segunda-feira, 28 de julho de 2008

Mario Quintana declamando Mario Quintana

O ano de 2006 marcou o centenário do poeta gaúcho Mario Quintana. Para a comemoração secular de Quintana, há dois anos atrás foi lançado um saite especial homenageando o poeta. Lá é possível contemplar poesias, fotos, entrevistas, artigos, bibliografia, áudios, vídeos, entre outras coisas. As poesias recitadas pelo próprio Mario estão entre os itens mais interessantes da página. O Música&Poesia a partir de agora apresenta alguns desses poemas. Pra quem quiser conferir mais é só clicar aqui.

Ouça os poemas na voz de Mario Quintana no tocador abaixo



Estas poesias também podem ser baixadas (para salvar clique no botão direito do mouse e selecione Salvar Destino Como...)


  1. Noturno (Este Silêncio É Feito de Agonia)
  2. Cecília
  3. Cocktail Party
  4. Pedra Rolada
  5. Minha rua está cheia de pregões
  6. Preparativos para viagem
  7. O Poema II
  8. Seiscentos e sessenta e seis
  9. Canção do fundo do tempo
  10. Poesia Pura
  11. Cântico



Mario por ele mesmo

Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.

Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?

Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Verissimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.

(Texto escrito pelo poeta para a revista IstoÉ de 14/11/1984)


Fonte poesias e texto:
Centenário Mario Quintana

domingo, 27 de julho de 2008

Aonde está Você

Me Chama - Lobão

Um dos grandes sucessos de Lobão, e uma das músicas mais executadas nos anos 1980, Me Chama pertence ao disco Ronaldo Foi Pra Guerra, lançado em 1984. Nessa época Lobão tocava na banda "Lobão e os Ronaldos".


Me Chama
Lobão

Chove lá fora
E aqui...
Tá tanto frio
Me dá vontade de saber
Aonde está você
Me telefona
Me chama
Me chama
Me chama
Nem sempre se vê
Lágrima no escuro
Lágrima no escuro
Lágrima...
Tá tudo cinza sem você
Tá tão vazio
E a noite fica sem porquê
Aonde está você
Me telefona
Me chama
Me chama
Me chama
Nem sempre se vê
Mágica no absurdo
Mágica no absurdo
Mágica...
Nem sempre se vê
Lágrima no escuro
Lágrima no escuro
Lágrima...

Jards Macalé em entrevista

Leia abaixo reprodução de uma entrevista bacana feita com Jards Macalé, por Jarmeson de Lima, para a revista eletrônica Coquetel Molotov.


Jards Macalé
por Jarmeson de Lima

Se tem uma figura na música brasileira digna de respeito e que até agora não obteve um valor devido, este é Jards Macalé. Suas músicas e composições alcançaram e ainda alcançam vôos maiores do que ele. Mas diferente de ser lembrado como “o autor de Vapor Barato” ou como protagonista da polêmica canção/performance “Gotham City” no IV Festival Internacional da Canção, Jards é um sambista inquieto. Mas não só sambista, claro. Ele poderia muito bem viver à sombra de seus velhos sucessos com shows quadrados e lineares. Mas ele mesmo, fugindo ao apelido jocoso de infância, é respeitado na música brasileira justamente por quebrar e fugir dessas regras.

Basta assistir a um show dele para entender isso. Virei fã imediato dele ao ver um desses shows. Incomum, particular e criativo de sobra. E com o projeto “Samba de Breque e outras Bossas”, realizado pelo Circuito Cultural Banco do Brasil, ele veio ao Recife, quando consegui falar com ele para realizar esta entrevista. Sendo assim, com vocês, o talento de Jards Macalé traduzido nesta entrevista, onde muito bem à vontade, ele relembra suas histórias e conta sua vida com muito bom humor.

"Quando eu escolhi fazer arte, e aprendi com os grandes mestres o que pra eles é arte e criação, eu não pensei mais em mercado. Eu apresento meu trabalho é para as pessoas"

Pra começar, queria saber a sua opinião sobre uma coisa. Geralmente os artistas no Brasil são enquadrados na categoria MPB: Música Popular Brasileira. Você como sendo um músico brasileiro, se considera popular?
Eu sou brasileiro e faço música brasileira, independentemente de cantar em inglês, francês, iraniano ou japonês. Já popular... isso é mais relativo. Existe o popularesco, existe forçação de barra pra ter popularidade e existe o popular. Pra mim, popular mesmo é Dorival Caymmi ou uma música como essa aqui (começa a cantarolar): “Não há, oh gente, oh não! / Luar como esse do Sertão”. Popular é música do povo. Música que fica no inconsciente coletivo. Então se me perguntassem se sou popular, eu responderia como Zé Kéti (cantando): “Tenho muitos amigos / Eu sou popular / Tenho a madrugada / Como companheira”.

E o que você acha de ter começado sua carreira carregando um apelido jocoso de infância, como sendo o pior jogador do Botafogo?
Ah, mas ele não era o pior jogador do Botafogo. Isso é sacanagem com ele, o Macalé, do Botafogo. Ele não era um jogador genial, mas também não era um merda como resolveram espalhar por aí. É porque realmente eu nunca joguei futebol bem. Eu gosto de futebol, o Brasil inteiro gosta, mas não tenho talento pra ficar jogando. O pessoal se aproveitava disso e ficava gritando: “Passa a bola, Macalé! Passa a bola, Macalé!”. Mas acabavam sacaneando o jogador Macalé, não a mim! (risos) Ou talvez os dois.

Mas você aceitou bem esse apelido?
Eu não me importo mais, mas a minha mãe na época odiou. Ela ficava dizendo “Meu filho, você tem um nome tão bonito, Jards! E seus amigos ficam lhe chamando de Macalé...”. Aí o Guilherme Araújo, que era o responsável por ter dado os nomes artísticos de todo mundo naquela época - tipo: Gal, virou Gal Costa; Caetano, ficou sendo Caetano Veloso; Gil, ficou como Gilberto Gil – me disse “O Jards vai ser Jards Macalé!”. E ficou! Mas agora a minha mãe já aceita porque viu no jornal, aparece na televisão... Aí perguntam: “Você é a mãe do Macalé?” e ela “Sim, sou”. (risos)

É difícil enquadrar sua obra num só estilo. Você vive constantemente mudando, tua música tem nuances diferentes e a todo instante tem algo diferente na obra de Jards Macalé.
É porque a gente muda, as coisas mudam, a vida muda... As pessoas estão em constante mutação. Eu acho que arte é um processo criativo e evolutivo. Você vai colhendo coisas e informações ao longo da vida e você vai criando e fomentando seu próprio estilo. Então quem exerce a sua atividade e quem escolheu ter como ofício a arte, tem que ter em mente essa constante evolução. Isso não quer dizer que a gente abandone o passado, se fixe no presente e abandone o futuro. É tudo ao mesmo tempo. É autônomo.

Interessante dizer isso porque outros artistas eventualmente mudam seu próprio estilo por pressão das gravadoras ou do mercado. E você se mantém até intacto com relação a esse mercado...
Mas eu não falo de mercado. Eu não gosto de falar de mercado. Eu não sou mercantilista. Quando eu escolhi fazer arte, e aprendi com os grandes mestres o que pra eles é arte e criação, eu não pensei mais em mercado. Eu apresento meu trabalho é para as pessoas. E como vivo de arte, esse também é um ofício como jornalistas, produtores, sorveteiros... cada um cumpre o seu ofício. No meu caso, eu apresento meu trabalho tal qual falei antes, que tá sempre em mutação, e quem quiser que veja e que critique. Na minha vida fui colhendo um público também crescente. Os que têm 50 anos hoje, me viram quando tinham 17, 18 anos. Agora os filhos desse público é que vêm me ver. Até mesmo os netos. E alguns não deixaram nunca de ir.

Realmente, a sua música tem atravessado gerações. Ultimamente, a gente tem visto um público mais novo indo atrás e descobrindo sua obra agora.
Pois é. Agora com a Internet e a disponibilização de coisas na rede, com mp3, baixando isso e aquilo, a informação ficou mais veloz e tudo ficou mais visível pra todo mundo. Se tiver um menino de 14 ou 15 anos que não me conhece, ele pode ir lá na busca do Google, escrever “Jards Macalé”, apertar search e encontrar mais de 80 mil referências sobre mim. Nessa hora, a pessoa vai acabar descobrindo quem eu sou por ali, com várias biografias, músicas, diversos momentos... Então tá lá, a informação está no ar.

