sábado, 28 de junho de 2008

Música de Chico Buarque para os sem-terra

Quando o livro de fotografias Terra, de Sebastião Salgado, com introdução de José Saramago, foi lançado, vinha incluso um CD de Chico Buarque. Chico dedicou o disco "aos milhares de famílias de brasileiros Sem Terra que sobrevivem em acampamentos improvisados às margens das rodovias, lutando, na esperança de um dia conquistar um pedaço de terra para produzir". O álbum contém quatro músicas, todas do Chico, com exceção de Levantados do Chão, parceria dele com Milton Nascimento. Assentamento é a primeira faixa do disco dedicado aos sem-terra e pode ser ouvida no tocador abaixo.

Assentamento - Chico Buarque



Assentamento
Chico Buarque/1997
Para o livro Terra

Quando eu morrer, que me enterrem na
beira do chapadão
-- contente com minha terra
cansado de tanta guerra
crescido de coração
Tôo

(apud Guimarães Rosa)

Zanza daqui
Zanza pra acolá
Fim de feira, periferia afora
A cidade não mora mais em mim
Francisco, Serafim
Vamos embora

Ver o capim
Ver o baobá
Vamos ver a campina quando flora
A piracema, rios contravim
Binho, Bel, Bia, Quim
Vamos embora

Quando eu morrer
Cansado de guerra
Morro de bem
Com a minha terra:
Cana, caqui
Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim
Vamos embora



Trecho de entrevista com Chico Buarque

Chico Buarque canta sobre a terra

Cerca de quinze minutos depois de terminado o evento de lançamento do livro "O Espírito e a Letra", de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, na última sexta-feira no Masp, o cantor e compositor Chico Buarque foi embora para sua casa em São Paulo caminhando pelas ruas. Dispensou seguranças e seguiu a passos acelerados: "Adquiri sotaque paulista nos pés".
Foi apenas interrompido por um guardador de carro: "Oi, estou guardando vosso motor". Cumprimentou-o: "Mas você não me guardou, não, estou a pé". Em uma conversa rápida nesse trecho, Chico falou sobre o projeto que vem fazendo com Sebastião Salgado para o livro "Terra".

Folha - Você prepara um CD para ser lançado com o livro "Terra", do fotógrafo Sebastião Salgado?

Chico Buarque - É um projeto em conjunto com o Salgado e a Companhia das Letras. Na capa do livro vai ter um encarte com o CD, que é um compacto pequeno, com umas quatro músicas, uma coisa simples... Tenho uma música e meia pronta. A que está feita chama "Levantadas do Chão", e a outra é um baião, que estou querendo terminar agora.

Folha - Mas você e Salgado trabalharam juntos?

Chico Buarque - Tivemos uma conversa, e ele deixou as fotos que vão constituir o livro. Isso foi o que eu dispus para compor. O tema é a terra, o trabalhador sem terra, o sem-terra na cidade e no campo.

Folha - Tem pesquisa de ritmos?

Chico Buarque - Não, não existe uma fidelidade ao folclore. São canções que me apareceram. Na verdade, a letra que já escrevi foi sobre uma música que Milton Nascimento me mandou para fazer. Falei: "Opa, essa música tem tudo a ver com as fotos do Salgado". Aí fiz a letra em cima das fotos e da música do Milton.


Entrevista para Daniela Rocha, Folha de São Paulo, 25/11/96

(entrevista completa)


Fonte entrevista e letra de "Assentamento": Saite oficial Chico Buarque

Fonte música e imagem: MST

Ando meio Cheio de Tudo

A animação Vazio Agudo, produzida pela galera da Animática Fábrica, foi inspirada em poesia de Paulo Leminski.

Vazio Agudo



Sinopse
Melancolia e solidão em haikai de Paulo Leminski.

Gênero Animação
Diretor Cristiane Fariah
Duração 1'30''
Cor P&B / Colorido
País Brasil



"vazio agudo
ando meio
cheio de tudo."
Paulo Leminski



Mais animações e filmes no OutroCine - Outro jeito de ver cinema

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O Desaparecido - Rubem Braga

O Desaparecido
Rubem Braga

Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.

Do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 112.


Fonte: Releituras

Mais sobre Rubem Braga no excelente Releituras.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Se você for eu vou correr

Do Sétimo Andar - Los Hermanos

A música Do Sétimo Andar, composição de Rodrigo Amarante, faz parte do disco Ventura (2003), terceiro do Los Hermanos. O vídeo acima pertence ao DVD Ao Vivo no Cine Íris (2005), que é uma gravação do show realizado no Cine-Theatro Íris, Rio de Janeiro, em Julho de 2004.


DO SÉTIMO ANDAR

Rodrigo Amarante

Fiz aquele anúncio e ninguém viu. Pus em quase todo lugar
a foto mais bonita que eu fiz,
você olhando pra mim.

Alto aqui do sétimo andar longe eu via você
e a luz desperdiçada de manhã no copo de café.

Deus sabe, o que eu quis foi te proteger
do perigo maior que é você.
E eu sei que parece o que não se diz...
o seu caso é o tempo passar.

Quem fala é o doutor.
Parece que foi ontem eu fiz aquele chá de habu
pra te curar da tosse e do chulé, pra te botar de pé.

E foi difícil ter que te levar àquele lugar...
Como é que hoje se diz? ...você não quis ficar.

Os poucos que viram você aqui
disseram que mal você não faz.
E se eu numa esquina qualquer te vir
será que você vai fugir?

Se você for eu vou correr!
Se for eu vou...!

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Está-se a Fingir muito Bem, Herberto Helder

Poemas do português Herberto Helder, considerado um dos mais originais poetas vivos de língua portuguesa. Estas poesias de Herberto Helder, o poeta obscuro, foram retiradas do excelente blogue Canal de Poesia.

dir-te-ei quem sou

Dir-te-ei quem sou,
houve um tempo,
tive um sonho,
lembro-me do teu rosto,
a tua voz já existia.

E ele atravessa a rua,
passando pelo tempo,
de pedra em pedra,
com um cigarro na mão
para pedir lume
ao cigarro alheio,
que brilha no outro lado,
ao cimo dos três degraus.

Vai ser assim:
dá-me lume, por favor?,
e o cigarro encostar-se-á ao seu,
o lume passará de um para outro,
de uma pessoa para outra pessoa,
e então,
no meio da eternidade deserta,
será sim o dia de hoje.

Mas a noite é imensa,
quer dizer:
a noite do lugar e do tempo,
a noite da nossa solidão
— é imensa,
e apenas um pequeno órgão vivo
palpita algures,
vibra rapidamente,
e amortece-se,
e desaparece.

Então,
uma vez mais
a noite se levanta de nós,
e o que estremece é a carne,
a nossa,
cega e desamparada
— mas fremente
na sua cegueira e desamparo.

Sabes que estás só?
— pergunta a carne à carne —,
sabes que a noite se ergueu de ti,
como se fosses o seu próprio
e único talento,
e que esse talento te cerca
como uma atmosfera,
o morto clima que transportas em ti,
de um lado para outro,
ao longo das pedras,
ao longo de todos os lugares
do homem?

Ela sabe,
ou pelo menos
sabe que sabe.

E
é demasiado.

Por isso,
olha
e espera.

E vê de novo
a brasa que estremece
na escuridão
como uma planta
que crescesse
e florescesse na terra negra,
ou um animal
cujo calor abrisse uma brecha
no tempo frio.

A carne embriaga-se
com imprecisas metáforas de salvação
— que salvação?!
com um movimento subterrâneo de analogias,
e ele diz:

vou pedir-lhe lume.

Vai através do bairro múltiplo,
o tempo que o escuro abafou,
e então
é como se fosse fora do tempo,
ou dentro de todo o tempo,
à procura do lume
para o seu cigarro.


ficarão para sempre abertas as minhas salas negras

Ficarão para sempre abertas as minhas
salas negras.

Amarrado à noite,
eu canto com um lírio negro sobre a boca.

Com a lepra na boca,
com a lepra nas mãos.

Este mamífero tem sal à volta,
este mineral transpira, a primavera precipita-se.

Com a lepra no coração.

Mais de repente,
só chegar à janela e ver uma paisagem tremendo
de medo.

E uma vida mais lenta
só com uma estrela às costas,
uma tonelada de luz inquieta,
uma estrela respirando como um carneiro
vivo.

Igual a esta espécie de festa dolorosa,
apenas um ramo de cabelos violentos
e o seu odor a pimenta,
no lado escuro
como se canta que as salas vão levantar
o seu voo.

Ficarão para sempre abertas estas mãos exageradas
em dez dedos com sono,
como uma rosa acima do pénis.

Ao cimo do caule de sangue,
essa flor confusa.

