quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Conto sobre um Homem e sua Solidão

Ludigero
Alessandra Mascarenhas


Ludigero sempre foi um homem solitário. Muito solitário.
Trabalhava oito horas por dia numa repartição pública, onde cumpria suas obrigações mecanicamente.
Era uma figura de uma estética repulsiva. Um homem franzino, baixo, com a pele parda, cheia de manchas mais escuras nas bochechas, olhos esbugalhados sem cílios. Os poucos cabelos escuros que ainda lhe restavam eram empastados de brilhantina barata e fedorenta, colados à cabeça. As mãos esquálidas, ossudas, cobertas por pequenas verrugas, os dentes tortos e amarelados pela nicotina de quem fumava há 30 anos.

Tinha três ternos, os quais revezava durante a semana. Ternos justos demais, todos meio acinzentados, fora de moda, com as mangas dos paletós curtas. E três sapatos velhos, já reformados muitas vezes em sapateiros baratos.
Um homem calado, distante, sério. Os colegas de repartição nunca souberam detalhes de sua vida pessoal. Sabiam apenas que era solteiro, não tinha filhos e morava sozinho.

Trabalhava o dia todo e chegava no fim da tarde cansado no seu desconfortável quartinho alugado, nos fundos de uma casa. Um quarto minúsculo, escuro, úmido e deprimente. Como móveis apenas uma cama estreita, um guarda-roupa de pintura descascada e um criado-mudo ao lado da cama com um velho abajur em tom amarronzado. E um banheirinho pequeno anexo ao quarto, onde reluzia, em lugar de honra, sobre a prateleira encardida do espelhinho, o pote de sua inseparável brilhantina. Brilhex com aroma de jasmim.

E assim o pobre passava seus dias e noites. Uma vida medíocre e triste. Ludigero tinha cheiro de mofo.

Numa certa noite, ao se deitar, percebeu que algumas baratas enormes rodeavam sua cama, no chão. Ficou observando curioso o movimento delas por algum tempo até adormecer placidamente.

No dia seguinte, ao acordar, percebeu que na noite anterior dormira rápido e continuamente a noite toda, como nunca acontecera. Espantou-se, pois ele sempre tivera problemas para dormir, insônia ou um sono entrecortado por pesadelos, agitação e suores noturnos.

Sentou-se na cama e chegou à conclusão de que a companhia das baratas havia diminuído sua sensação de abandono, sua solidão costumeira. Com a presença daqueles insetos nojentos havia se sentido amparado e reconfortado, como se houvesse mais alguém naquele quarto além daquele ser desprezível e infeliz que se considerava.

Então, dali em diante, todas as noites Ludigero queria a companhia das baratas.

Chegava em seu quarto e meticulosamente distribuía pelo chão perto da cama carreiras finas de açúcar. Não demorava muito e elas chegavam. Muitas, em fila, sem se assustarem com a presença do homem por perto. Deitava-se, sempre as observando e com o tempo arriscava-se até a acariciar suas costas cascudas. Colocou nomes em cada uma delas. Conhecia uma a uma. Contava seus problemas, preocupava-se se alguma parecia mais fraca, dobrando sua dose diária de açúcar para reanimá-la. As baratas se transformaram em seus filhos, sua família.

Passou muito tempo assim e foi melhorando sensivelmente de ânimo a cada dia. Dormia bem, acordava disposto, trabalhava melhor e voltava para a casa ansioso, para cuidar de suas baratas.

Até que numa certa manhã acordou indisposto. Vômito e diarréia. Mal conseguia chegar ao banheiro. E as baratinhas ali, perto da cama, imóveis, como se entendessem que Ludigero estava mal. Muito mal.

Naquela manhã não foi para a repartição. Só havia faltado uma vez ao trabalho, em 30 anos de serviço, no dia da morte de seu pai.

Os colegas ficaram intrigados com aquela cadeira encardida vazia, pois era como se Ludigero fizesse parte da mobília do escritório. Então, de repente, dona Marieta teve a idéia de seguir para o endereço do homem, pois quem sabe esteja até morto, o coitado.

Pegou decidida seu Fusca 69 azul-claro, muito bem conservado e seguiu para o local. Andou pelo pequeno corredor que desbocava no quartinho modesto. Bateu três vezes, sem resposta. Aguardou, torcendo as mãos cheias de anéis, nervosa.

Nada. Então forçou a porta, que abriu. Colocou só a cabeça dentro do lugar e logo avistou Ludigero estendido na cama, de cuecas. Timidamente resolveu entrar. Aproximou-se lentamente do homem, que a encarou de forma suplicante, explicando estar mal. Muito mal.

Marieta sentou-se na beirada da cama. Colocou a mão direita sobre a testa lavada de suor dele e exclamou que estava ardendo em febre e que deveriam seguir imediatamente para o hospital. Ele concordou com a cabeça, levemente.
A mulher então olhou ao redor o lugar tão modesto, escuro e terrivelmente feio. Suspirou, com pena dele, até que algo chamou sua atenção. Encarou com seus grandes olhos muito maquiados o chão, perto da cama. Então sua expressão modificou-se instantaneamente. Baratas!!!!! Muitas. Dezenas. Organizadas no chão, lado a lado, como que hipnotizadas.

Prostrou-se em pé num grito e enlouquecidamente colocou-se a pisotear, com seus sapatos vermelhos de salto alto, os insetos. Gosma e casca espalhando-se por todo o chão.

Ludigero sentiu seu coração gelar. Recuperou as forças perdidas e jogou-se da cama num salto. Um grito grave de voz de homem ecoou no ambiente. Ele fitou-a, com os olhos injetados de ódio e horror e lançou-se sobre ela ao chão como um urso com fome. Agarrou o pescoço da mulher, com as duas mãos e apertou-lhe a garganta com toda a fúria contida em sua alma. Os olhos de Marieta vidrados nos dele, arregalados, a língua para fora, a boca escancarada, as pernas de debatendo. Um pé do sapato voou para longe. Aos poucos ela silenciou os gemidos e um filete de sangue escorreu de sua boca semi-aberta.

Ludigero então lentamente soltou as mãos, e num choro compulsivo recolheu os restos pisoteados de suas companheiras e amadas baratas. Largou-se no chão, encolhido como um feto, ao lado do corpo de dona Marieta e chorou aos berros toda a dor que jorrava de dentro dele. Matou por amor à sua família.


Alessandra Mascarenhas
Residente em Sorocaba/SP, formada em História e Direito. Tem como hobby e paixão as palavras. Escreve compulsivamente contos sobre temas diversos e os divulga em sites especializados.Possui um site www.varaldaliteratura.ale.nom.br onde divulga seus textos e de colaboradores.
E-mail para contato: contato@varaldaliteratura.ale.nom.br
Fonte: OCaixote

Um comentário:

Anônimo disse...

É a segunda vez que eu leio esse conto e eu me emociono!
É muito lindo!
Beijos.