Inclusive só agora muita gente tá escutando e conseguindo ouvir aqueles teus primeiros discos que tinham saído de catálogo e nunca mais foram relançados.
Por sinal, aqueles primeiros discos da década de 70, são tão vigorosos agora quanto eram naquela época. Por exemplo, eu fui fazer na Virada Cultural, de São Paulo, um show no Theatro Municipal. Escolheram fazer nesta apresentação, o show do meu primeiro disco de 1973 - na verdade, gravado em 1972 e lançado um ano depois. Nesse disco tem eu na voz e violão, e como compositores e parceiros o Capinam, Waly Salomão, Duda, Torquato Neto, além de Lanny Gordin na guitarra e violão e Tuti Moreira na bateria. Então pediram pra eu fazer o show desse disco em São Paulo. Formei a banda e como muita gente daquela época não tava, fui chamando quem podia: convidei o Lanny e mais outros músicos e trabalhamos para fazer ao vivo os mesmos arranjos daquele disco. A banda tocou de tal forma, o som saiu de um jeito tão bom, que ficou uma banda tão forte quanto uma banda de rock barra pesada. E vendo e ouvindo aquilo ali, o público veio abaixo! Pra você ter idéia de como tava, tinha gente pendurada até no lustre! (risos) Então eu acho que de 1972 a 2007, cumpriu-se um período fantástico onde o som desse disco se revitalizou.

Vale lembrar essa renovação de músicos que tocaram e tocam hoje contigo: se naquela época tinha Bethânia, Lanny, Luís Melodia, hoje você trabalha com Kassin, Pedro Sá...
É que eu gosto de estar em boas companhias. Eu só ando em boas companhias. As más companhias, já deixei há muito tempo. E eu nem convivi muito com elas depois que percebi que eram más companhias. E quando falo de boas e más companhias, eu falo de bons e maus músicos e artistas e falo também de pessoas que estão começando como instrumentistas, mas que você já começa a sacar o valor. Neste momento eu vou gravar com a Adriana Calcanhoto com quem eu já tinha trabalhado quando a convidei para participar do disco “Real Grandeza”, que tinha composições minhas em parceria com Waly Salomão. Então esse é o tipo de coisa que faz você reconhecer um ao outro. Não é só uma troca de gentilezas. É uma admiração mútua. Você vai juntando essas pessoas e vai tendo um leque maravilhoso. E como músico eu posso caminhar em qualquer forma de música desde que essa música me atraia, essa forma me atraia e eu consiga colocar tudo do meu jeito.

Por isso que cada show de Jards Macalé é bem diferente um do outro, não é?! Noutro ano vi um show seu com as Orquídeas do Brasil em São Paulo. E dia desses, num formato quase voz e violão. Mas qual é o formato de show que você mais gosta?
Eu já toquei com orquestra, toco sozinho, toco com três ou quatro pessoas. Dependendo do que precise, eu arranjo um formato que viabilize o trabalho. Aí posso fazer um show sozinho, com um percussionista, com mais uns dois músicos ou um trio, um quarteto, ou até mesmo uma orquestra sinfônica se deixarem. No caso das Orquídeas, isso foi muito legal porque me remeteu a um trabalho muito bacana que fiz com Itamar Assumpção há muito tempo, em 1986 e 1987... Noutra vez, aqui em Recife, fiz um show no Teatro do Parque, com o Mombojó, em 2004. O pessoal lá do Projeto Seis e Meia perguntou ao Mombojó com qual artista eles gostariam de tocar e eles disseram: “Macalé!”. Me convidaram e eu vim pra tocar, mesmo sem saber quem era o Mombojó. Tinha chegado aos meus ouvidos que a banda era legal e eu vim, mesmo sem ter a menor idéia de como era a música deles. Eles tocaram primeiro, depois fui eu e no final fomos todos juntos. Aí nessa hora, aquele menino, Felipe me desafiou pra cantar com eles uma música do Mombojó. Aí pronto! Puxei um lance lá que não sabia qual era e comecei a improvisar e foi. Virou uma loucura. Mas eu gosto disso. O resultado ficou muito bom. Eu gosto dessa coisa do improviso. Eu gosto muito de jazz. E o choro também tem muita coisa de improviso. Até mesmo o samba de breque.

Com a ligação que você tem com o samba no Rio de Janeiro, você também costuma participar de algum bloco ou escola de samba por lá?
Há vinte anos atrás, nós, que moramos lá no Jardim Botânico, fundamos um bloco chamado Suvaco do Cristo. Mas por que Suvaco do Cristo? Porque o bairro fica exatamente embaixo do suvaco direito do Cristo Redentor, bem embaixo do braço direito dele. Esse bloco ganhou uma dimensão muito rápida... Começou com umas 200 pessoas, tipo bloco de rua e atualmente tá com umas 30 mil, quase maior do que uma escola de samba. E nessa proporção que o bloco tomou, ele meio que foi virando uma “instituição”. Isso alimentou a terem mais blocos de rua no Rio de Janeiro. É aquele tipo de coisa que não impede você de sair na rua e se divertir. E em todo esse tempo, nunca registramos uma confusão, um problema sequer nesses vinte anos de bloco. Eu falo isso porque eu não sou muito de carnaval. O que eu gosto mesmo é de sair no meu bloco, no Suvaco do Cristo, que vai pra rua um domingo antes do domingo de carnaval. Durante o carnaval, o que eu faço mesmo é descansar.

E dos teus discos, qual aquele que você acha que as pessoas deveriam ouvir mais?
Todos! Eu não posso apresentar um filho só pra rapaziada. Filhos são filhos. Se eu tivesse só um, recomendaria um. Como eu tenho dez, eu recomendo os dez. (risos)


* Foto de Jards Macalé ao vivo no SESC Santana - São Paulo (Set/2007) - por Capitu

** Entrevista publicada originalmente na Revista Coquetel Molotov Nº 4 (Abril / 2008).


Fonte:
CoquetelMolotov

A Coquetel Molotov está licenciada sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil, exceto o que for de divulgação.
http://creativecommons.org/LICENSES/BY-NC-ND/2.5/BR

Quase Matei - Conto

Quase matei

Aperto a bolsa contra o peito, cerro as pálpebras e encosto-me à pia, esperando que a vertigem se dissipe. Ouço, então, com alguma clareza, meu nome. Chamado, como num lamento, repetidas vezes


Isa Fonseca


No café, tentando ler o jornal do dia. Maus pensamentos, sofrimento, tentativa de goles na bebida quente. E a sensação de que a separação, jamais experimentada com tanta dor, não acontecera há duas semanas, mas sim no dia anterior.

Estou entre ir-me ou ficar, mas ficar por quê e ir, para onde?

A coincidência. O casal que entra. A coincidência maldosa. Ele, e ela que desconheço — muito linda, ela, que desconheço —, sentam-se próximos a mim, apenas o espaço de uma mesa do lugar em que estou. Justo ele. Oito horas da manhã; justo ele que detesta levantar cedo no inverno. E no meu bairro, e aqui — por quê? Maldosa coincidência.

Tomás abre o menu, de frente para mim, sem notar-me. Ela, de costas, é então só um vulto que mal distingo, mas que leva a mão direita ali, na costeleta ruiva daquele que é meu amado — tão ruivas as costeletas sob os cabelos claros, a diferença de tons surpreendente. E me vejo em seu lugar, porém num outro espaço, numa outra cadeira; um restaurante, e levo o dedo exatamente ali e sorrio, veja, são ruivas suas costeletas, tão diferentes do claro dos cabelos, tão loiros. E ele sorri para o vulto como havia um dia sorrido para mim, em resposta e o jeito de levar a cabeça de lado, meio coquette, vaidosa e timidamente, o mesmo jeito de dizer displicentemente: "Meu pai era ruivo; único traço seu que herdei".