Um equilíbrio igual,
só a estrela ao cimo do êxtase.

Só alguma coisa parada no cimo de uma visão
tremente.

A primavera, que eu saiba,
tem o sal como cor imóvel,

Por um lado entra a noite,
assim de súbito negra.

De uma ponta à outra enche-se o espaço
aplainando tábuas.

Rasga-se seda para aprender o ritmo.

Abraço um corpo com as camélias
a arder.

Abertas para sempre as negras partes
de mais uma estação.

Semelhante a isto
as mulheres andam pelas galerias transparentes,
e o palácio queima a noite onde estou
cantando.

É possível ainda cortar ao meio o ofício de ver —
e num lado há espelhos bêbedos,
no outro um cardume ilegível de sons
obscuros.

Sabe-se então pelo silêncio em volta,
sabe-se em volta que são lírios
sonoros.

Passando
as mulheres colhem estes sons irrompentes,
e as mãos ficam negras junto à beleza
insensata.

Elas sorriem depois com um talento
terrível.

Levamos às costas um carneiro palpitante.

Pesa tanto uma estrela
quando se acorda nas salas negras abertas de par em par,
e as mãos agarram um ramo de cabelos dolorosos,
e sobre a boca um lírio em brasa,
branco, branco,
que não nos deixa respirar.

A lepra na boca,
que não nos deixa respirar.


Um ramo de lepra contra o corpo,
como isto então só o movimento de águas obscuras
pelos canais de um canto,
como um palácio de salas negras abertas
para sempre.

Este animal respira como um espelho de pé,
no ar,
no ar.

herberto helder
apresentação do rosto
(as palavras)
editora ulisseia
1968



as flores que devoram mel

As flores que devoram mel
ficam negras em frente dos espelhos.

Os animais que devoram estrelas em frente dos espelhos
ficam brancos por detrás dos pêlos
ou das plumas da idade.

As pedras por onde circula a água
ficam vivas de tanto cantar e, quando se voltam,
atingem a sua maior velocidade interior.

Se vêm às portas ver quem bate,
os lençóis cobrem--se de respiradoras —
quando regressam ao sono, deixam as mãos abertas.

Se é uma estátua que bate,
corre-lhe o sangue pela boca, e sobre os ombros
torcem-se os cabelos,
e as asas tremem em frente da porta.

Se é um retrato,
sorri sufocado pela noite adiante.

Os espelhos são negros como os jacintos
da loucura.

Os crimes que olham para o espelho têm uma vibração
silenciosa.

Se é uma criança, diz:
eu cá sou cor-de-laranja.

Porém às vezes é bom ser branco,
é bom estar deitado.

O mel faz bem às pedras,
atrai os olhos dos anjos.

Quem aplaina tábuas
acumula uma obscura sabedoria.

Olha para os espelhos,
tens um talento assimétrico de assassino.

Vê-se nos teus ramos frutos negros
contra a paisagem móvel.

Se fosses um peixe,
a porta estaria nas águas mais íntimas, frias, límpidas
e caladas.

E não batias — cantavas a tua síncope
terrível.

Nada se veria na vertente do espelho.

Serias como uma máquina cor de cal
respirando.

Por isso te ofereço este ramo de lâminas
e um fato de perfil — e andas nos labirintos.

Por isso te sento numa cadeira de ar.

Por isso somos os dois um quadrúpede de seda
de uma beleza truculenta.

Temos toda a vigília para encher de silêncios.

Pensamos os dois o mesmo corpo inaugurado.

As flores que devoram mel tornam negros
os espelhos.

As colinas vão olhando, e tremem na nossa carne
as estampas de ouro
extenuante.

Por isso, por isso, por isso —
somos assim
obscuros.

herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968



esta mão que escreve a ardente melancolia

(a carta da paixão)

Esta mão que escreve a ardente melancolia da
idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a
sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça : essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a carne. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce : eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002



está-se a fingir muito bem

(…)

Está-se a fingir muito bem.
Finge-se quase até ao esquecimento.
Há paisagens, ruas, cinemas, amores, dinheiro,
pensamentos, palavras, estações do ano
e obras de arte.

Diz-se: a vida.

Ou: o tempo.

E um dia abre-se o livro
e vê-se de novo a fotografia.
E já não se recomeça a leitura no mesmo ponto.
O que se roubou foi o tempo,
sim, mas não naquele primeiro sentido suposto.
A antiquíssima imagem fixa
serve para se roubar ao tempo a sua qualidade de perdão.

Porque a idade não ensina a anuência aos bons
e fáceis sentimentos.
A idade é: cada vez mais atenção.
Só te resta isso, caminhador:
o perigo.
O perigo que é o conhecimento,
o conhecimento ganho na atenção.

Um homem que conquistou a sua idade
não pára diante da fotografia antiga
para se comover e murmurar:
a mãe com o seu filho ou o filho com a sua mãe.

Ele pensa: quem são?
o que fazem um ao outro?
Ele ouve:
vou morrer, e vou deixar-vos descansados.
E ouve a sua própria voz:
então morra.

E as mãos inocentes.

De uma delas sabe que se moveu
como se agarrasse um punhal
— a pequena mão inocente registada com oito anos.

Descanso?
Mas isso conhecia ela bem que seria impossível.
O que ela dizia era assim:
morro para que tu, tu, tu,
não tenhas nenhuma espécie de descanso.

Um pouco mais, um pouco mais
— é para isso que as imagens são imóveis.
Tu próprio não és uma criatura móvel,
a menos que fales em atenção,
em profundidade.

Desce àquilo em que te encontras imóvel.

Mas em vez disso saímos para a rua,
à procura dos velhos companheiros:
os que se vão suicidar,
os que se encontram à entrada do seu irrevogável romance de esquizofrenia,
os que de longe escreverão uma carta
pedindo para os ajudarmos a virem morrer nesta cidade branca
que, do outro lado,
quando se está com o fígado desfeito e a cabeça a tremer,
a gente imagina metaforicamente aérea,
varrida por ventos puros.

Saímos em busca dos bêbados.

Pretende-se a ilusão de espaços dinâmicos,
figuras que se propaguem através deles,
o empolgante cinetismo das visões,

E que haja tempo, o tempo, o tempo.

Que as coisas avancem,
desfazendo os nós ferozes onde a angústia se concentrou.

Uma semana de bebedeira ininterrupta
— e aparecem as amiguinhas,
vamos todos de um lado para outro,
bando apocalíptico,
animado por um furor malsão, uma alegria brutal.

Arranjamos um quarto,
despimo-nos,
e depois estamos noutro quarto,
e estamos a despir-nos,
e de novo a fazer amor,
quatro, seis, oito em cima do tapete —
o terrível milagre de uma alucinação de pernas,
braços, seios, mãos, sexos, coxas, cabeças, vestidos, camisas.

E uma madrugada, só,
vagueando pelos cais desertos,
no meio da luz suja e trémula,
ressurge o horror da inteligência.

Vê-se tudo, e seria preciso morrer.

E então volta-se para casa,
procura-se a fotografia no livro,
no fundo de uma gaveta,
e está lá isto: o tempo não existe.

Seria possível uma pequena piedade por nós próprios,
mas somos tão pouco sentimentais,
nós.

Não gostamos da piedade.

Descobre-se que a mãe não era para piedades.
A perversa cabeça infantil
entra nela como um punhal,
e a mãe, sem conhecer o peso do braço do cavalheiro,
olha o espaço, de lado, neutra,
ligada àquela espécie de enigmático crime,
à obscura vingança
no outro lado da sua profecia do descanso para eles, para ele, ele
— para ti.

Decifrando a metáfora,
percorrendo os caminhos para descobrir as deslocações das partes
e, assim, recompor a verdade do texto
— a fotografia, a realidade, a vida
— ele descobre que toda a gente tem as mãos cheias
de sangue.

Que nada foi criado
que o não fosse no abismo das destruições.
E entendendo enfim a linguagem das fotografias,
ele assume a sua desgraça,
e a insignificância dela,
e supõe poder avançar,
liberto,
para a sua própria morte,
algures num tempo.

