Carioca, sambista consagrado, pai de oito filhos e avô de sete netos, Martinho da Vila – o “da Vila” devido ao seu caso de amor intrínseco com a escola de samba Unidos de Vila Isabel – recebeu a Caros Amigos em São Paulo no lançamento do seu livro Vermelho17. Sim, Martinho também é escritor e tem 7 obras publicadas. Antes da carreira musical, foi auxiliar de químico industrial e serviu o exército como sargento burocrata, também cursou a Escola de Instrução Especializada, tornando-se escrevente e contador. A carreira ganhou força no III Festival da Record, em 1967. Foi o primeiro sambista a ultrapassar a marca de um milhão de cópias com o CD Tá Delícia, tá Gostoso, de 1995. Nesta entrevista solta o verbo, diz que as gravadoras massificam a produção para facilitar o sucesso das músicas, que o ministro Gilberto Gil “é mais um relações públicas que vai aos lugares e faz tipo” e que o governo Lula ficará para a história pois “qualquer trabalhador pode sonhar hoje”. Com vocês, Martinho José Ferreira.
fotos: Flora Bonatto.
Essa resposta é muito sabida, tem em todos os lugares. Nasci no Estado do Rio de Janeiro, fui criado na Serra dos Pretos Forros, na Boca do Mato, depois fui para a Vila Isabel.
Vinícius Souto – E o seu “off-rio”?
Isso é interessante. Nasci numa fazendinha e depois a comprei. Nasci na cidade de Duas Barras, mas fui criado no Rio de Janeiro. Quando voltei, fui ao cartório onde fui registrado, fizeram uma festa pra mim, levaram-me na Igreja onde fui batizado e na casa que nasci. Por acaso estava à venda e comprei. Esse lugar, que chamo de “meu off-rio”, é um instituto cultural que prioriza a alfabetização de adultos e da música regional.
Vinícius Souto – O senhor já produziu livros, músicas nos mais variados ritmos. De onde vem o gosto pela diversidade?
Tem algumas coisas que a gente não sabe explicar muito, por que faz, como fez. Os historiadores é que sabem explicar melhor esse fenômeno. A gente faz as coisas, vai criando, vai acontecendo... Só penso em fazer, não penso em explicar.
Vinícius Souto - Fale um pouquinho sobre o livro Vermelho 17, da associação ao socialismo, da filosofia das barbearias.
Ao ver a capa uns pensam logo no Manifesto Comunista de 17, outros pensam em um cassino com uma roleta e alguém jogando vermelho 17. Não é uma coisa nem outra. Falo de um jovem de 17 anos que resolveu contar sua história. Acredito que os adolescentes têm pouca literatura dirigida, há muita literatura para adulto, muita para criança. Há poucos escritores dispostos a escrever para esse público. Quem sabe não incentivo outros escritores a escrever para adolescentes?
Vinícius Souto – O livro é baseado na vida de algum adolescente?
Natália Mendes – Ou algo que o senhor mesmo tenha vivido.
Não tem nada a ver comigo. Imaginei um rapaz classe média, que mora num bairro, que são áreas que conheço. Não poderia escrever sobre a periferia de São Paulo. A história gira em torno de uma barbearia, o pai dele era barbeiro, e nas barbearias, agora não muito, mas na periferia ainda tem muito daquelas barbearias que ficavam abertas, que as pessoas iam lá para ler jornal, conversar, falar de política. É vermelho porque o personagem se chama Vermelho, o pai dele deu esse nome, pois gosta do vermelho: do América Futebol Clube, do PC do B, do Partido Comunista, gostava de dar rosas vermelhas para a mulher, etc.
Léo Arcoverde – Esse personagem ouve do pai que a vida de casado é boa, mas a de solteiro é melhor?
Ele fala muita coisa que ouviu na barbearia. Muita conversa de adulto.
Léo Arcoverde – Seria um trecho autobiográfico?
Não. Isso é chavão tradicional. Existe até uma música: “a vida de casado é boa, a de solteiro é melhor. O solteiro vai aonde quer, o casado tem que levar a mulher”.
Vinícius Souto – Mudando o rumo, quem hoje no Brasil produz um samba de qualidade?
Há uma produção muito grande no Brasil.
Natália Mendes - Qual é boa?
Dudu Nobre, Jorge Aragão, Paulinho da Viola, Maria Rita, Euclides Amaral, Luciana Melo. O samba está sempre em evidência e todos os grandes cantores acabam cantando samba. Todos!
Vinícius Souto – Ainda é viável produzir samba de qualidade num país que tem muita gente que valoriza o lixo musical, os estereótipos?
É meio difícil. A venda hoje é em função de um plano de marketing, que deve ter investimento alto. Então, as músicas que tocam todo dia na rádio, tocam porque existiu investimento, acerto, acordo. Você não ouve a maioria dos grandes intérpretes no rádio, porque não estão lançando coisa nova. As gravadoras acham que precisam massificar a produção. Fica mais simples e fácil de torná-la sucesso. Se você massifica a música bem elaborada ela chega lá, mas massificar o mais simples é mais fácil. O alcance é maior. Hoje a produção é muito grande, no passado era difícil gravar, agora se grava CD em casa. Mas ao fazer um disco, para o parente ouvir é complicado. Você se arrisca em perguntar pra ele se já ouviu? Porque ele não ouviu. Tem muito desse problema. Todo lugar que vou, recebo quatro, cinco discos. E não posso ficar ouvindo, não fico ouvindo tudo, não sou cantor que fica garimpando músicas pra ver qual é certa. Ganho discos pra chuchu, de vez em quando tiro um dia: “hoje vou ouvir umas coisas”.