Ela faz ali uma carícia, debruçada a meio corpo sobre a mesa, e sinto os membros gelados. Ela é doloridamente linda (e faço menção de morder levemente o lábio inferior, com inveja), mas posso perceber que ele não a ama, sei quando está amando, isto sei, penso, esfregando os braços de frio. A menos que... Por que o olhar de ternura, agora? Que deveria ser só para mim? Ah, desse jeito e assim, só para mim!

Contenho-me e baixo a vista, as letras embaralhadas do jornal. O café esfria e encontro um motivo para ir-me. Hesito. É preciso, antes, matar isto dentro de mim, digo-me. E, entre-dentes vêm, numa seqüência que é também desgostosa e melancólica surpresa: matar, matar... Eis outra boa razão para ir-me, penso, dobrando o jornal, quase satisfeita pela firmeza da atitude.

Chamo o garçom, mas nenhum som sai da minha boca numa primeira vez. Quando elevo a voz e esta vem nítida, o garçom (e, percebo, num relance, que Tomás, da sua cadeira, também me vê) aparece e peço a conta e, antes que o rapazinho em seu longo avental branco volte lá do caixa, calculo o café e a gorjeta, deixo as moedas sobre a mesa e ergo-me.

Não, que mau gosto, virá o amado em minha direção, enquanto planejo o que deve morrer? Levantou-se com determinação. Vem. E para dizermos o quê, um para o outro, se tudo já foi dito? Ergo-me num salto, colocando o jornal sob o braço e ajeitando a bolsa sobre o ombro; mas, ao invés de caminhar para a porta, rumo ao banheiro, próximo à mesa, deixando-o sem ação, a poucos passos. Que mau gosto, repito-me. Falarmos o quê, um ao outro e assim, num lugar público?

Aperto a bolsa contra o peito, cerro as pálpebras e encosto-me à pia, esperando que a vertigem se dissipe. Ouço, então, com alguma clareza, meu nome. Chamado, como num lamento, repetidas vezes. Assim que abro os olhos, tudo seria só silêncio não fossem as gotas insistentes de uma torneira mal fechada. Agarro-a e fecho-a, torcendo-a — pescocinho que resiste.

Dentro da bolsa, o batom. Escrevo em vermelho furioso seu nome no espelho, em seguida apago-o vigorosamente com o papel-toalha e saio, pisando os ladrilhos com raiva. Aguço a vista e Tomás ainda está ali, como se jamais houvesse se levantado e caminhado em minha direção, chamado chorosamente por mim. Ele está ali com ela, ela linda — que desconheço, ela que ele não ama — e sorve lentamente o café, os ombros eretos, o rosto sereno, enquanto passo ao largo e caminho tropegamente em direção à porta, uma estranha sensação de falta.

Na calçada, o coração ainda bate em descompasso e, percebo, então, caminhando a passos largos, entre lágrimas e o peito seco que, o que deve morrer, não... Não ainda, daquela vez.

Não ainda, repito em voz alta e estanco o passo; examino as mãos vazias e dou-me conta — tentando colocar a raiva no lugar da dor — que esqueci, em algum lugar, o meu jornal.



Isa Fonseca é jornalista, escritora e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo.

Fonte: LeMondeDiplomatique

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quarta-feira, 23 de julho de 2008

Conto de Olavo Bilac

COMO OS CÃES
Olavo Bilac

— Não é possível, senhora! — dizia o comendador à esposa — não é possível!

— Mas se eu lhe digo que é certo, seu Lucas! — insistia a D. Teresa — pois é mesmo a nossa filha quem m’o disse!

O comendador Lucas, atônito, coçou a cabeça:
— Oh! senhora! mas isso é grave! Então o rapaz já está casado com a menina há dois meses e ainda...

— Ainda nada, seu Lucas, absolutamente nada!

— Valha-me Deus! Enfim, eu bem sei que o rapaz, antes de casar, nunca tinha andado pelo mundo... sempre agarrado às saias da tia... sempre metido pelas igrejas.

— Mas — que diabo! — como é que, em dois meses, ainda o instinto não lhe deu aquilo que a experiência já lhe devia ter dado?! Enfim, vou eu mesmo falar-lhe! Valha-me Deus!

E, nessa mesma noite, o comendador, depois do jantar, chamou à fala o genro, um moço louro e bonito, dono de uns olhos cândidos...

— Então, como é isso, rapaz? tu não gostas de tua mulher?

— Como não gosto? Mas gosto muito!

— Tá tá tá... Vem cá! que é que tu lhe tens feito, nestes dous meses?

— Mas... tenho feito tudo! converso com ela, beijo-a, trago-lhe frutas, levo-a ao teatro... tenho feito tudo...

— Não é isto, rapaz, não é somente isso! o casamento é mais que alguma cousa! tu tens de fazer o que todos fazem, caramba!

— Mas... não entendo...

— O´ homem! tu precisas... ser marido de tua mulher!

— ... não compreendo...

— Valha-me Deus! tu não vês como os cães fazem na rua?

— Como os cães? ... como os cães?... sim... parece-me que sim...

— Pois, então? Faze como os cães, pedaço de moleirão, faze como os cães! E não te digo
mais nada! Faze como os cães...!

— E, ao deitar-se, o comendador disse à esposa, com um risinho brejeiro:

— Parece que o rapaz compreendeu, senhora! e agora é que a menina vai ver o bom e o
bonito...

*
* *
Uma semana depois, a Rosinha, muito corada, está diante do pai, que a interroga. O
comendador tem os olhos esbugalhados de espanto:


— Que, rapariga? pois então, o mesmo?

— O mesmo... ah! é verdade! houve uma coisa que até me espantou... ia-me esquecendo...
houve uma cousa... esquisita...

— Que foi? que foi? — exclamou o comendador — que foi?... eu logo vi que devia haver alguma cousa!

— Foi uma cousa esquisita... Ele me pediu que ficasse... assim... assim... como um bicho... e...

— E depois? e depois?

— E depois... depois... lambeu-me toda... e...

— ...e?

— ... e dormiu!


Fonte: DomínioPúblico

Petição pelo veto ao projeto de cibercrimes

Assine a petição online: http://www.petitiononline.com/veto2008/petition.html

EM DEFESA DA LIBERDADE E DO PROGRESSO DO CONHECIMENTO NA INTERNET BRASILEIRA

A Internet ampliou de forma inédita a comunicação humana, permitindo um avanço planetário na maneira de produzir, distribuir e consumir conhecimento, seja ele escrito, imagético ou sonoro. Construída colaborativamente, a rede é uma das maiores expressões da diversidade cultural e da criatividade social do século XX. Descentralizada, a Internet baseia-se na interatividade e na possibilidade de todos tornarem-se produtores e não apenas consumidores de informação, como impera ainda na era das mídias de massa. Na Internet, a liberdade de criação de conteúdos alimenta, e é alimentada, pela liberdade de criação de novos formatos midiáticos, de novos programas, de novas tecnologias, de novas redes sociais. A liberdade é a base da criação do conhecimento. E ela está na base do desenvolvimento e da sobrevivência da Internet.

A Internet é uma rede de redes, sempre em construção e coletiva. Ela é o palco de uma nova cultura humanista que coloca, pela primeira vez, a humanidade perante ela mesma ao oferecer oportunidades reais de comunicação entre os povos. E não falamos do futuro. Estamos falando do presente. Uma realidade com desigualdades regionais, mas planetária em seu crescimento.

O uso dos computadores e das redes são hoje incontornáveis, oferecendo oportunidades de trabalho, de educação e de lazer a milhares de brasileiros. Vejam o impacto das redes sociais, dos software livres, do e-mail, da Web, dos fóruns de discussão, dos telefones celulares cada vez mais integrados à Internet. O que vemos na rede é, efetivamente, troca, colaboração, sociabilidade, produção de informação, ebulição cultural. A Internet requalificou as práticas colaborativas, reunificou as artes e as ciências, superando uma divisão erguida no mundo mecânico da era industrial. A Internet representa, ainda que sempre em potência, a mais nova expressão da liberdade humana.