(…)

herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968



as palavras

(…)

durmo.
durmo de pé atravessando quartos, as minhas mãos não dormem —
talvez eu sorria estremecendo,
estremecendo.

as minhas mãos saem do sono, para os lados, mexem, mexem,
os pés estão acordados
e levam com um sorriso o meu sono pelos espaços vivos e brancos, sem som —
estou de pé estremecendo.

depois tenho quatro patas
como um perfume que partisse
ou uma flor que partisse à procura do seu perfume.
digo que tenho uma aflita quadrupedia,
como um cão nu que fosse em busca da sua flor desaparecida em toda a parte,
neste clima aberto à volta do clima.

as minhas patas saem do sono
para saber como é o espaço exasperado do clima,
andam pelos soalhos do clima —
e ao alto do movimento
há um sorriso em lume brando numa pessoa estremecendo,

aprendi como é devagar —
comer devagar, sorrir, dormir devagar, cagar e foder —
aprendi devagar.

entretanto, se me falarem de rosas não me falem de rosas —
falem-me da espinhosa arte de ser rosa,
da arte do devagar.

mexes-te muito, digo eu,
e penso: mexes-te muito pouco —
é que eu sou o muito mais possível devagar, respondo,
é que eu sou o sangue procurando, pelos tubos quentes,
o pavor do coração.

sou o sangue em busca de como há-de bater nas mãos e nos pés,
através das galerias,
como um ramo de ventania a bater no espaço da ventania.

mexes-te pouco, é o sono que te leva,
as mãos tremem,
os pés apanham os passos um pouco atrás,
o coração é terrível como um órgão oculto —
mas a boca exposta
é que é o órgão do amor.

durmo, durmo, durmo em todas as direcções —
abrem luzes como quem espanca neve,
tornam claro como quem desdobra lençóis,
tiram do sono como quem abre torneiras
sobre as ervas espantadas.

oh, deixa-me tu passar, digo-me eu,
dá-me a superfície inteira desta noite irregular,
a profundeza deste sono
onde apenas se mexe uma incrível sabedoria à força de lentidão.

é isto que levo no corpo -
a nudez, a nudez.

e a nudez põe o sono às costas,
caminha, sabe, encontra, perde e caminha —
toda exposta em seu espaço branco.

não te importes com a água fria
que atravessa a primeira imagem da tua ciência —
tu abraças o amor como se abraçasses uma chaga ardente:
a lepra, a loucura, a visão.

(...)

herberto helder
apresentação do rosto
(as palavras)
editora ulisseia
1968



é amargo o coração do poema

É amargo o coração do poema.
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,
em baixo a outra mão
mexe num charco branco. Feridas que abrem,
reabrem, cose-as a noite, recose-as
com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára
de mão a mão salgada, entre os olhos,
nos alvéolos da boca.
O sangue que se move nas vozes magnificando
o escuro atrás das coisas,
os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos
que escreves
entre os meteoros. Cose-te: brilhas
nas cicatrizes. Só essa mão que mexes
ao alto e a outra mão que brancamente
trabalha
nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício
de elegância bárbara. Até que sentado ao meio
negro da obra morras
de luz compacta.
Numa radiação de hélio rebentes pela sombria
violência
dos núcleos loucos da alma.

herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002



nos dias nevoentos fecho as janelas

(…)

Nos dias nevoentos fecho as janelas,
acendo a luz forte
e deito-me no tapete.

Leio ou penso.
Ou então fumo,
enquanto as camadas de silêncio se sobrepõem,
e as mais pesadas descem
e as mais leves se tornam pesadas,
até ser impossível destruir o silêncio.

É fascinante,
debaixo de uma luz que brilha tanto.

Lá fora, a terra
- a terra das criaturas que se aproximam uma das outras,
se tocam e falam.

O silêncio é sólido,
iluminado por cima,
aquecido pelos lados.

Durante seis meses fumo e leio,
estendido no tapete.

Depois chega o verão,
e subo à montanha,
e vou para o mar.

Rebento de sol e água,
do odor a terra quente
e agulhas de pinheiro.

Estou tremendamente forte.

(…)

apresentação do rosto
herberto helder
editora ulisseia
1968


Fonte poesias: Canal de Poesia


Herberto Hélder de Oliveira (Funchal, 23 de Novembro de 1930) é um escritor português de ascendência judaica.

Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo trabalhado em Lisboa como jornalista, bibliotecário, tradutor e apresentador de programas de rádio. Viajou por diversos países da Europa realizando trabalhos corriqueiros, sem nenhuma relação com a literatura.

É considerado um dos mais originais poetas vivos de língua portuguesa. É uma figura misantropa, e em torno de si paira uma atmosfera algo misteriosa uma vez que recusa prémios e se nega a dar entrevistas. Em 1994 foi o vencedor do
Prémio Pessoa que recusou. É pai de Daniel Oliveira.

A sua escrita começou por se situar no âmbito de um
surrealismo tardio. Escreveu "Os Passos em Volta", um livro que através de vários contos, sugere as viagens deambulatórias de uma personagem por entre cidades e quotidianos, colocando ao mesmo tempo incertezas acerca da identidade própria de cada ser humano (ficção); "Photomaton e Vox", é uma colectânea de ensaios e textos e também de vários poemas. "Poesia Toda" é o título de uma antologia pessoal dos seus livros de poesia que tem sido depurada ao longo dos anos. Na edição de 2004 foram retiradas da recolha suas traduções.

A crítica literária aproxima sua linguagem poética do universo da Alquimia, da mística, da Mitologia edipiana e da Imago da Mãe. (Fonte:
Wikipédia
, a enciclopédia livre)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Poemas de Décio Pignatari





décio pignatari [20.08.1927, São Paulo SP]

Poeta, ensaísta, tradutor, contista, romancista, dramaturgo, publicitário e professor, nasce em Jundiaí, São Paulo, filho de imigrantes italianos, mas cedo transfere-se para Osasco, onde mora até os 25 anos. Publica seus primeiros poemas na Revista Brasileira de Poesia, em 1949. No ano seguinte, estréia com o livro de poemas, Carrossel, e, em 1952, funda o grupo e edita a revista-livro Noigandres, com os amigos, os poetas irmãos Haroldo de Campos (1929 - 2003) e Augusto de Campos (1931). Em 1953 forma-se em direito pela Universidade de São Paulo - USP - e em seguida viaja para a Europa, onde passa dois anos, mantendo contatos com diversos intelectuais. Em 1956, o grupo Noigandres lança oficialmente o movimento de poesia concreta, durante a Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM/SP, que no ano seguinte é realizada no saguão do Ministério da Educação e Cultura - MEC, Rio de Janeiro. Em 1956, o grupo lança o Plano-piloto para Poesia Concreta, síntese teórica de seu trabalho poético, traduzido em diversas línguas. Em 1965, ainda com Haroldo e Augusto de Campos, lança o livro Teoria da Poesia Concreta. Além de escritor, faz pesquisas na área de semiótica: em 1969, ajuda a fundar a Association Internationale de Sémiotique - AIS -, na França, e, em 1975, participa do lançamento da Associação Brasileira de Semiótica - ABS. Em 1999, muda-se para Curitiba.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Samba do Grande Amor

Samba do Grande Amor - Djavan e Chico Buarque


Samba do grande amor
Chico Buarque/1983
Para o filme Para viver um grande amor, de Miguel Faria Jr.

Tinha cá pra mim
Que agora sim
Eu vivia enfim o grande amor
Mentira
Me atirei assim
De trampolim
Fui até o fim um amador
Passava um verão
A água e pão
Dava o meu quinhão pro grande amor
Mentira
Eu botava a mão
No fogo então
Com meu coração de fiador

Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira

Fui muito fiel
Comprei anel
Botei no papel o grande amor
Mentira
Reservei hotel
Sarapatel
E lua-de-mel em Salvador
Fui rezar na Sé
Pra São José
Que eu levava fé no grande amor
Mentira
Fiz promessa até
Pra Oxumaré
De subir a pé o Redentor

Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito
Exijo respeito, não sou mais um sonhador
Chego a mudar de calçada
Quando aparece uma flor
E dou risada do grande amor
Mentira

sábado, 14 de junho de 2008

Dose de Jamelão

Jamelão, o maior dos mangueirenses, o melhor intérprete de Lupicínio Rodrigues, já não canta mais por estas bandas. O Música&Poesia presta sua homenagem apresentando algumas músicas agraciadas por sua voz. De Ary Barroso Jamelão canta Folha Morta; na seqüencia Foi Assim e Nervos de Aço, de Lupicínio Rodrigues; encerramos com Ronda, de Paulo Vanzolini.

Folha Morta - Jamelão

Folha Morta - Jamelão


Folha Morta
Ary Barroso (1952)

Sei que falam de mim
Sei que zombam de mim
Oh, Deus!
Como eu sou infeliz!
Vivo à margem da vida
Sem amparo ou guarida
Oh, Deus!
Como eu sou infeliz!
Já tive amores
Tive carinhos
Já tive sonhos
Os dissabores levaram minh'alma
Por caminhos tristonhos
Hoje sou folha morta
Que a corrente transporta
Oh, Deus!
Como eu sou infeliz!
Infeliz!
Eu queria um minuto apenas
Pra mostrar minhas penas
Oh, Deus!
Como eu sou infeliz!


