o pai e os irmãos sempre voltassem do mar. Mas um dia ele chegou.

Luxúria, diria eu; ela usou "desejo". E cobiça. Quando aquele homem de pele clara e cabelos louros chegou, ela só tinha quinze anos, mas o quis de imediato. Ela nem sabia bem pra quê, foi descobrir direito depois, mas queria. Queria a voz dele, aquele sotaque que raspava nos erres e que amolecia suas pernas, queria os braços fortes, e mais tarde, quando descobriu que os olhos dele eram verde-água e não escuros como o de toda gente, quis aqueles olhos para ela também. E desde o dia que o viu, só o queria mais ver. Mais e mais. Entrou numa consumição.

Até a mãe a deixou um dia sem trabalhar, porque a encontrou com febre. Mas a febre só fazia aumentar... À tarde disse que estava bem e pediu para ir à venda. Foi nesse dia que ela se fez notar – daí, para ele cair na sedução fácil da carne virgem que se oferecia, foi um pulo, questão de dias. Poucos dias.

Ela já tinha ouvido falar que ele tinha uma mulher, branca como ele. Mas não importava, nada importava. Era atrás dela que ele ia – e atrás das dunas de areia branca ela descobriu para que mais o queria. Descobriu que também queria o peso daquele homem entre suas coxas, que queria seu hálito e o roçar daquele cabelo fino no seu rosto. Tudo isso é comum na vida de todo mundo, mas o olho brilhante daquela menina dizendo "eu descobri o céu...", sem vergonha nenhuma, numa sala só de homens, é coisa que mexe com a gente.

A família, por sorte, era muito quieta, não gostavam de fofocas e a mãe não ia muito prosear na vila. Mas a mulher do gringo, não. Começou a assuntar, a querer saber, a seguir o marido. E, para desespero dela, o homem começou a se apavorar. Não aparecia a encontro marcado, propunha lugares cada vez mais ermos. "Por que não larga dela de uma vez e fica comigo? Porque tem tanto medo? O que te prende a essa mulher?" Ela perguntava, cada vez mais irada, e ele ria nervoso, dizia que eram coisas que ela não entenderia... Até que chegou o dia que ele não apareceu mais e mandou recado para ela, que eles deviam esperar a mulher se acalmar. "Até quando?" Ele nunca respondeu.

Ela chorou, chorou, chorou uma noite inteira no quintal, alegando para a mãe que estava com falta de ar e ia sair do quarto. A mãe estava tão cansada que nem perguntou. Procurava o gringo por tudo, mas ele desviava dela.

Até aquela tarde. Ela chegou em casa da venda e estava tudo parado, estranho. Ela sentiu um arrepio. Quando entrou, na sala de chão batido, a gringa olhou para ela com ar de vencedora. Levantou e saiu, nem se despediu da mãe ou lhe dirigiu a palavra. O rosto da mãe estava lavado de vergonha. Aquele dia ela apanhou da mãe, até o pai chegar. Então apanhou do pai, até ele se cansar. Eles não falavam, não xingavam, só batiam. Gente quieta. Dava para ver que ela falava sem ódio deles. Deles.

Ela disse que foi nessa noite que ela aprendeu a odiar a gringa, de quem antes só tinha raiva. Um ódio feio, grande, descomunal. Daí em diante ela perdeu a expressão e voltou a ter a cara que tinha no começo do depoimento.

A partir daquele dia ficou meio que presa na casa dos pais, sem muita chance de saída. Na cidade inteira chamavam ela de "a puta do gringo" – faziam em voz alta o que antes cochichavam. Para a família era vergonha grande, era filha de nunca mais casar. Mas ouviu um moleque comentar com um irmão que os gringos iam embora. Foi demais para ela. Passou aquela noite inteirinha pensando, olhando pro teto. Sem uma lágrima. Fugiu enquanto a mãe lavava roupa, com a faca de abrir peixe. Se esgueirando pela cidade, entrou na casa dos gringos pela janela e estripou a mulher branca como se fizesse isso de pequena.

Nos descreveu o modo como a derrubou com um golpe de licoreira e cada um dos doze golpes como se fosse ontem. Sem emoção, sem nojo, sem alegria.

Quando alguém disse, irônico, que ela não parecia se arrepender, ela não demonstrou vergonha. "Só lamento ter terminado de me separar do gringo para sempre. Mas ela tinha que morrer. Quando me trouxeram pra cá, sabia que estava perdida pra sempre. Daqui ninguém sai. Nem ninguém me visita, nem ele, nem mesmo minha mãe. Estou aqui há quanto? Três anos? Mas matava, matava ela de novo. E ainda mais devagar. Maldita."

Quando ela disse “maldita”, seu olho quase brilhou e me deu medo. Não, ela não era nem um anjo. Mas naquela determinação metálica, tinha algo nela que ia além do humano.



Samara Leonel é jornalista e mestranda em literatura japonesa. Acredita que as histórias estão aí pelo mundo, prontas para ser colhidas por aqueles que se permitem o exercício de se abrir para elas. Acredita também que as palavras podem mudar o mundo e as pessoas.

Fonte: LeMondeDiplomatique

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2 comentários:

Karin Dayrell disse...

Uma palavra: envolvente.

Yerko Herrera disse...

Muito!

Beijão Karin!