E nós brasileiros sabemos muito bem disso. A Internet oferece uma oportunidade ímpar a países periféricos e emergentes na nova sociedade da informação. Mesmo com todas as desigualdades sociais, nós, brasileiros, somo usuários criativos e expressivos na rede. Basta ver os números (IBOPE/NetRatikng): somos mais de 22 milhões de usuários, em crescimento a cada mês; somos os usuários que mais ficam on-line no mundo: mais de 22h em média por mês. E notem que as categorias que mais crescem são, justamente, "Educação e Carreira", ou seja, acesso à sites educacionais e profissionais. Devemos assim, estimular o uso e a democratização da Internet no Brasil. Necessitamos fazer crescer a rede, e não travá-la. Precisamos dar acesso a todos os brasileiros e estimulá-los a produzir conhecimento, cultura, e com isso poder melhorar suas condições de existência.

Um projeto de Lei do Senado brasileiro quer bloquear as práticas criativas e atacar a Internet, enrijecendo todas as convenções do direito autoral. O Substitutivo do Senador Eduardo Azeredo quer bloquear o uso de redes P2P, quer liquidar com o avanço das redes de conexão abertas (Wi-Fi) e quer exigir que todos os provedores de acesso à Internet se tornem delatores de seus usuários, colocando cada um como provável criminoso. É o reino da suspeita, do medo e da quebra da neutralidade da rede. Caso o projeto Substitutivo do Senador Azeredo seja aprovado, milhares de internautas serão transformados, de um dia para outro, em criminosos. Dezenas de atividades criativas serão consideradas criminosas pelo artigo 285-B do projeto em questão. Esse projeto é uma séria ameaça à diversidade da rede, às possibilidades recombinantes, além de instaurar o medo e a vigilância.

Se, como diz o projeto de lei, é crime "obter ou transferir dado ou informação disponível em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização, do legítimo titular, quando exigida", não podemos mais fazer nada na rede. O simples ato de acessar um site já seria um crime por "cópia sem pedir autorização" na memória "viva" (RAM) temporária do computador. Deveríamos considerar todos os browsers ilegais por criarem caches de páginas sem pedir autorização, e sem mesmo avisar aos mais comum dos usuários que eles estão copiando. Citar um trecho de uma matéria de um jornal ou outra publicação on-line em um blog, também seria crime. O projeto, se aprovado, colocaria a prática do "blogging" na ilegalidade, bem como as máquinas de busca, já que elas copiam trechos de sites e blogs sem pedir autorização de ninguém!

Se formos aplicar uma lei como essa as universidades, teríamos que considerar a ciência como uma atividade criminosa já que ela progride ao "transferir dado ou informação disponível em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado", "sem pedir a autorização dos autores" (citamos, mas não pedimos autorização aos autores para citá-los). Se levarmos o projeto de lei a sério, devemos nos perguntar como poderíamos pensar, criar e difundir conhecimento sem sermos criminosos.

O conhecimento só se dá de forma coletiva e compartilhada. Todo conhecimento se produz coletivamente: estimulado pelos livros que lemos, pelas palestras que assistimos, pelas idéias que nos foram dadas por nossos professores e amigos... Como podemos criar algo que não tenha, de uma forma ou de outra, surgido ou sido transferido por algum "dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização, do legítimo titular"?

Defendemos a liberdade, a inteligência e a troca livre e responsável. Não defendemos o plágio, a cópia indevida ou o roubo de obras. Defendemos a necessidade de garantir a liberdade de troca, o crescimento da criatividade e a expansão do conhecimento no Brasil. Experiências com Software Livres e Creative Commons já demonstraram que isso é possível. Devemos estimular a colaboração e enriquecimento cultural, não o plágio, o roubo e a cópia improdutiva e estagnante. E a Internet é um importante instrumento nesse sentido. Mas esse projeto coloca tudo no mesmo saco. Uso criativo, com respeito ao outro, passa, na Internet, a ser considerado crime. Projetos como esses prestam um desserviço à sociedade e à cultura brasileiras, travam o desenvolvimento humano e colocam o país definitivamente para debaixo do tapete da história da sociedade da informação no século XXI.

Por estas razões nós, abaixo assinados, pesquisadores e professores universitários apelamos aos congressistas brasileiros que rejeitem o projeto Substitutivo do Senador Eduardo Azeredo ao projeto de Lei da Câmara 89/2003, e Projetos de Lei do Senado n. 137/2000, e n. 76/2000, pois atenta contra a liberdade, a criatividade, a privacidade e a disseminação de conhecimento na Internet brasileira.

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André Lemos, Prof. Associado da Faculdade de Comunicação da UFBA, Pesquisador 1 do CNPq.

Sérgio Amadeu da Silveira, Prof. do Mestrado da Faculdade Cásper Líbero, ativista do software livre.

João Carlos Rebello Caribé, Publicitário e Consultor de Negócios em Midias Sociais



Fonte: CulturaLivre

sábado, 19 de julho de 2008

Ta-Hí - Marina de la Riva e Carmen Miranda

Pra você gostar de mim. Essa música, popularmente batizada de Ta-hí, é uma marchinha de carnaval que fez grande sucesso na voz de Carmen Miranda no ano de 1930. Passados quase 80 anos, ganhou uma versão latinizada na interpretação de Marina de la Riva. A doçura da voz da cantora, a sensualidade com que canta, os ritmos latinos, tudo isso confere beleza e sonoridade bem distinta que nada lembra a marchinha interpretada por Carmen Miranda. Ta-hí! é faixa do disco de estréia de Marina. (Y.H.)


Ta-hí! (segundo a Wikipédia)

Uma das músicas mais famosas do Brasil, sucesso do carnaval de 1930, Ta-hí foi a composição de maior destaque de Joubert de Carvalho e o primeiro grande hit de Carmen Miranda, que fez seu disco vender mais de 35 mil unidades (à época, pra se ter uma idéia, grandes artistas vendiam geralmente 1000 cópias). Originalmente, o título da música é “Pra você gostar de mim”, mas Ta-hí foi como ficou conhecido pelo povo.


Ta-hí! (Pra você gostar de mim) - Marina de la Riva



Ta-hí! (Pra você Gostar de mim) - Carmen Miranda




Ta-hí! (Pra Você Gostar De Mim)
Joubert de Carvalho


Tahí
Eu fiz tudo pra você gostar de mim
Ó, meu bem
Não faz assim comigo, não
Você tem
Você tem
Que me dar seu coração

Meu amor, não posso esquecer...
Se dá alegria, faz também sofrer
A minha vida foi sempre assim
Só chorando as mágoas que não tem fim

Essa história de gostar de alguém
Já é mania que as pessoas têm
Se me ajudasse Nosso Senhor
Eu não pensaria mais no amor


Ta-Hí

Embora pouco afeito ao gênero, foi numa marchinha que
Joubert de Carvalho pensou no momento em que, apresentado a Carmen Miranda, prometeu uma música para ela gravar. E essa marchinha, feita em menos de 24 horas, chamou-se "Pra Você Gostar de Mim", título logo substituído pelo público por "Taí", a expressão com que se inicia o seu estribilho.

Na verdade, ao procurar criar uma música que tivesse tudo a ver com a personalidade da jovem cantora, Joubert acertou em cheio, pois a marchinha, além de tornar Carmen conhecida em todo o país, acabou por constituir um marco em sua carreira, acompanhando-a até o fim da vida. Lançada às vésperas do carnaval de 30, "Taí" foi sucesso durante o ano todo, sendo ainda uma das músicas mais cantadas no carnaval de 31, até mesmo mais do que no de 30. (Fonte: MPB Cifrantiga)

terça-feira, 15 de julho de 2008

De Vigário Geral

Capa de Revista - AfroReggae

Videoclipe da música "Capa de Revista", música do primeiro cd da banda AfroReggae, "Nova Cara".


O que é o Afroreggae?

O Grupo Cultural AfroReggae (GCAR) surgiu em janeiro de 1993, inicialmente em torno do jornal Afro Reggae Notícias - um veículo de informação que visava à valorização e a divulgação da cultura negra, voltado sobretudo para jovens ligados em ritmos como reggae, soul, hip-hop, etc.

Como nossos planos eram de poder ter um tipo de intervenção mais direta junto a população afro-brasileira, inauguramos em 1993 na favela de Vigário Geral o nosso primeiro Núcleo Comunitário de Cultura, iniciando assim o desenvolvimento dos nossos projetos sociais. Em pouco tempo, esse núcleo se consolidou a partir das primeiras oficinas - que foram dança, percussão, reciclagem de lixo, futebol e capoeira - e preparou o terreno para novas empreitadas.