Foi Assim - Jamelão
Foi Assim - Jamelão


Foi Assim
Lupicínio Rodrigues


Foi assim
Eu tinha alguém que comigo morava
Mas tinha um defeito que brigava
Embora com razão ou sem razão
Encontrei
Um dia uma pessoa diferente
Que me tratava carinhosamente
Dizendo resolver minha questão
Mas não
Foi assim
Troquei essa pessoa que eu morava
Por essa criatura que eu julgava
Pudesse compreender todo o meu eu
Mas no fim
Fiquei na mesma coisa que eu estava
Porque a criatura que eu sonhava
Não faz aquilo que me prometeu
Não sei se é meu destino
Não sei se é meu azar
Mas tenho que viver brigando
Se todos no mundo encontram seu par
Por que só eu vivo trocando
Se deixo de alguém
Por falta de carinho
Por brigas e outras coisas mais
Quem aparece no meu caminho
Tem os defeitos iguais


Nervos de Aço - Jamelão
Nervos de Aço - Jamelão


Nervos de Aço
Lupicínio Rodrigues


Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer
Você sabe o que é ter um amor, meu senhor
E por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço
Que nem um pedaço do meu pode ser
Há pessoas de nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, é despeito, amizade ou horror
Eu só sei é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor


Ronda - Jamelão


Ronda
Paulo Vanzolini


De noite eu rondo a cidade
A te procurar sem encontrar
No meio de olhares espio em todos os bares
Você não está
Volto pra casa abatido
Desencantado da vida
O sonho alegria me dá
Nele você está
Ah, se eu tivesse quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, esta busca é inútil
Eu não desistia
Porém, com perfeita paciência
Sigo a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando um dadinho
Jogando bilhar
E neste dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
Da avenida São João

Morre Jamelão

Morre Jamelão, a voz da Estação Primeira de Mangueira

por Douglas Côrrea
Repórter da Agência Brasil


Brasília - O Rio de Janeiro perdeu uma das vozes mais marcantes dos desfiles das escolas de samba. José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão, morreu na madrugada de hoje (14), aos 95 anos, de infecção generalizada na clínica Pinheiro Machado, em Laranjeiras, Zona Sul, onde estava internado desde a última quinta-feira (12).

O velório, aberto ao público, está previsto para começar às 18h, na quadra da Estação Primeira de Mangueira, escola do coração de Jamelão, onde ele era o intérprete oficial.

Pouca gente sabia que Jamelão era policial civil e ficava furioso quando alguém o chamava de puxador ele logo dizia: "puxador de fumo, de saco, eu não. Eu sou é cantor, intérprete". O artista manteve-se fiel à mangueira por 56 anos.

Outra característica marcante de Jamelão eram os vários elásticos que ele sempre trazia presos aos dedos. A princípio ele dizia aos amigos que "era para guardar dinheiro". Mais tarde, ele dizia que os elásticos amarravam "quem tinha olho grande nele e era para não deixar o dinheiro sair do bolso dele".

Interpretando as músicas românticas de Lupicinio Rodrigues, especializou-se no samba canção, chegando a gravar dois discos dedicados à obra do grande compositor gaúcho, os consagrados Jamelão Interpreta Lupicinio Rodrigues (1972) e Recantando Mágoas – A Dor e Eu (1987).

O puxador e compositor da Beija-Flor de Nilópolis, Neguinho da Beija-Flor é um dos poucos que seguem a escola do mestre. Nunca deixou sua escola de coração, a exemplo de Jamelão. Ao falar sobre o amigo, Neguinho diz: "Jamelão é insubstituível. Ele foi amigo do meu pai e me tinha como um filho. Me inspirei nele, quando comecei".

O enterro de Jamelão será amanhã (15), às 11h, no cemitério São Francisco Xavier, no Caju, Zona Portuária da cidade. A tradicional feijoada da família mangueirense, que aconteceria hoje (14) na quadra, foi transferida para o próximo sábado (21), quando a Mangueira fará um Tributo a Jamelão.

Fonte: AgênciaBrasil


O conteúdo da Agência Brasil é publicado sob uma Licença Creative Commons Atribuição 2.5. Brasil.

Valente Menina - Crônica de Rubem Braga

Valente Menina!

Rubem Braga


DEBRUÇADO cá em cima, no 13.° andar, fiquei olhando a porta do edifício à espera de que surgisse o seu vulto lá embaixo.

Eu a levara até o elevador, ao mesmo tempo aflito para que ela partisse e triste com a sua partida. Nossa conversa fora amarga. Quando lhe abri a porta do elevador esbocei um gesto de carinho na despedida, mas, como eu previra, ela resistiu. Pela abertura da porta vi sua cabeça de perfil, séria, descer, sumir.

Agora sentia necessidade de vê-la sair do edifício, mas o elevador deve ter parado no caminho, porque demorou um pouco a surgir seu vulto rápido. Desceu a escada fez uma pequena volta para evitar uma poça de água, caminhou até a esquina, atravessou a rua. Vi-a ainda um instante andando pela calçada da transversal, diante do café; e desapareceu, sem olhar para trás.

"Valente menina!" — foi o que murmurei ao acaso lembrando um verso antigo de Vinicius de Moraes; e no mesmo instante me lembrei também de uma frase ocasional de Pablo Neruda, num domingo em que fui visitá-lo em sua casa de Isla Negra, no Chile. "Que valientes son las chilenas!" dissera ele, apontando uma mulher de maiô que entrava no mar ali em frente, na manhã nublada; e explicara que estivera andando pela praia e apenas molhara os pés na espuma: a água estava gelada, de cortar.

"Valente menina!" Lá embaixo, na rua, era tocante seu pequeno vulto, reduzido pela projeção vertical. Iria com os olhos úmidos ou sentiria apenas a alma vazia? "Valente menina!" Como a chilena que enfrentava o mar, em Isla Negra, ela também enfrentava sua solidão. E eu ficava com a minha, parado, burro, triste, vendo-a partir por minha culpa.

Deitei-me na rede, sentindo dor de cabeça e um certo desgosto por mim mesmo. Eu poderia ser pai dessa moça — e me pergunto o que sentiria, como pai, se soubesse de uma aventura sua, como essa, com um homem de minha idade. Tolice! Os pais nunca sabem nada, e quando sabem não compreendem; estão perto e longe demais para entender. Ele, esse pai de quem ela falava tanto, não acreditaria se a visse entrar pela primeira vez em minha casa, como entrou, com sua bolsa a tiracolo, o passo leve e o riso nervoso. "Como você pensava que eu fosse?" Lembro-me de que fiquei olhando, meio divertido, meio assustado, aquela mocetona loura e ágil que só falava me olhando nos olhos, e me fez as confissões mais íntimas e graves entremeadas de mentiras pueris — sempre me olhando nos olhos. Disse-me que a metade das coisas que me contara pelo telefone era pura invenção — e logo inventou outras. Senti que suas mentiras eram um jeito enviesado que ela tinha de se contar, um meio de dar um pouco de lógica às suas verdades confusas.

A ternura e o tremor de seu duro corpo juvenil, seu riso, a insolência alegre com que invadiu minha casa e minha vida, e suas previsíveis crises de pranto — tudo me perturbou um pouco, mas reagi. Terei sido grosseiro ou mesquinho, terei deixado sua pequena alma trêmula mais pobre e mais só?

Faço-me estas perguntas, e ao mesmo tempo me sinto ridículo em fazê-las. Essa moça tem a vida pela frente, e um dia se lembrará de nossa história como de uma anedota engraçada de sua própria vida, e talvez a conte a outro homem olhando-o nos olhos, passando a mão pelos seus cabelos, às vezes rindo — e talvez ele suspeite de que seja tudo mentira.


Rio, abril de 1967.

Texto extraído do livro “A Traição das Elegantes”, Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1967, pág. 209.

Fonte: Releituras

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Coração Vagabundo

Musa de ontem, musa de hoje. Na boca, Caetano Veloso. Gal Costa e Ana Cañas interpretam Coração Vagabundo.

Coração Vagabundo - Gal Costa


Coração Vagabundo - Ana Cañas


Coração vagabundo
Caetano Veloso

Meu coração não se cansa
De ter esperança
De um dia ser tudo o que quer

Meu coração de criança
Não é só a lembrança
De um vulto feliz de mulher
Que passou por meu sonho sem dizer adeus
E fez dos olhos meus um chorar mais sem fim

Meu coração vagabundo
Quer guardar o mundo em mim

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Conto de Clarice Lispector

Começos de Uma Fortuna

Clarice Lispector


Era uma daquelas manhãs que parecem suspensas no ar. E que mais se assemelhavam à idéia que fazemos do tempo.

