terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Texto no Limite entre o Conto e a Crônica

Felicidade à brasileira
por Urariano Mota

Há duas semanas, precisei de um atestado de sanidade física e mental. Quem me conhece sabe que esse atestado, aplicado ao indivíduo que sou, ou é desonesto ou é impossível. Mas que fazer, a gente precisa, e necessidade não tem lógica, tem é a carência enorme, à procura de satisfação. Eu buscava, portanto, um Atestado de Sanidade Física e Mental. Assim em maiúsculas fica até mais digno, e mais crível. Por isso abro o catálogo telefônico e destaco os números de telefone dos centros médicos, Centro Médico, devo dizer, para maior idoneidade dos Centros. Ligo, e começa o nonsense.

- Roseli...
- É do Centro Médico Ulisses Eulâmpio?
- Sim, Roseli, às suas ordens.
- É do Centro Médico?
- Sim .. um momento.

E depois de 3 minutos de intervalo, por vingança, suponho, porque eu não soube logo que o Centro Médico Ulisses Eulâmpio e Roseli eram uma só e só uma pessoa.

- Sim...Fale.
- Vocês fornecem atestado de sanidade física e mental?
- Atestado de....
- Sanidade Física e Mental.
- Só o Físico.
- E o Mental?
- O senhor tem que ir a um médico de doença mental.

Antes que eu agradeça, a recepcionista que é uma instituição desliga. Ligo para outros, outros Centros Médicos, outras Centrais de Atendimento de Saúde, até para Hospitais. Sempre a mesma conversa. Só o físico atestamos, o senhor, se quiser, que vá a um psiquiatra pegar o outro. E o outro, bem sei, por mais características certas e inabaláveis de esquizofrenia, o outro sou eu. Que não vai correr esse risco. Por isto este, aqui, volta a um décimo Centro Médico de Saúde.

- Escute, vocês não têm médico clínico geral?
- Só temos especialistas.
- E não têm dois especialistas, um físico e um mental, no Centro?
- O senhor deveria ir a um Hospital Psiquiátrico.

Desligam. Mas o louco, que bem sabe estar no Brasil, terra de todas as possibilidades possíveis e imaginárias, não desiste. E lhe dizem, na vigésima primeira tentativa.

- Centro de Medicina do Trabalhador.
- Vocês fornecem atestado de sanidade física e mental?
- Sim, fornecemos.
- Atestado de Sanidade Física... e Mental?!
- Sim, fornecemos.
- Certo.... (E repito, para maior certeza)... Atestado de sanidade física e mental.
- Um momento....

E por vingança, suponho, deixa-me a esperar bons 4 minutos, porque não ouvi bem, e se ouvi deveria ter acreditado que ali se fornecia Atestado de Sanidade Física e Mental, sem dúvida, idiota.

- Centro de Medicina do Trabalhador....

Imagino, porque estou em casa ainda, imagino que o Centro de Medicina do Trabalhador é um complexo industrial-médico cheio de canos, retortas, e de portas, e laboratórios, e corredores compridíssimos, cheios de especialistas de todas as especialidades, se assim podemos dizer. Um lugar onde entramos em uma porta e saímos em outra, de exames de raios X a laboratórios de análises, de laboratórios a máquinas de eletrochoques, até atingir as perguntas cruciais de psiquiatras, que nos estudam e nos olham como se fossem a Miss Marple de Agatha Christie. Imaginação vulgar, estúpida e insípida, já vêem.

- Me diga uma coisa: demora muito pra pegar esse atestado?
- Não, é ordem de chegada.
- Tem muita gente aí?
- Centro de Saúde do Trabalhador ...um momento. Agora, só uns quinze.
- Vocês atendem por algum plano de saúde?
- Centro de Saúde do Trabalhador..... O pagamento é na hora.
- E quanto é?
- Quinze reais.

Desta vez sou eu que desligo. Quinze reais! Isto ou é uma absoluta anarquia, uma grande zona, ou deve ter algum subsídio para, depois do check-up, diagnósticos, especialistas e consultas, atingir um preço tão barato. E me mando, necessitado e incrédulo que sou, para o centro do Recife.

Ó homem de pouca fé, ainda que vivas em um país cafeeiro, creias, o Centro de Medicina do Trabalhador existe, e não é uma absoluta zona. É um lugar com aparência decente (“como deve ter todo prostíbulo que preste”, um satanás me diz). Mas não. Ali entro em uma sala, com duas atendentes. Que me parecem moças da maior seriedade. E por isso pergunto, com um pé atrás, em um intervalo de suas respostas ao telefone, “Centro de Medicina do Trabalhador”:

- Atestado de Sanidade Física e Mental ... é aqui?
- Aguarde a sua vez - ela me responde, enquanto me entrega um papelzinho numerado, que leio, “ficha 27”.