Nessa época já se tinha bem claro o objetivo a ser alcançado, e que pode ser definido pela missão institucional que tem nos pautado até hoje: oferecer uma formação cultural e artística para jovens moradores de favelas de modo que eles tivessem meios de construir suas cidadanias e com isto pudessem escapar do caminho do narcotráfico e do subemprego, transformando-se também em multiplicadores para outros jovens.

Com o passar do tempo os projetos foram se aperfeiçoando, a instituição foi crescendo e os resultados começaram a aparecer. Em 1997, o GCAR inaugurou o Centro Cultural AfroReggae Vigário Legal, um marco na nossa história. Com um espaço físico bem estruturado dentro da comunidade, o trabalho pôde se desenvolver com maior qualidade e planejamento, e com isto foi possível tornar esta iniciativa uma referência de prática sociocultural na cidade do Rio de Janeiro.

Desde o início somos uma organização em permanente crescimento e amadurecimento. Por isto não nos prendemos nem a uma única via de projetos,nem apenas à comunidade de Vigário Geral. Atualmente, o GCAR desenvolve diversos programas e projetos em 4 diferentes comunidades.

Apesar de toda a diversidade de atividades, a música tem sido em Vigário Geral o melhor instrumento para atrair os jovens a participar do GCAR. O sucesso obtido com a Banda AfroReggae, tanto artístico quanto como modelo de projeto social, fez com que outros jovens quisessem percorrer o mesmo caminho e, hoje, temos em Vigário mais 3 grupos musicais, que estão em fase de amadurecimento, mas que já fazem apresentações públicas: Banda Makala Música e Dança, Afro Lata e Afro Samba. Além disso, em Vigário Geral existe os seguintes SubGrupos: Afro Mangue, Tribo Negra, Akoni e Kitôto.

Fonte:
AfroReggae

Conheça mais sobre o Afroreggae em seu saite oficial aqui.

sábado, 12 de julho de 2008

Ando tão à Flor da Pele

A música Flor da Pele, de Zeca Baleiro, é a faixa cinco do disco Por onde andará Stephen Fry, de 1997. Zeca faz em Flor da Pele uma junção com a música Vapor Barato, de Jards Macalé e Waly Salomão, resultando numa das canções mais bonitas desta nova geração da MPB. Assista depois outras versões de Vapor Barato, uma pela banda Vulgo Tostoi (aqui) e outra de Gal Costa (aqui).

Flor da Pele / Vapor Barato - Zeca Baleiro



Flor da Pele/Vapor Barato
zeca baleiro

vapor barato
jards macalé e waly salomão

ando tão à flor da pele
que qualquer beijo de novela me faz chorar
ando tão à flor da pele
que teu olhar flor na janela me faz morrer
ando tão à flor da pele
que meu desejo se confunde com a vontade de não ser
ando tão à flor da pele
que a minha pele tem o fogo do juízo final

um barco sem porto sem rumo sem vela cavalo sem sela
um bicho solto um cão sem dono um menino um bandido
às vezes me preservo noutras suicido

às vezes me preservo noutras suicido
* (oh sim eu estou tão cansado mas não pra dizer
que não acredito mais em você
...eu não preciso de muito dinheiro graças a deus
...mas vou tomar aquele velho navio
aquele velho navio)

um barco sem porto sem rumo sem vela cavalo sem se-la
um bicho solto um cão sem dono um menino um bandido
às vezes me preservo noutras suicido

Poesias de Casimiro de Abreu

Minh'alma é triste

Minh'alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o alvor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.

E, como a rôla que perdeu o esposo,
Minh'alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.

E como notas de chorosa endeixa
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.

Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minha'alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.

Dizem que há, gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
— Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque — mas a minh'alma é triste!

II

Minh'alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.

Se passa um bote com as velas soltas,
Minh'ahna o segue n'amplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.

Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minh'alma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Bóia nas águas de gentil lagoa!

E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minha'ahna em notas de chorosa endeixa
Lamenta os sonhos que já tive outrora.

Dizem que há gozos no correr dos anos!...
Só eu não sei em que o prazer consiste.
— Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos — a minh'alma é triste!

III

Minh'alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!

E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh'alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!

Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.

Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços
Ambos choramos mas num só gemido!

Dizem que há gozos no viver d'amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
— Eu vejo o mundo na estação das flores
Tudo sorri — mas a minh'alma é triste!

IV

Minh'alma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!

A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
— Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.

De tanto fogo tinha a mente cheia!...
No afã da glória me atirei com ânsia...
E, perto ou longe, quis beijar a s'reia
Que em doce canto me atraiu na infância.

Ai! loucos sonhos de mancebo ardente!
Esp'ranças altas... Ei-las já tão rasas!...
— Pombo selvagem, quis voar contente...
Feriu-me a bala no bater das asas!

Dizem que há gozos no correr da vida...
Só eu não sei em que o prazer consiste!
— No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores — a minh'alma é triste!


Amor e medo

Quando eu te vejo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
— "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"

Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair cias tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.

É que esse vento que na várzea — ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!

Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: — que seria da plantinha humilde,
Que à sombra dela tão feliz crescia?

A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!

Ai! se te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...

Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio!...

Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...

Diz: — que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca — sobre um chão de brasas!

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!

Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.

Depois... desperta no febril delírio,
— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...

Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!...


Desejo

Se eu soubesse que no mundo
Existia um coração,
Que só por mim palpitasse
De amor em terna expansão;
Do peito calara as mágoas,
Bem feliz eu era então!

Se essa mulher fosse linda
Como os anjos lindos são,
Se tivesse quinze anos,
Se fosse rosa em botão,
Se inda brincasse inocente
Descuidosa no gazão;

Se tivesse a tez morena,
Os olhos com expressão,
Negros, negros, que matassem,
Que morressem de paixão,
Impondo sempre tiranos
Um jugo de sedução;

Se as tranças fossem escuras,
Lá castanhas é que não,
E que caíssem formosas
Ao sopro da viração,
Sobre uns ombros torneados,
Em amável confusão;

Se a fronte pura e serena
Brilhasse d'inspiração,
Se o tronco fosse flexível
Como a rama do chorão,
Se tivesse os lábios rubros,
Pé pequeno e linda mão;

Se a voz fosse harmoniosa
Como d'harpa a vibração,
Suave como a da rola
Que geme na solidão,
Apaixonada e sentida
Como do bardo a canção;

E se o peito lhe ondulasse
Em suave ondulação,
Ocultando em brancas vestes
Na mais branda comoção
Tesouros de seios virgens,
Dois pomos de tentação;

E se essa mulher formosa
Que me aparece em visão,
Possuísse uma alma ardente,
Fosse de amor um vulcão;
Por ela tudo daria...
— A vida, o céu, a razão!



Fonte: JornaldePoesia

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Conto de Clarice Lispector

Mal-estar de um anjo
Clarice Lispector


Ao sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora apenas chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego, era na rua a tempestade e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo elevador? Dilúvio carioca, sem refúgio possível, Copacabana com água entrando pelas lojas rasas e fechadas, águas grossas de lama até o meio da perna, o pé tateando para encontrar calçadas invisíveis. Até movimento de maré já tinha, onde se juntasse o bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua: já havia fluxo e refluxo de maré. E o pior era o temor ancestral gravado na carne: estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o próprio mundo, e eu que só caibo numa casa nunca mais terei casa na vida, esse vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos nunca secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca, pois já selecionaram o melhor casal de minha espécie.
Pelas esquinas os carros de motor paralisado, e nem sombra de táxi. E a alegria feroz de vários homens finalmente impossibilitados de voltar para casa. A alegria demoníaca dos homens livres ainda mais ameaçava quem só queria casa própria. Andei sem rumo ruas e ruas, mais me arrastava que andava, parar é que era o perigo. De minha desmedida desolação eu só conseguia que ela fosse disfarçada. Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem, hein, dona! Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que andar.