A varanda estava aberta mas a frescura se congelara fora e nada entrava do jardim, como se qualquer transbordamento fosse uma quebra de harmonia. Só algumas moscas brilhantes haviam penetrado na sala de jantar e sobrevoavam o açucareiro. A essa hora, Tijuca não havia despertado de todo. "Se eu tivesse dinheiro..." pensava Artur, e um desejo de entesourar, de possuir com tranqüilidade, dava a seu rosto um ar desprendido e contemplativo.

— Não sou um jogador.

— Deixe de tolices, respondeu a mãe. Não recomece com histórias de dinheiro.

Na realidade ele não tinha vontade de iniciar nenhuma conversa premente que terminasse em soluções. Um pouco da mortificação do jantar da véspera sobre mesadas, com o pai misturando autoridade e compreensão e a mãe misturando compreensão e princípios básicos — um pouco da mortificação da véspera pedia, no entanto, prosseguimento. Só que era inútil procurar em si a urgência de ontem. Cada noite o sono parecia responder a todas as suas necessidades. E de manhã, ao contrário dos adultos que acordam escuros e barbados, ele despertava cada vez mais imberbe. Despenteado, mas diferente da desordem do pai, a quem parecia terem acontecido coisas durante a noite.

Também sua mãe saía do quarto um pouco desfeita e ainda sonhadora, como se a amargura do sono tivesse lhe dado satisfação. Até tomarem café todos estavam irritados ou pensativos, inclusive a empregada. Não era esse o momento de pedir coisas. Mas para ele era uma necessidade pacífica a de estabelecer domínios de manhã: cada vez que acordava era como se precisasse recuperar os dias anteriores. Tanto o sono cortava suas amarras, todas as noites.

— Não sou um jogador nem um gastador.

— Artur, disse a mãe irritadíssima, já me bastam as minhas preocupações!

— Que preocupações? perguntou ele com interesse.

A mãe olhou-o seca como a um estranho. No entanto ele era muito mais parente que seu pai, que, por assim dizer, entrara na família. Apertou os lábios.

— Todo o mundo tem preocupações, meu filho, corrigiu-se ela entrando então em nova modalidade de relações, entre maternal e educadora.

E daí em diante sua mãe assumira o dia. Dissipara-se a espécie de individualidade com que acordava e Artur já podia contar com ela. Desde sempre, ou aceitavam-no ou reduziam-no a ser ele mesmo. Em pequeno brincavam com ele, jogavam-no para o ar, enchiam-no de beijos - e de repente ficavam "individuais" — largavam-no, diziam gentilmente mas já intangíveis: "agora acabou", e ele ficava todo vibrante de carícias, com tantas gargalhadas ainda por dar. Tornava-se implicante, mexia num e noutro pé, cheio de uma cólera que, no entanto, se transformaria no mesmo instante em delícia, em pura delícia, se eles apenas quisessem.

— Coma, Artur, concluiu a mãe e de novo ele já podia contar com ela. Assim imediatamente tornou-se menor e muito mais malcriado:

— Eu também tenho as minhas preocupações mas ninguém liga. Quando digo que preciso de dinheiro parece que estou pedindo para jogar ou para beber.

— Desde quando é que o senhor admite que podia ser para jogar ou para beber? disse o pai entrando na sala e encaminhando-se para a cabeceira da mesa. Ora essa! que pretensão!

Ele não contara com a chegada do pai. Desnorteado, porém habituado, começou:

— Mas papai! sua voz desafinou numa revolta que não chegava a ser indignada. Como contrapeso, a mãe já estava dominada, mexendo tranqüilamente o café com leite, indiferente à conversa que parecia não passar de mais algumas moscas. Afastava-as do açucareiro com mão mole.

— Vá saindo que está na sua hora, cortou o pai. Artur virou-se para sua mãe. Mas esta passava manteiga no pão, absorta e prazerosa. Fugira de novo. A tudo diria sim, sem dar nenhuma importância.

Fechando a porta, ele de novo tinha a impressão de que a cada momento entregavam-no à vida. Assim é que a rua parecia recebê-lo. "Quando eu tiver minha mulher e meus filhos tocarei a campainha daqui e farei visitas e tudo será diferente", pensou.

A vida fora de casa era completamente outra. Além da diferença de luz — como se somente saindo ele visse que tempo realmente fazia e que disposições haviam tomado as circunstâncias durante a noite — além da diferença de luz, havia a diferença do modo de ser. Quando era pequeno, a mãe dizia: "fora de casa ele é uma doçura, em casa um demônio". Mesmo agora, atravessando o pequeno portão, ele se tornara visivelmente mais moço e ao mesmo tempo menos criança, mais sensível e sobretudo sem assunto. Mas com um interesse dócil. Não era uma pessoa que procurasse conversas, mas se alguém lhe perguntava como agora: "menino, de que lado fica a igreja?", ele se animava com suavidade, inclinava o longo pescoço, pois todos eram mais baixos que ele; e informava atraído, como se nisso houvesse uma troca de cordialidades e um campo aberto à curiosidade. Ficou atento olhando a senhora dobrar a esquina em caminho da igreja, pacientemente responsável pelo seu itinerário.

— Mas dinheiro é feito para gastar e você sabe com quê, disse-lhe Carlinhos intenso.

— Quero para comprar coisas, respondeu um pouco vago.

— Uma bicicletinha? riu Carlinhos ofensivo, corado na intriga.

Artur riu desagradado, sem prazer.

Sentado na carteira, esperou que o professor se erguesse. O pigarro deste, prefaciando o começo da aula, foi o sinal habitual para os alunos se sentarem mais para trás, abrirem os olhos com atenção e não pensarem em nada. "Em nada", foi a resposta perturbada de Artur ao professor que o interpelava irritado. "Em nada" era vagamente em conversas anteriores, em decisões pouco definitivas sobre um cinema à tarde, em — em dinheiro. Ele precisava de dinheiro. Mas durante a aula, obrigado a estar imóvel e sem nenhuma responsabilidade, qualquer desejo tinha como base o repouso.

— Você então não viu logo que Glorinha estava querendo ser convidada pro cinema? disse Carlinhos, e ambos olharam com curiosidade a menina que se afastava segurando a pasta. Pensativo, Artur continuou a andar ao lado do amigo,olhando as pedras do chão.

— Se você não em dinheiro para duas entradas, eu empresto, você paga depois.

Pelo visto, do momento em que tivesse dinheiro seria obrigado a empregá-lo em mil coisas.

— Mas depois eu tenho que devolver a você e já estou devendo ao irmão de Antônio, respondeu evasivo.

— E então? que é que tem! explicou o outro, prático e veemente.

"E então", pensou com uma pequena cólera, "e então, pelo visto, logo que alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicá-lo, explicando como se perde dinheiro."

— Pelo visto, disse desviando do amigo a raiva, pelo visto basta você ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima.

Os dois riram. Depois disso ele ficou mais alegre, mais confiante. Sobretudo menos oprimido pelas circunstâncias.

Mas depois já era meio-dia e qualquer desejo se tornava mais árido e mais duro de suportar. Durante todo o almoço ele pensou com rispidez em fazer ou não fazer dívidas e sentia-se um homem aniquilado.

— Ou ele estuda demais ou não come bastante de manhã, disse a mãe. O fato é que acorda bem disposto mas aparece para o almoço com essa cara pálida. Fica logo com as feições duras, é o primeiro sinal.

— Não é nada, é o desgaste natural do dia, disse o pai bem humorado.

Olhando-se no espelho do corredor antes de sair, realmente era a cara de um desses rapazes que trabalham, cansados e moços. Sorriu sem mexer os lábios, satisfeito no fundo dos olhos. Mas à porta do cinema não pôde deixar de pedir emprestado a Carlinhos, porque lá estava Glorinha com uma amiga.

— Vocês preferem sentar na frente ou no meio? perguntava Glorinha.

Diante disso, Carlinhos pagou a entrada da amiga e Artur recebeu disfarçado o dinheiro da entrada de Glorinha.

— Pelo visto, o cinema está estragado, disse de passagem para Carlinhos. Arrependeu-se logo depois de ter falado, pois o colega mal ouvira, ocupado com a menina. Não era necessário diminuir-se aos olhos do outro, para quem uma sessão de cinema só tinha a ganhar com uma garota.

Na realidade o cinema só esteve estragado no começo. Logo depois ele relaxou o corpo, esqueceu-se da presença ao lado e passou a ver o filme. Somente perto do meio teve consciência de Glorinha e num sobressalto olhou-a disfarçado. Com um pouco de surpresa constatou que ela não era propriamente a exploradora que ele supusera: lá estava Glorinha inclinada para frente, a boca aberta pela atenção. Aliviado, recostou-se de novo na poltrona.

