quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Tire o seu Sorriso/Piercing do caminho

Duas canções, duas queixas, duas mágoas. Uma é antiga, um samba clássico que foi gravado inicialmente pelo cantor Raul Moreno em 1957, sem muito sucesso; regravada em 1964 por Elizeth Cardoso foi sucesso de público e crítica. A outra, mais contemporânea, é um rap de autoria de um dos nomes mais respeitados da atual música popular brasileira, e foi gravada em 1998. As duas contém uma ordem enérgica gerada pela dor de um abandono, pelo desgosto de uma banalizada troca. Mais de quarenta anos separam A Flor e o Espinho, de Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha, com Piercing, de Zeca Baleiro, porém, ambas contém o desabafo por conta de um amor desrespeitoso que se foi, cada qual dialogando com o tempo que a cerca, expressando-se ao seu modo.

A Flor e o Espinho já foi interpretada, além de Raul Moreno e Elizeth Cardoso, por Beth Carvalho, Paulinho Moska, entre outros. O Música&Poesia apresenta a bela versão interpretada pela musa Roberta Sá. A interprete gravou A Flor e o Espinho no disco Sambas e Bossas, não lançado comercialmente pois foi produzido para distribuição como brinde de uma empresa, antes de seu CD de estréia Braseiro.

Piercing, de Zeca Baleiro, que está no álbum Vô Imbolá, de 1999, conta com a participação especial do grupo de rap pernambucano, Faces do Subúrbio. Livremente inspirada no samba de Nelson Cavaquinho, Piercing, tem samples de A Flor e o Espinho, Singing in the Rain (Arthur Freed/Herb Brown), Avohai (Zé Ramalho), Presente Cotidiano (Luiz Melodia) e Nostalgia da Modernidade (Lobão/Ivo Meireles/Regina Lopes).


Yerko Herrera


a flor e o espinho - roberta sá

A flor e o espinho
(Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha)

Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu só errei quando juntei minh'alma à sua
O sol não pode viver perto da lua
É no espelho que eu vejo a minha mágoa
É minha dor e os meus olhos rasos d'água
Eu na tua vida já fui uma flor
Hoje sou espinho em seu amor
Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca a flor
Eu só errei quando juntei minh'alma à sua
O sol não pode viver perto da lua


piercing - zeca baleiro

Piercing
Zeca Baleiro (1998)


tire o seu piercing do caminho
que eu quero passar com a minha dor

pra elevar minhas idéias não preciso de incenso
eu existo porque penso
tenso por isso insisto
são sete as chagas de cristo
são muitos os meus pecados
satanás condecorado
na tv tem um programa
nunca mais a velha chama
nunca mais o céu do lado
disneylândia eldorado
vamos nós dançar na lama
bye bye adeus gene kelly
como santo me revele
como sinto como passo
carne viva atrás da pele
aqui vive-se à míngua
não tenho papas na língua
não trago padres na alma
minha pátria é minha íngua
me conheço como a palma
da platéia calorosa
eu vi o calo na rosa
eu vi a ferida aberta
eu tenho a palavra certa
pra doutor não reclamar
mas a minha mente boquiaberta
precisa mesmo deserta
aprender aprender a soletrar

não me diga que me ama
não me queira não me afague
sentimento pegue e pague
emoção compre em tablete
mastigue como chiclete
jogue fora na sarjeta
compre um lote do futuro
cheque para trinta dias
nosso plano de seguro
cobre a sua carência
eu perdi o paraíso
mas ganhei inteligência
demência felicidade
propriedade privada
não se prive não se prove
don't tell me peace and love
tome logo um engov
pra curar sua ressaca
da modernidade essa armadilha
matilha de cães raivosos e assustados
o presente não devolve o troco do passado
sofrimento não é amargura
tristeza não é pecado
lugar de ser feliz não é supermercado

o inferno é escuro
não tem água encanada
não tem porta não tem muro
não tem porteiro na entrada
e o céu será divino
confortável condomínio
com anjos cantando hosanas
nas alturas nas alturas
onde tudo é nobre
e tudo tem nome
onde os cães só latem
pra enxotar a fome
todo mundo quer quer
quer subir na vida
se subir ladeira espere a descida
se na hora h o elevador parar
no vigésimo quinto andar
der aquele enguiço
sempre vai haver uma escada de serviço

todo mundo sabe tudo todo mundo fala
mas a língua do mudo ninguém quer estudá-la
quem não quer suar camisa não carrega mala
revólver que ninguém usa não dispara bala
casa grande faz fuxico quem leva a fama é a senzala
pra chegar na minha cama tem que passar pela sala
quem não sabe dá bandeira quem sabe que sabia cala
liga aí porta-bandeira não é mestre-sala
e não se fala mais nisso mas nisso não se fala

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