E eis que nas águas vejo um táxi. Avançava cuidadosamente, quase centímetro por centímetro, tateando o chão com as rodas. Como é que eu me apoderaria daquele táxi? Aproximei-me. Não podia me dar ao luxo de pedir, lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a doçura de pedir, não me deram. Contendo o desespero, o que sempre me dá uma aparência de força, disse ao chofer: "o senhor vai me levar para casa! é de noite! tenho filhos pequenos que devem estar assustados com minha demora, é de noite, ouviu?!" Para minha grande surpresa, vai o homem e simplesmente diz que sim. Ainda sem entender, entrei. O carro mal se movia nas ondas lamacentas, mas movia-se - e chegaria. Eu só pensava: eu não valho tanto. Daí a pouco já estava pensando: e eu que não sabia que valia tanto. E daí a pouco era a dona-de-casa de meu táxi, já tomara posse de direito do que gratuitamente me fora dado, e energicamente tomava medidas úteis: torcia cabelos e roupas, tirava os sapatos amolecidos, enxugava o rosto que mais parecia ter chorado. A verdade, sem pudor, é que eu tinha chorado. Muito pouco, e misturando motivos, mas chorado. Depois de arrumar minha casa, encostei-me bem confortável no que era meu, e de minha Arca assisti ao mundo acabar-se.

Uma senhora aproximou-se então do carro. Devagar como este avançava, ela pôde acompanhá-lo agarrada em aflição ao trinco da porta. E literalmente me implorava para compartilhar do táxi. Era tarde demais para mim, e seu itinerário me desviaria de meu caminho. Lembrei-me, porém, de meu desespero de havia cinco minutos, e resolvi que ela não teria o mesmo. Quando eu lhe disse que sim, seu tom de imploração imediatamente cessou, substituído por uma voz extremamente prática: "É, mas espere um pouco, vou até aquela transversal buscar na casa da costureira o embrulho do vestido que deixei lá para não molhar". "Estará ela se aproveitando de mim?", indaguei-me na velha dúvida se devo ou não deixar que se aproveitem de mim. Terminei cedendo. Ela demorou à vontade. E voltou com um enorme embrulho pousado nas mãos estendidas, como se até seu próprio corpo pudesse macular o vestido. Instalou-se totalmente, o que me deixou tímida na minha própria casa.

E começou o meu calvário de anjo - pois a mulher, com sua voz autoritária, já tinha começado a me chamar de anjo. Não poderia ser menos comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première e, se não fosse eu, o vestido se estragaria na chuva ou ela se atrasaria e perderia a première. Eu já tivera as minhas premières, e nem as minhas me haviam comovido. "A senhora não sabe o milagre que me aconteceu", contou-me com firmeza. "Comecei a rezar na rua, a rezar para que Deus me mandasse um anjo que me salvasse, fiz promessa de não comer quase nada amanhã. E Deus me mandou a senhora." Constrangida, remexi-me no banco. Eu era um anjo destinado a proteger premières? A ironia divina me encabulava. Mas a senhora, com toda a força de sua fé prática, e tratava-se de mulher forte, continuava impositivamente a reconhecer o anjo em mim, o que só pouquíssimas pessoas até hoje reconheceram, e sempre com a maior discrição. Tentei sem jeito a leveza de um sarcasmo: "Não me supervalorize, sou apenas um meio de transporte". Enquanto que a ela nem sequer ocorreu compreender-me, eu a contragosto percebia que o argumento na verdade não me isentava: anjos também são meios de transporte. Intimidada, calei-me. Fico muito impressionada com quem grita comigo: a mulher não gritava, mas claramente mandava em mim. Impossibilitada de confrontá-la, refugiei-me num doce cinismo: aquela senhora, que tratava com tanto vigor do próprio êxtase, devia ser mulher habituada a comprar com dinheiro, e na certa terminaria por agradecer ao anjo com um cheque, também levando em conta que a chuva já devia ter lavado toda a minha distinção. Com um pouco mais de confortável cinismo, em silêncio, declarei-lhe que dinheiro seria um meio tão legítimo como qualquer outro de agradecer, já que a moeda dela era mesmo moeda. Ou então - diverti-me eu - bem poderia dar-me em agradecimento o vestido da première, pois o que ela realmente deveria agradecer não era ter um vestido seco, e sim ter sido atingida pela graça, isto é, por mim. Dentro de um cinismo cada vez melhor, pensei: "Cada um tem o anjo que merece, veja que anjo lhe coube: estou cobiçando por pura curiosidade um vestido que nem sequer vi. Agora quero ver como é que sua alma vai se arrumar com a idéia de um anjo interessado em roupas". Parece-me que, no meu orgulho, eu não queria ter sido escolhida para servir de anjo à tolice ardente de uma senhora.

A verdade é que ser anjo estava começando a me pesar. Conheço bem esse processo do mundo: chamam-me de bondosa, e pelo menos durante algum tempo fico atrapalhada para ser ruim. Comecei também a compreender como os anjos se chateiam: eles servem a tudo. Isso nunca me ocorrera. A menos que eu fosse um anjo muito embaixo na escala dos anjos. Quem sabe, até, eu era só aprendiz de anjo. A alegria satisfeitona daquela senhora começava a me deixar sombria: ela fizera uso exorbitante de mim. Fizera de minha natureza indecisa uma profissão definida, transformara minha espontaneidade em dever, acorrentava-me, a mim, que era anjo, o que a essa altura eu já não podia mais negar, mas anjo livre. Quem sabe, porém, eu só fora mandada ao mundo para aquele instante de utilidade. Era isso, pois, o que eu valia. No táxi, eu não era um anjo decaído: era um anjo que caía em si. Caí em mim e fechei a cara. Um pouco mais e teria dito àquela de quem eu era com tanta revolta o anjo da guarda: faça o obséquio de descer já e imediatamente deste táxi! Mas fiquei calada, agüentando o peso de minhas asas cada vez mais contritas pelo seu enorme embrulho. Ela, a minha protegida, continuava a falar bem de mim, ou melhor, de minha função. Emburrei. A senhora sentiu e calou-se um pouco desarvorada. Já na altura de Viveiros de Castro a hostilidade se declarara muda entre nós.

- Escute, disse-lhe eu de repente, pois minha espontaneidade é faca de dois gumes também para os outros, o táxi vai antes me deixar em casa e depois é que segue com a senhora.

- Mas, disse ela surpreendida e em começo de indignação, depois vou ter que dar uma volta enorme e vou me atrasar! é só um pequeno desvio para me deixar em casa!

- Pois é, respondi seca. Mas não posso entrar pelo desvio.

- Eu pago tudo! insultou-me ela com a mesma moeda com que teria se lembrado de me agradecer.

- Eu é que pago tudo, insultei-a.

Ao saltar do táxi, assim como quem não quer nada, tive o cuidado de esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda falta de educação que me tem salvo de abismos angelicais. Livre de asas, com a grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez que só tenho quando pára de chover, atravessei como uma rainha os largos umbrais do Edifício Visconde de Pelotas.

CLARICE LISPECTOR. Mal-estar de um anjo.
In Para Não Esquecer. São Paulo, Ática, 1984



Fonte: Lumiarte

Crônica do Stanislaw

Dois amigos e um chato
Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)

Os dois estavam tomando um cafezinho no boteco da esquina, antes de partirem para as suas respectivas repartições. Um tinha um nome fácil: era o Zé. O outro tinha um nome desses de dar cãibra em língua de crioulo: era o Flaudemíglio.

Acabado o café o Zé perguntou: — Vais pra cidade?

— Vou — respondeu Flaudemíglio, acrescentando: — Mas vou pegar o 434, que vai pela Lapa. Eu tenho que entregar uma urinazinha de minha mulher no laboratório da Associação, que é ali na Mem de Sá.

Zé acendeu um cigarro e olhou para a fila do 474, que ia direto pro centro e, por isso, era a fila mais piruada. Tinha gente às pampas.

— Vens comigo? — quis saber Flaudemíglio.

— Não — disse o Zé: — Eu estou atrasado e vou pegar um direto ao centro.

— Então tá — concordou Flaudemíglio, olhando para a outra esquina e, vendo que já vinha o que passava pela Lapa: —Chi! Lá vem o meu... — e correu para o ponto de parada, fazendo sinal para o ônibus parar.