Mais tarde, porém, indagou-se se tinha ou não sido explorado. E sua angústia foi tão intensa que ele parou diante da vitrina com uma cara de horror. O coração batia como um punho. Além do rosto espantado, solto no vidro da vitrina, havia panelas e utensílios de cozinha que ele olhou com certa familiaridade. "Pelo visto, fui", concluiu e não conseguia sobrepor sua cólera ao perfil sem culpa de Glorinha. Aos poucos a própria inocência da menina tornou-se a sua culpa maior: "então ela explorava, explorava, e depois ficava toda satisfeita vendo o filme?". Seus olhos se encheram de lágrimas. "Ingrata", pensou ele escolhendo mal uma palavra de acusação. Como a palavra era um símbolo de queixa mais do que de raiva, ele se confundiu um pouco e sua raiva acalmou-se. Parecia-lhe agora, de fora para dentro e sem nenhuma vontade, que ela deveria ter pago daquele modo a entrada do cinema.

Mas diante dos livros e cadernos fechados, seu rosto desanuviava-se.

Deixou de ouvir as portas que batiam, o piano da vizinha, a voz da mãe no telefone. Havia um grande silêncio no seu quarto, como num cofre. E o fim da tarde parecia com uma manhã. Estava longe, longe, como um gigante que pudesse estar fora mantendo no aposento apenas os dedos absortos que viravam e reviravam um lápis. Havia instantes em que respirava pesado como um velho. A maior parte do tempo, porém, seu rosto mal aflorava o ar do quarto.

— Já estudei! gritou para a mãe que interpelava sobre o barulho da água. Lavando cuidadosamente os pés na banheira, ele pensou que a amiga de Glorinha era melhor que Glorinha. Nem tinha procurado reparar se Carlinhos "aproveitara" ou não da outra. A essa idéia, saiu muito depressa da banheira e parou diante do espelho da pia. Até que o ladrilho esfriou seus pés molhados.

Não! não queria explicar-se com Carlinhos e ninguém lhe diria como usar o dinheiro que teria, e Carlinhos podia pensar que era com bicicletas, mas se fosse o que é que tem? e se nunca, mas nunca, quisesse gastar o seu dinheiro? e cada vez ficasse mais rico?... que é que há, está querendo briga? você pensa que...

— ... pode ser que você esteja muito ocupado com os seus pensamentos, disse a mãe interrompendo-o, mas ao menos coma o seu jantar e de vez em quando diga uma palavra.

Então ele, em súbita volta à casa paterna:

— Ora a senhora diz que na mesa não se fala, ora quer que eu fale, ora diz que não se fala de boca cheia, ora...

— Olhe o modo como você fala com sua mãe, disse o pai sem severidade.

— Papai, chamou Artur docilmente, com as sobrancelhas franzidas, papai, como é promissórias?
— Pelo visto, disse o pai com prazer —, pelo visto o ginásio não serve para nada.

— Coma mais batata, Artur, tentou a mãe inutilmente arrastar os dois homens para si.

— Promissórias, dizia o pai afastando o prato, é assim: digamos que você tenha uma dívida.


Texto extraído do livro "Laços de família", Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998.

Fonte: Releituras

terça-feira, 10 de junho de 2008

Trecho da entrevista de Ney Matogrosso para CarosAmigos

A revista Caros Amigos, número 135, de junho de 2008, traz na capa Ney Matogrosso. A versão online da publicação tem um pedaço do bate-papo com o intérprete. Confira abaixo alguns trechos dessa entrevista.

Trecho 1

Thiago Domenici Você tem ascendência indígena?
Tenho. Conheci meu bisavô índio de 104 anos, pai da minha avó, ele morava na fazenda do meu avô. Minha bisavó não conheci, soube que foi laçada pelo meu bisavô.

Thiago Domenici E o período da infância em Mato Grosso?
Não foi lá, não. Teve uma fase de dois ou três anos na Bahia, depois Recife, numa casa da rua do Jenipapeiro, que tinha um cheiro que nunca mais esqueci, e depois Rio de Janeiro. Saí do Rio com 13 anos e fui pro Mato Grosso.

Thiago Domenici A história de viver muito no mato foi lá?
Foi. É uma coisa minha, me embrenhava com meus 11 cachorros. Chegava do colégio e entrava no mato. Nunca tive medo. Até hoje, as pessoas acham que a natureza é uma ameaça. Sair aqui, no Leblon, acho que é mais ameaçador do que andar no meio do mato sozinho. Comecei a observar que existia um fluxo, uma coisa que não se repetia, ia acontecendo, via entrar a primavera, as flores abrir, os passarinhos procriar, aí comecei a entender.

Thiago Domenici Sempre gostou de animais?
Sempre. Criei lagarto, coruja, cobra, esses animais que não são gato e cachorro.

Trecho 2

Sérgio Kalili E você acha que chegou a lutar para que outras pessoas pudessem ter mais liberdade no amor?
Quem é a pessoa mais escancarada que você conhece no Brasil em termos de sexualidade? O movimento gay quer o seguinte: eles me cobram porque não me resigno a ser um estandarte gay, e não vou me aceitar jamais ser estandarte de qualquer coisa. Muitas coisas me interessam. Quero ter liberdade de me expressar a respeito de todas as coisas que me incomodarem ou interessarem. Durante um tempo o movimento gay me cobrou isso. Houve um acontecimento aqui no Rio, queriam que eu presidisse, falei “não vou presidir nada, vocês é que estão nessa”. Entendi que era uma coisa organizada e não estou contra, mas houve uma aceitação dessas manifestações e isso só representava um público com certo poder econômico, aí deixou de me interessar. Revistas gay, cruzeiros gay, Deus me livre, o que vou fazer com isso, cruzeiro gay? Gosto da mistura, de todo o mundo junto, vou em boate gay, mas boate que não é restrita, em boate restrita não entro, vou em boate que tem todo o mundo, homem, mulher, lésbica, gay, gosto de todas as possibilidades.

Roberto Manera Mas no caso brasileiro, os movimentos também despertam a consciência para verdadeiras atrocidades, não?
São assassinados. Entendo que as pessoas precisam se unir para se sentirem fortes. Agora, não podem querer determinar que eu seja o que leve a bandeira. Sérgio Kalili Existem vários tipos de movimentos. Por exemplo, a parada gay. Nunca fui à parada gay. Não me interessair numa parada para ser aquilo. Eu sou. Vou falar uma coisa que vai parecer uma enorme incoerência. Sou mais sério, embora minha vida artística seja uma... Sou uma pessoa muito séria nos meus princípios e os coloco diante da vida, tenho princípios éticos. Então, aquilo ali não me interessa. Acho interessante juntar três milhões de pessoas, é significativo. Agora, eu assisto.


“O Brasil tem que passar por reformas que ninguém quer. Querem gastar, ter cartões.
Ué, gente, não dá para ter ilusões.”


Trecho 3

Cinthia Pascueto E como você definiria sua relação com o palco?
É a mais satisfatória possível. A coisa mais estimulante é meu relacionamento com o público. Vivo para isso. E é tão satisfatório que não preciso disso fora de lá.

Raquel Junia Você quis criar esse imaginário nas pessoas, de ser extravagante?
Não! Eu sou extravagante! Quando subo no palco, não tenho controle sobre aquela manifestação. Por mais contido que esteja, sou extravagante para o médio brasileiro, o médio humano. Não tem como, é uma coisa que vem. Também não fico preocupado em conter nada. O engraçado é que quanto mais manifesto minha loucura, mais o público quer loucura, isso é que é maluco: quanto mais eu extravaso, mais loucura esperam de mim.

Thiago Domenici Por quê?
Talvez porque não tenham coragem de se manifestar, mas não se contentem comigo, sempre falo: “Não se satisfaçam com a minha manifestação, sejam, existam, sejam como vocês são, não se escondam.”

Fonte: CarosAmigos


Disritmia - Ney Matogrosso e Pedro Luís e a Parede
Disritmia - Ney e Pedro Luís

Do disco Vagabundo (2004), de Ney Matogrosso e Pedro Luís e a Parede. Disritmia é uma composição de Martinho Da Vila.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Poesias de Mario Quintana

Diversos poemas do poetinha Mario Quintana.

O morto

Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!


O Mapa

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...


Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...


Das utopias

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!


Do amoroso esquecimento

Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?


A oferenda

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio.


Dos mundos

Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.


Evolução

O que me impressiona, à vista de um macaco, não é que ele tenha sido nosso passado: é este pressentimento de que ele venha a ser nosso futuro.


Da observação

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...


A canção da vida

A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)


Os degraus

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...


Ah! Os relógios

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...


Exame de cosciência

Se eu amo o meu semelhante? Sim. Mas onde encontrar o meu semelhante?