Olho ao redor. À minha frente, jovens recém-saídos da adolescência, e um deles sem dúvida é um rapaz típico de Pernambuco. Veste uma camisa negra, com as palavras, digo, com o anúncio, “Quick Silver”. Palavras em inglês, nas camisas, para muitos jovens do Recife têm um valor estético, porque as vêem com o mesmo significado de um ideograma chinês. Ao lado, um cidadão gordo, um quase velho, diria, se eu não estivesse em idade próxima à dele. Um inválido, eu acrescentaria, se nos últimos tempos eu não estivesse bem solidário para com os inválidos. Um homem, enfim, completo, que não passará com a sua imensa barriga em qualquer check-up. Ele sequer passa na abertura da cadeira, e por isto se põe um pouco de lado, a subtrair uma parte do largo traseiro no assento. Veste uma camisa bege, e percebo que outros também se vestem como ele, é uma farda, e todos eles possuem uma fita azul ao pescoço, que desce para um crachá, que deixam no bolso, onde está escrito “Tribunal de Justiça de Pernambuco”. Ah, bom, então isto aqui é sério, jamais será um prostíbulo, creio. Seis funcionários da justiça, chego a contar. Da Justiça, corrijo. Seis honrados servidores da Justiça de Pernambuco à espera do seu Atestado de Sanidade Física e Mental. Ó homem de pouca fé. O negócio, digo, o atendimento médico é garantido pelo órgão máximo das leis do Estado. Por isso, em paz e silêncio espero, para não descansar em paz.

Abre-se uma porta. Sai uma senhora, jovem, com uma bata branca. É médica, me digo. Porque os médicos usam bata branca. Mas não só: a jovem moça que sai tem um certo ar de confiança, da mais certa e certeira impunidade. Esse ar dos maus médicos, devo acrescentar, para viver sem a sua ameaça. E me calo, sob a proteção dos funcionários do estado. A jovem passa, volta e se fecha em uma sala, misteriosa. A senhorita da recepção me chama. Enquanto preenche uma ficha, que deve ser a minha, pergunta:

- Altura?
- Um metro e setenta. (Quis dizer um e oitenta, mas por modéstia reduzi dez centímetros)
- Peso?
- Setenta quilos.
- Aguarde.

Depois que me sento, descubro que por simetria informei meu peso em concordância com a minha altura. Um excesso de estética me fez descer o peso em quinze quilos. Mas é como se eu os tivesse, me digo. Mentalmente, sou um homem esbelto. No ideal em que me vejo, tenho um e oitenta de altura e peso setenta quilos. Guapo melhor não há.

Eis então que chega a minha vez, e uma porta se abre para meu primeiro exame do Atestado de Sanidade Física e Mental. O médico que me atende, devo dizer, o médico na frente do qual eu me assento, tem os olhos fitos na minha ficha estética. Ele não me olha, coitado, compreendo. A seu lado, possui uma pasta grande, aberta, cheia de fichas, e um papel com quadrinhos, que imagino ser um mapa estatístico, dos seus atendimentos na manhã. Quantos? Sessenta, noventa, cento e vinte? Sem me olhar, sem me ver, pergunta o pobre homem:

- Alguma doença?
- Não.
- Já fez alguma cirurgia?
- Sim....

O seu rosto ganha um ar de enfado, de aborrecida contrariedade. E sem me perguntar qual cirurgia e por quê:

- Mas tudo bem, não é?
- Sim, tudo bem.
- Fuma, bebe, drogas, tóxicos, algum vício? O braço.

Estendo-lhe o direito, a pensar que ele vai procurar, com percuciência, algum sinal de picada, marca ou tatuagem. Engano. Ata-me um tecido, ágil, pelo que sinto, na altura do antebraço, e com dois apertos em uma bola escura olha rápido o ponteiro em um medidor.

- Pode ir.

Confesso que lhe estendi a mão, para um cumprimento, que o pobre homem não pôde corresponder.

– O próximo.

Na recepção, a gentil e decente moça entrega-me um papel já assinado por um médico, que deve ser o mesmo na frente do qual eu transitei. Saio à rua, rápido, antes que ela se arrependa e me chame de volta. Leio e releio o documento. “Declaro, para os devidos fins, que o portador se encontra em perfeito gozo de saúde física e mental”. Que belo, que bela é a nossa organização física, mental e declaratória. Que belo. Jamais poderia imaginar que por quinze reais eu seria um homem esbelto, saudável e feliz. No mais estrito cumprimento da lei.


Urariano Mota é autor do blogue Sapoti da Japaranduba


Fonte: RevistaFórum

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