Foi aí que, segurando o guarda-chuva, um embrulho e mais o vidrinho da urinazinha (como ele carinhosamente chamava o material recolhido pela mulher na véspera para o exame de laboratório...), foi aí que o Flaudemíglio se atrapalhou e deixou cair algo no chão.

O motorista, com aquela delicadeza peculiar à classe, já ia botando o carro em movimento, não dando tempo ao passageiro para apanhar o que caíra. Flaudemíglio só teve tempo de berrar para o amigo: — Zé, caiu minha carteira de identidade. Apanha e me entrega logo mais.

O 434 seguiu e Zé atravessou a rua, para apanhar a carteira do outro. Já estava chegando perto quando um cidadão magrela e antipático e, ainda por cima, com sorriso de Juraci Magalhães, apanhou a carteira de Flaudemíglio.

— Por favor, cavalheiro, esta carteira é de um amigo meu —disse o Zé estendendo a mão.

Mas o que tinha sorriso de Juraci não entregou. Examinou a carteira e depois perguntou: — Como é o nome do seu amigo?

— Flaudemíglio — respondeu o Zé.

— Flaudemíglio de quê? — insistiu o chato.

Mas o Zé deu-lhe um safanão e tomou-lhe a carteira, dizendo: — Ora, seu cretino, quem acerta Flaudemíglio não precisa acertar mais nada!



Fonte: OCaixote

quinta-feira, 10 de julho de 2008

As Novas Musas

Na década de 1990 Marisa Monte reinou absoluto como musa da MPB. De uns anos pra cá a coisa começou a ficar diferente, dia após dia surgem novas cantoras na música brasileira, algumas consagrando-se, outras como promessa. O certo é que a maioria delas é encantadora. Inclusive, algumas dessas intérpretes, estão agregando novos elementos e incorporando um estilo contemporâneo na nossa música. Bendito seja, que apareçam cada vez mais musas na música brasileira, espaço tem pra todas.

Atrás desse fenômeno das novas intérpretes da MPB, o programa Vitrine, da TV Cultura, realizou uma matéria sobre o assunto e reuniu três destas personagens da novíssima geração: Roberta Sá, Marina de La Riva e Mariana Aydar. Assista no reprodutor abaixo.


Vitrine com Roberta Sá, Marina de La Riva e Mariana Aydar

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Partiu e nunca mais voltou

Ela Partiu - Tim Maia



Ela Partiu - Marcelinho da Lua e Ultramen



Ela Partiu

Ela partiu
Partiu e nunca mais voltou
Ela sumiu, sumiu e nunca mais voltou
Se souberem onde ela está
Digam-me e vou lá buscá-la
Pelo menos telefone em seu nome
Me dê uma dica, uma pista, insista
Ei! e nunca mais voltou
Ela sumiu, sumiu e nunca mais voltou
Ela partiu, partiu
E nunca mais voltou
Se eu soubesse onde ela foi iria atrás
Mas não sei mais nem direção
Várias noites que eu não durmo
Um segundo
Estou cansado
Magoado exausto
E nunca mais voltou

segunda-feira, 7 de julho de 2008

O Santo Sujo

O artista sem obra
por Pedro Alexandre Sanches

Poeta e escritor, o paraense Jayme Ovalle jamais publicou um livro. Como compositor, criou meras 33 canções ao longo de 61 anos de vida, de 1894 a 1955. Ainda assim, sua história inspira O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle (Cosac Naify, 298 págs., R$ 55), uma alentada biografia de autoria do jornalista e escritor mineiro Humberto Werneck.

“Como jornalista e como pessoa, sempre gostei dos personagens colaterais. Não tenho muito interesse pelos caras do primeiro plano”, afirma Werneck. “Para mim, como personagem, Salieri é mais importante que Mozart.”

Nem de longe Werneck é o único a encontrar inspiração no vulto de Ovalle. Ao redor desse obscuro Salieri esvoaçou uma galeria extensa de Mozarts, entre eles Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Candido Portinari, Emiliano Di Cavalcanti, Heitor Villa-Lobos, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos...

Alguém diria, de pronto, que foi Ovalle quem orbitou em torno deles. Mas todos (e muitos mais) conviveram intensamente com ele, dedicaram-lhe poemas, escreveram inspirados por sua figura, fizeram-no personagem de crônicas e romances, retrataram-no em tela. O Santo Sujo coleciona e organiza dezenas dessas citações.
Produtor contumaz de insights e frases espirituosas, Ovalle foi criador intuitivo da “nova gnomonia”, um intrincado sistema de classificação de humanos (ou não humanos) em “parás”, “dantas”, “kernianos”, “onésimos” e “mozarlescos”. A partir de 1931, virou coqueluche entre intelectuais como Bandeira (o primeiro a registrar a gnomonia em texto), Vinicius de Moraes, Antonio Candido e Sérgio Buarque de Hollanda.

“Era uma luz refletida em outros. A luz dele bronzeou uma série de caras, mas não se viu esse sol”, define Werneck. Na “vida real”, Ovalle era fiscal da Alfândega carioca. Em 1933, tornou-se funcionário da Delegacia do Tesouro Brasileiro em Londres e, depois, em 1946, em Nova York.

No exílio londrino, viveu o maior surto criativo. Enviou ao Brasil partituras transcritas por um amigo pianista. Concluiu Poemas Ingleses e The Foolish Bird, datilografados por uma secretária e jamais publicados. E imaginou a História de São Sujo, que nunca escreveu. “Era um artista, mas não tinha os meios para se expressar, e sacava isso. Só em Londres resolveu se estabelecer como artista, e percebeu que não ia, que ia cumprir a profecia de Mário de Andrade”, avalia o biógrafo.

Refere-se à dura avaliação que o escritor paulista fez para Manuel Bandeira, intermediador da amizade entre os dois: “Tenho a certeza de que não chegará a criar coisa nenhuma de durável”. Segundo o biógrafo, não se sabe se Ovalle tomou conhecimento dessa avaliação, mas é certo que se ressentia por acreditar que Mário, também musicólogo, não lhe atribuía a devida importância. No entanto, ele fora citado nominalmente em Macunaíma (1928), numa lista de “macumbeiros”. Católico fervoroso na maturidade, transitou livremente entre várias religiões.

Filho de uma cearense descendente de indígenas e de um chileno radicado na Amazônia no auge do ciclo da borracha, jamais teve educação formal. “Estamos falando de um homem que nunca foi à escola, e que por pouco não era analfabeto”, definiu-o em depoimento ao biógrafo a escritora norte-americana Virginia Peckham, a primeira e única esposa de Ovalle, com quem ele se casou aos 56 anos e teve a filha Mariana aos 57.

Tocou violão e compôs sem possuir tampouco qualquer formação musical. Azulão, sua canção mais conhecida, recebeu versos de Manuel Bandeira e tem atravessado as décadas em interpretações de Francisco Alves, Elizeth Cardoso, Nara Leão, até uma recente de Maria Bethânia.

Em Nova York, aproximou-se e ficou amigo do jovem Fernando Sabino, que assim o definiria: “Um homem estranhíssimo, muito moreno e com olhos verdes que pareciam ter uma luz, olhos de águia, e cabelos alvoroçados, uma figura estranha, de índio, não índio dos nossos, talvez um índio peruano”.

Sabino foi elo simbólico para a concretização do trabalho de Werneck: “Desde adolescente, eu encontrava citações sobre Ovalle. Mais tarde soube que o personagem Germano, de Encontro Marcado, um livro importante para mim, era inspirado nele. Fui conversar com Sabino, comecei a juntar uma série de coisas”.

A construção de O Santo Sujo teve algo de “ovalliano”, para usar um termo caro ao biógrafo. A feitura se estendeu por 17 anos. “Várias vezes desisti. Pensei em parar e escrever sobre um grande amigo de Ovalle, o escritor Augusto Frederico Schmidt, um grande personagem, a cabeça pensante de Juscelino Kubitschek, todo ambivalente. Outro é Gilberto Amado, que escreveu muito sobre Ovalle e ninguém mais lê. Nem os cupins comem mais seus livros. É injusto”, afirma. “Mas, quando via, estava outra vez em brasa falando de Jayme Ovalle.”