Confessional

Eu fui um menino por trás de uma vidraça. - um menino de aquário.
Vi o mundo passar como numa tela cinematográfica, mas que repetia sempre as mesmas cenas, as mesmas personagens. Tudo tão chato que o desenrolar da rua acaba me parecendo apenas em preto e branco, como nos filmes daquele tempo. (...)


Da discrição

Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...


O pior

O pior dos problemas da gente é que ninguém tem nada com isso.


Libertação

A morte é a libertação total:
A morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapato


Poeminha sentimental

O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.


Eu escrevi um poema triste

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!


A vida

Mas se a vida é tão curta como dizes porque que é que me estás lendo até agora?



Fonte: Site Comemorativo Centenário Mario Quintana


Confira também Mario Quintana declamando Mario Quintana

Sem Fantasia

Sem Fantasia - Maria Bethânia e Chico Buarque

Música gravada ao vivo em 1975, no Canecão, Rio de Janeiro.


Sem fantasia
Chico Buarque/1967
Para a peça Roda Viva de Chico Buarque

Vem, meu menino vadio
Vem, sem mentir pra você
Vem, mas vem sem fantasia
Que da noite pro dia
Você não vai crescer
Vem, por favor não evites
Meu amor, meus convites
Minha dor, meus apelos
Vou te envolver nos cabelos
Vem perder-te em meus braços
Pelo amor de Deus
Vem que eu te quero fraco
Vem que eu te quero tolo
Vem que eu te quero todo meu

Ah, eu quero te dizer
Que o instante de te ver
Custou tanto penar
Não vou me arrepender
Só vim te convencer
Que eu vim pra não morrer
De tanto te esperar
Eu quero te contar
Das chuvas que apanhei
Das noites que varei
No escuro a te buscar
Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus
E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus

terça-feira, 3 de junho de 2008

Yo no Buscaba a Nadie y Te Vi

Un Vestido y un Amor - Fito Paez



Un Vestido y un Amor - Caetano Veloso

Caetano Veloso interpreta Un Vestido y un Amor, popularmente conhecida como Te Vi, canção do argentino Fito Paez, no disco Fina Estampa. A música aparece pela primeira vez no álbum El amor después del amor, de Fito Paez. Posteriormente também foi gravada pelo argentino nos discos Euforia, Mi vida con ellas - Volumen 1 e no Moda y pueblo.

Un Vestido y un Amor (Te Vi)
Fito Paez


Te vi
juntabas margaritas del mantel
ya sé que te traté bastante mal
no sé si eras un ángel o un rubí
o simplemente te vi

Te vi
saliste entre la gente a saludar
los astros se rieron otra vez
la llave de Mandala se quebró
o simplemente te ví.

Todo lo que diga está de más
las luces siempre encienden en el alma
y cuando me pierdo en la ciudad
vos ya sabés comprender,
es sólo un rato, no más
tendría que llorar
o salir a matar
te vi, te vi, te vi
yo no buscaba a nadie y te vi.

Te vi
fumabas unos chinos en Madrid
hay cosas que te ayudan a vivir
no hacías otra cosa que escribir
y yo simplemente te vi

Me fui
me voy de vez en cuando a algún lugar
ya sé no te hace gracia este país
tenías un vestido y un amor
y yo simplemente te ví.

Eduardo Galeano lança novo Livro

A dominação transforma o mundo em um manicômio

Em seu novo livro, "Espelhos: uma história quase universal", o escritor conta 600 histórias curtas, "que recolhem uma experiência de toda a vida, muitas leituras e muitas perguntas". Relatos que falam dos esquecidos pela história oficial, uma história, diz Galeano que sacrificou e mutilou o arco-íris terrestre. Relatos de um mundo que está enlouquecendo.

por Armando G. Tejeda - La Jornada
Eduardo Galeano
MADRI - Aos 63 anos, Eduardo Galeano dedica-se diariamente a tentar resolver o maior desafio da linguagem, sabendo que isso é “impossível”: utilizar em seus textos apenas palavras que sejam melhores do que o silêncio.

Foi com esse desejo de depuração do idioma que o escritor uruguaio escreveu seu livro mais recente, Espelhos: uma história quase universal (Editora Siglo XXI), no qual, por meio de 600 histórias breves, oferece um panorama inquietante sobre o devir do mundo e da história da humanidade.

Em entrevista a La Jornada, Galeano levanta a voz frente ao “sistema mundial de dominação que está levando todos nós para o matadouro ou para o hospício”. E critica a obstinação do ser humano em “mutilar” o arco-íris terrestre com “o racismo, o machismo, o elitismo e o militarismo”.

Todos somos africanos emigrados


La Jornada: Dá a impressão que com este livro você se esvaziou, que colocou nele o conhecimento, as leituras e os aprendizados acumulados ao longo de sua vida.

Galeano: Acho que sim. A idéia era reunir em um único livro estas 600 histórias ou relatos que viajam pelo mundo e pelo tempo, sem limites, sem fronteiras. E eles vão e vêm pelo mapa do mundo e do tempo. E é verdade que recolhem uma experiência de toda a vida, muitas leituras e muitas perguntas.

Sobretudo recolhe as perguntas que tenho me formulando ao longo da minha própria vida. Desde que eu era pequenininho e ia para a escola e a professora me dizia que o basco Núñez de Balboa foi o primeiro homem que viu os dois oceanos, do alto de um monte do Panamá. E eu levantava a mão e dizia: ‘Senhorita, senhorita, então os que viviam aí eram cegos’. E ela me expulsava da aula por ser atrevido.

E as perguntas que depois fui me fazendo que foram ficando e esperando respostas que fossem, por sua vez, novas perguntas. Por exemplo, esta outra, que abre o livro, quando pergunto se Adão e Eva eram negros, porque se a viagem humana começou na África, de lá partiram nossos avós para a conquista do planeta e foi o Sol que repartiu todas as cores, porque somos todos africanos e somos todos emigrados. É bom lembrar agora que todos somos africanos emigrados, diante de tanta demonização que se faz da emigração, como se fosse um crime.

Mas sim, também é um livro de perguntas incômodas. Eu sempre digo que uma boa resposta é uma fonte de novas perguntas, ou seja que o livro está escrito por um 'perguntão', por um curioso que quer despertar a curiosidade de quem ler.

La Jornada: Essas 600 histórias, contadas assim, de maneira aparentemente desconexa, é porque você também pretendia chamar a atenção para a anarquia que há no mundo e na história da própria humanidade?

Galeano: Sim, mas que estão atadas por fios invisíveis, que fazem com que essa aparente desconexão não seja mais do que uma expressão da diversidade da vida humana, da história e da presença dominante, nessa diversidade, dos esquecidos pela história oficial. Que é uma história que sacrificou, que mutilou o arco-íris terrestre.

Sempre digo que o arco-íris terrestre tem mais cores do que o celeste. É muito mais belo, mais fulgurante, mas tem sido mutilado pelo racismo, pelo machismo, o elitismo, o militarismo… Então, não somos capazes de ver a nós mesmos em toda a nossa plenitude assombrosa, em toda a nossa prodigiosa capacidade de beleza.

O livro rende homenagem à diversidade humana e à diversidade da natureza, da qual também fazemos parte.

Então, na aparência pode parecer desconexo, mas quando a gente entra para lê-lo está armado de tal maneira que há muitíssimo trabalho por trás. É como um rio que às vezes corre por baixo da terra, outras por cima, mas que nunca deixa de correr. É um único fluxo de um rio, de muitos rios.

Discípulo de Juan Rulfo

La Jornada: Como uma sinfonia.

Galeano: A literatura e a música são muito parecidas. Por isso é bom ler em voz alta. Quando a gente escreve, quando termina um texto, a gente lê em voz alta, porque essa leitura nos dá a música das palavras. E a música manda. Tem que haver uma continuidade da música.

La Jornada: Depois de tantos livros e, principalmente, aprendizados, você acha que chegou ao máximo de depuração da sua própria linguagem literária?

Galeano: Acho que sim. A linguagem que eu utilizo, não quero que apareça, mas cada um destes relatos teve 15 ou 20 tentativas. Como dizia um escritor chileno quando reeditava seus contos: edição corrigida e diminuída. Eu também vou diminuindo; é um trabalho de tirar a gordura, para que só fique a carne e o osso daquilo que se quer contar. É um trabalho de despir e purificar a linguagem.

La Jornada: Uma linguagem pouco freqüente nas letras latino-americanas, que às vezes tendem a exagerar na verborréia, você não acha?

Galeano: Pode ser, mas eu não acho que a literatura latino-americana deva ser isto ou aquilo, porque o melhor desta nossa região é que ela é tão diversa. Ou seja, que contém todas as cores, os cheiros, os sabores do mundo.