O fogo se reacendeu pelo interesse do editor Augusto Massi, da Cosac Naify. E ganhou empurrão decisivo quando Paulo Werneck, filho do biógrafo, foi trabalhar na mesma empresa e se tornou co-editor de O Santo Sujo. “Aí ele virou o pai, e eu, o filho”, diz, com orgulho.

Na longa pesquisa, Werneck acumulou dezenas de achados. Descobriu que começou por Ovalle o hábito de usar palavras no diminutivo, futuramente uma marca distintiva do discípulo Vinicius de Moraes e da bossa nova, entre prainhas, barquinhos e tardinhas.

Uma irmã de Ovalle casou-se com o então presidente da República Hermes da Fonseca, e Werneck o localizou na chegada do samba ao Palácio do Catete, por intermédio da primeira-dama, Nair de Teffé. Ao tocar o Corta-Jaca de Chiquinha Gonzaga, ela atraiu a ira do senador Rui Barbosa: “(É) a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens (...). Mas nas recepções presidenciais o Corta-Jaca é executado com todas as honras da música de Wagner”.

Pois Ovalle, um entusiasta do folclore, também andou tocando nas rodas palacianas. “Foi um dos facilitadores para o samba chegar ao palácio. Erudito versus popular não fazia nenhum sentido para ele”, diz Werneck.

Outro caso remete ao antropólogo Gilberto Freyre, que por certo tempo dividiu casa com o paraense no Rio e lhe deu lições de inglês antes da partida para Londres. O aluno nunca chegou a aprender o idioma, embora lutasse para escrever em inglês The Foolish Bird e os Poemas Ingleses. “Acho que tudo isso lhe causava angústia e amargura, sim. Nesse sentido, foi uma figura trágica, por trás do epidérmico mais pitoresco”, analisa Werneck.

E prossegue: “De tanto ler esta lorota, eu achava que Virginia devia ter um baú cheio de escritos, de ouro literário. Não tinha. O que havia é fraco, é muito fraco, de diletante. Ele não produziu uma obra, mas o que significou para tanta gente como espetáculo humano...”

Autora do obscuro Harm’s Way na juventude, Virginia de certa forma absorveria os bloqueios do marido. Ensaiou escrever novos livros nas décadas seguintes, mas desde que o conheceu nunca mais publicou nenhum.

O senso comum provavelmente classificaria Ovalle como um artista “fracassado”, mas o biógrafo rejeita apaixonadamente essa leitura. “Ele é prova de que a arte pode se realizar de outra maneira, que não seja formalizando-se em texto ou música. Há vidas que são arte.”

Fonte: CartaCapital

Leia mais na revista CartaCapital, edição 503, nas bancas, desde 04/07/2008.


Veja Vinicius de Moraes falando sobre a teoria de Jayme Ovalle

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Começo a conhecer-me. Não existo.

Poesias de Álvaro de Campos.

Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...


Ah, Onde Estou

Ah, onde estou onde passo, ou onde não estou nem passo,
A banalidade devorante das caras de toda a gente!
Ah, a angústia insuportável de gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!
(Murmúrio outrora de regatos próprios, de arvoredo meu.)

Queria vomitar o que vi, só da náusea de o ter visto,
Estômago da alma alvorotado de eu ser...


Às Vezes

Às vezes tenho idéias felizes,
Idéias subitamente felizes, em idéias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...

Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...


Começo a conhecer-me. Não existo.

Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida ...
Sou isso, enfim ...
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.


Domingo Irei

Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Sutil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!


Estou Cansado

Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.


Gostava

Gostava de gostar de gostar.
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafisica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...


Grandes

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.
Fim.



Álvaro de Campos foi um dos heterônimos de Fernando Pessoa.


Fonte Poesias: JornaldePoesia

terça-feira, 1 de julho de 2008

Crônica de Stanislaw Ponte Preta

O Stanislaw Ponte Preta foi um dos maiores cronistas do Brasil. E o Leônio Xanás? Esse, com absoluta certeza, foi um dos grandes escritores do País.


"Por fora" de Xanás
Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto)

Todo dito popular funciona e ficaria o dito pelo não dito se os ditos ditos não funcionassem, dito o que, acrescento que há um dito que não funciona ou, melhor dito, é um dito que funciona em parte uma vez que, no setor da ignorância, o dito falha, talvez para confirmar outro velho dito: o do
não-há-regra-sem-exceção. Digo melhor: o dito mal-de-muitos-consolo-é encerra muita verdade, mas falha quando notamos que ignorância é o que não falta pela aí e, no entanto, ninguém gosta de confessar sua ignorância. Logo, pelo menos aí, o dito dito falha.

Tenho experiência pessoal quanto à má-vontade do próximo para com a própria ignorância, má-vontade esta confirmada diversas vezes em poucos minutos, graças a uma historinha vivida ao lado do escritor Álvaro Moreira, num dia em que fomos almoçar juntos, na cidade.

Já não me lembro qual o motivo do almoço. Lembro-me, isto sim, que íamos caminhando, quando Alvinho disse, em voz alta:

— Leônio Xanás.

— O quê? — perguntei, e Alvinho explicou que Leônio Xanás era o nome do pintor que estava pintando seu apartamento. Até me mostrou um cartãozinho, escrito "Leônio Xanás — Pinturas em Geral — Peça Orçamento".

— Hoje acordei com o nome dele na cabeça. A toda hora digo Leônio Xanás — contava o escritor. — Ainda agorinha, ao entrar no lotação, disse alto "Leônio Xanás" e levei um susto, quando o motorista respondeu: "Passa perto". Ele pensou que eu estava perguntando por determinada rua e foi logo dizendo que passa perto, sem, ao menos, saber que rua era.

Foi aí que nos nasceu a vontade de experimentar a sinceridade do próximo e nos nasceu a certeza de que ninguém gosta de confessar-se ignorante mesmo em relação às coisas mais corriqueiras. Entramos numa farmácia para comprar Alka-Seltzer (pretendíamos tomar vinho no almoço) e Alvinho experimentou de novo, perguntando ao farmacêutico:

— Tem Leônio Xanás?

— Estamos em falta — foi a resposta.

Saímos da farmácia e fomos ao prédio onde tem escritório o editor do Alvinho. No elevador, nova experiência. Desta vez quem perguntou fui eu, dirigindo-me ao cabineiro do elevador:

— Em que andar é o consultório do Dr. Leônio Xanás?

— Ele é médico de quê?

— Das vias urinárias — apressou-se a mentir o amigo, ante a minha titubeada.

Então é no sexto andar — garantiu o cara do elevador, sem o menor remorso. E se não tivéssemos saltado no quarto andar por conta própria, teria nos deixado no sexto a procurar um consultório que não existe.

E assim foi a coisa. Ninguém foi capaz de dizer que não conhecia nenhum Leônio Xanás ou que não sabia o que era Leônio Xanás. Nem mesmo a gerente de uma loja de roupas, que — geralmente — são senhoras de comprovada gentileza. Entramos num elegante magazine do centro da cidade para comprar um lenço de seda para presente. Vimos vários todos bacanérrimos, mas — para continuar a pesquisa — indagamos da vendedora:

— Não tem nenhum da marca Leônio Xanás?

A mocinha pediu que esperássemos um momento, foi até lá dentro e voltou com a prestativa senhora gerente. Esta sorriu e quis saber qual era mesmo a marca:

— Leônio Xanás — repeti, com esta impressionante cara-de-pau que Deus me deu.

Madame voltou a sorrir e respondeu: — Tínhamos, sim, senhor. Mas acabou. Estamos esperando nova remessa.

Foi uma pena não ter. Compramos de outra marca qualquer e fomos almoçar. Foi um almoço simpático com o velho amigo. Lembro-me que, na hora do vinho, quando o garçom trouxe a carta, Alvinho deu uma olhadela e disse, em tom resoluto:

— Queremos uma garrafa de Leônio Xanás tinto.

O garçom fez uma mesura: — O senhor vai me perdoar, doutor. Mas eu não aconselho esse vinho.

Devia ser uma questão de safra, daí aconselhar outro: — O Ferreirinha não serve?

Servia.

É irmãos, mal de muitos consolo é, mas ignorante que existe às pampas, ninguém quer ser.



Fonte: OCaixote