Se o melhor que o mundo tem está na quantidade de mundos que o mundo contém, poucas regiões do mundo contêm tantos mundos como a nossa. E, portanto, há uma diversidade de linguagens e essa é a nossa riqueza. Eu escrevo do meu jeito, o que sinto e como sai, mas há muitas outras formas de escrever. Toda linguagem é legítima, na medida em que as palavras nasçam da necessidade de dizer.

La Jornada: Mas há influências, gerações literárias.

Galeano: Sim, eu escrevo do meu jeito, que por sua vez é um jeito muito influenciado pelo meu mestre Juan Rulfo. Em uma entrevista, já faz algum tempo, pediram que eu escolhesse os escritores mais importantes na minha formação literária. Eu respondi: Juan Rulfo, Juan Rulfo e Juan Rulfo.

Histórias sentipensantes

La Jornada: Em sua busca por novas linguagens, suponho que também está à par da evolução do nosso idioma na sociedade atual.

Galeano: Sim, é um aprendizado cotidiano. Recebo muitas vozes da rua, que são as que mais me alimentam. E é um trabalho de recriação das vozes que a gente recebe. Quando Rulfo me dizia que se escreve mais com a borracha do que com o lápis, isso é verdade, mas não toda. Porque também é preciso ver quais são as palavras.

Outro de meus mestres, Juan Carlos Onetti, com quem compartilhei poucas palavras e muitos silêncios, sempre dizia que havia um provérbio chinês que dizia que as únicas palavras que merecem existir são as palavras melhores que o silêncio.

É uma idéia muito linda, porque o silêncio é uma linguagem muito funda e profunda; então, é muito difícil que as palavras sejam melhores que o silêncio. Na verdade, isso é impossível, mas a gente tem que tentar esses impossíveis. É o maior desafio da linguagem.

La Jornada: Justamente. Seu livro "Espelhos" tem muitos silêncios e muita calma em sua leitura.

Galeano: O livro pede lentidão, como o amor. E silêncio, para que as palavras tenham sonoridade realmente.

La Jornada: Você também assume a literatura como esse saltimbanco que vai de vilarejo em vilarejo contando histórias, declamando, lendo em voz alta essas histórias?

Galeano: Sim, mas se são só conhecimentos, ou seja, mensagens da razão, terão curto percurso. Precisam ser histórias sentipensantes, para que cheguem a quem as lê; elas têm que vir da razão e do coração. Têm que unir o que foi desvinculado pela cultura do desvínculo, que é a cultura dominante. Que, entre outras coisas, desvinculou a razão da emoção, assim como desvinculou o passado do presente.

Por isso, no livro misturo muitíssimo o passado e o presente; o extermínio do Iraque pelas mãos de um senhor que acredita que a escritura foi inventada no Texas e, ao mesmo tempo, o nascimento do primeiro poema de amor da história humana, que é um poema escrito no Iraque, quando ainda não tinha esse nome, em língua suméria e em tabuletas de barro.

La Jornada: Uma dessas linhas invisíveis que dão sentido às 600 histórias de "Espelhos", é a vocação do homem pela guerra, por essa tendência de destruir a si mesmo?

Galeano: Acho que aqueles que acreditaram que a contradição é o motor da vida humana não erraram. Somos uma contradição incessante. E isso ajuda você a sobreviver em um mundo difícil; a certeza de que não existe horror que não implique alguma maravilha. A certeza de que somos metade lixo e metade beleza. Então, o livro alimenta-se dessa contradição incessantemente. Não só do horror, mas também do amor.

La Jornada: Com especial foco nas guerras, você não acha?

Galeano: Sim, porque a guerra é parte do horror. Não penso que a guerra seja um destino humano, mas é verdade que continua sendo uma realidade do nosso tempo. A cada minuto morrem de fome ou de doença curável 10 crianças no mundo. A cada minuto! E a cada minuto os Estados Unidos gastam meio milhão de dólares matando inocentes no Iraque!

La Jornada: Também o machismo é uma constante da história da humanidade...

Galeano: Sim, por isso menciono o paradoxo das vidas de Santa Teresa e de Joana Inés de la Cruz. As duas perseguidas pela Inquisição, pelos setores mais dogmáticos e ferozes da Igreja católica e suas verdades únicas. Suspeitas por serem mulheres inteligentes, criativas, por terem tanto ou mais talento que os homens. E, portanto, culpadas do imperdoável delito de serem elas mesmas.

O caso de Santa Teresa é o mais trágico. Penso que um braço de Santa Teresa acompanha Francisco Franco em sua longuíssima agonia, porque foi esquartejada e mandaram os pedaços para todas partes; e o braço incorruptível – como é chamado –, na mesinha de cabeceira de Franco. É uma piada de mau gosto da história. Ela, que tinha sido vítima dos equivalentes de Franco do seu tempo.

La Jornada: Como Eduardo Galeano vê o que ocorreu recentemente na África do Sul, que desconcertou o mundo: a explosão xenófoba no país que sofreu durante tantas décadas com o apartheid?

Galeano: Acho que há um sistema mundial de dominação que está transformando o mundo em um matadouro, e também em um manicômio. Está enlouquecendo a todos nós e a prova de que isto está se transformando em uma loucura total é que esse sistema de dominação mundial conseguiu que os negros se matem entre si, como está ocorrendo na África do Sul, ou que os iraquianos se matem entre si, como ocorre no Iraque, ou que os palestinos se matem entre si. Enlouquecem-nos. Já não sabemos quem é quem, nem por quê, nem para quê.

Agora o mundo entrou em um período de crise muito perigoso e isto vai gerar explosões de racismo por todas partes. O imigrante, o que vem de fora, principalmente se for de pele escura, será o bode expiatório do desemprego, da desocupação.

La Jornada: Dá a impressão que o mundo não pensa nem guarda silêncio para analisar isto desse jeito, como podemos fazer com seu livro, por exemplo…

Galeano: Sim, porque vivemos em uma vertigem incessante. Somos presos. Instrumentos dos nossos instrumentos. Máquinas das nossas máquinas. E a vertigem da vida urbana impede que disponhamos do tempo necessário para recuperar a memória perdida e para lembrar das coisas mais óbvias: que ninguém pediu passaporte para Colombo, que ninguém exigiu contrato de trabalho para Hernán Cortés, que ninguém exigiu certificado de boa conduta para Francisco Pizarro —que, por outro lado, ele não teria obtido, porque era um cara com péssimos antecedentes.

Como dizia no começo, somos todos africanos emigrados. São coisas elementares que esquecemos completamente e que devemos recuperar para fazer perguntas como as seguintes: este mundo é um destino? Será que ele não está grávido de outro?

La Jornada: No livro você também reflete sobre a conquista, depois de cinco séculos. Como você vê a situação dos povos indígenas?

Galeano: Acho admirável a capacidade que tiveram os indígenas das Américas de perpetuar uma memória que foi queimada, castigada, enforcada, desprezada durante cinco séculos. E a humanidade inteira tem que estar muito agradecida a eles, porque graças a essa obstinada memória sabemos que a terra pode ser sagrada, que somos parte da natureza, que a natureza não termina em nós. Que há possibilidades de organizar a vida coletiva, formas comunitárias que não estão baseadas no dinheiro. Que competir com o próximo não é inevitável e que o próximo pode ser algo muito mais do que um competidor.

Todas estas coisas que foram herdadas das culturas originais e que tiveram uma persistência admirável, porque sobreviveram a tudo, e que agora se manifestam. Por exemplo, a nova Constituição do Equador, que tem nome indígena, pela primeira vez na história da humanidade consagra a natureza como sujeito de direito. Nunca ninguém tinha pensado nisso.

No Equador, apesar de ser um país muito infectado pelo racismo, como o México e todos na América Latina, conseguiu perpetuar-se uma memória subterrânea que torna possível esta recuperação de verdades pronunciadas por vozes do passado mais remoto, mas que falam para o futuro.

Troca de senhor

La Jornada: E o fato de que agora estejamos em plena “comemoração” do bicentenário das independências, o que você acha disso?

Galeano: As independências foram, em geral, as certidões de nascimento das nações, mentira nestas que vivemos. Porque todas as constituições das nossas repúblicas independentes negaram os direitos para aqueles que derramaram seu sangue para conseguir essas independências. Foram emboscadas feitas contra os filhos mais pobres das Américas. Isso foi unânime e sempre foi assim.

Foram repúblicas nascidas para a negação de direitos, para a maldição e para o desprezo da maioria de seus habitantes, muitos dos quais passaram a ter uma vida pior da que tinham sob a dominação colonial. Ou, em todo caso, limitaram-se a trocar de senhores. Como dizia uma pichação anônima em uma parede de Quito, quando foi promulgada a independência do Equador: ‘Último dia do despotismo e primeiro da mesma coisa’.

Tradução: Naila Freitas/Verso Tradutores


Fonte: AgênciaCartaMaior