Léo Arcoverde – Às vezes ganhou o disco há cinco anos atrás e vai ouvir pela primeira vez.
Verdade. Boto ali e vou jogar paciência no computador. Se pudesse ouvir música escrevendo, faria as duas coisas, mas não consigo. Por exemplo, se eu for daqui a um lugar vendo uma bela paisagem, não posso botar música, porque se botar não vejo nada. Não sei como alguém pode estudar ouvindo música.
Vinícius Souto - O que você ouve?
Ouço o que está no ar. No carro ligo o rádio, procuro uma rádio mais diversificada. Às vezes tem alguma coisa que quero, preciso ouvir. Música folclórica, por exemplo.
Vinícius Souto – O senhor disse que há muitas diferenças em relação ao passado quanto ao processo de produção e gravação de músicas. Na sua carreira, no que essas mudanças influenciaram?
No tempo em que comecei (Festival da Record em 1967) era muito difícil. Nem vou falar do antes, porque no antes era mais complicado ainda. Existiam poucas fábricas, nem todas as gravadoras tinham fábricas de discos. Havia uma ou duas que produziam o LP. Esse material era importado. Quem importava? Eram as gravadoras. Elas que tinham que querer gravar. Com o advento do CD, grava-se com muita facilidade, não precisa ter um estúdio grande. Tendo um estudiozinho basta. Você tem uma produção musical muito grande, o que dificulta. O difícil hoje é ouvir. Aí gravei um disco, você também, todo mundo, a gravadora escolhia um disco para trabalhar, os outros ficavam de fora. Mas eu podia divulgar particularmente ou ter um divulgador, eu mesmo ir à rádio. Conseguia tocar um pouco. Hoje já não dá. É tudo padronizado. A rádio tem uma tendência musical e uma lista de músicas que o comunicador, antes chamado de disc-jóquei, não pode tocar. Se ele for amigo ele não pode tocar você, porque tem uma lista compromissada.
Não dá, porque tudo é planejado. Eu mesmo sou conhecido, para a rádio é interessante que eu vá lá. Querem que faça isso e aquilo mas não posso falar que vou na rádio amanhã dar uma entrevista, porque está tudo programado. É um problema. Tenho que ligar: “quero ir aí”. Eles falam que a rádio está aberta e tal. Mas de cara não posso ir. Tudo está marcado com os comerciais.
Léo Arcoverde – Voltando um pouco a sua infância, nasceu em Duas Barras, mas foi logo para o Rio, cresceu na Vila Isabel. Conte sua história e sua relação com a escola de samba. Faz mais de 40 anos não é?
Fui pra Boca do Mato, tinha uma escola de samba lá, depois em 1965 fui para a Vila Isabel e fiquei até hoje. Fiz nove sambas-enredo que foram para a avenida e outros tantos que não foram.
Léo Arcoverde – Lá aconteceu aquele episódio que um samba seu ficou na semifinal da Vila Isabel e o senhor não passou o carnaval no Rio.
Isso já é passado. Já estamos em outro carnaval e até agora você está falando disso?
Léo Arcoverde – O senhor tocou, inclusive, na minha cidade, Natal.
Aliás, foi muito bom. Nesse ano, o enredo da Vila Isabel é “Trabalhadores do Brasil”. Vai contar a história e as lutas trabalhistas e as ansiedades do trabalhador. É um tema complicado e interessante. Fiz três sambas pra eles, pode ser que ganhe ou não. Fui para Natal não por causa da “briga”, mas porque sou profissional da música, me chamam para fazer carnaval em várias cidades. Ficar com um samba na Vila Isabel, para mim é prejuízo. Tem que ficar batalhando por aquela coisa, trabalho triplicado, brigo com todo mundo para botar tudo do meu jeito, é uma confusão danada a troco de nada. O único troco bom que pode ter é se aquilo der tudo certinho. Se alguém me chama para tocar em Recife, Fortaleza, vou lá, prestigio um carnaval de uma cidade, ganho meu cachê, me divirto, pego informação, muito melhor. Só que escola de samba é uma coisa mais apaixonante, você lá acompanhando o samba-enredo, tem uma magia que pega qualquer um.
Léo Arcoverde – O senhor esteve em Portugal. A partir dessa viagem, gostaria que falasse da carreira fora do Brasil, e traçasse um paralelo entre os dois países.
É igual. No disco “Do Brasil e do Mundo” tem Madeleine Peyroux com uma versão em inglês. Tem a outra música inglesa, que fiz uma versão em português. A parte em inglês é cantada por Eliana Pittman. Tem uma angolana, que fiz uma versão em português. Tem uma música portuguesa que é uma marcha, entendeu? É um disco informativo também.
Léo Arcoverde – E a receptividade do público?
Show é o seguinte: se nós formos ver um artista que não conhecemos e não falamos a língua dele, mas ele está bem anunciado, tem um plano de marketing, o pessoal vai ver. Se ele for um cantor de verdade, que canta bem, com uma banda de bons músicos, as músicas forem bem harmonizadas e se o que estiver fazendo passar emoção, vai contagiar. Show é uma coisa completa, não importa o país.
Vinícius Souto – O senhor acompanha o governo Lula?
Vinícius Souto – O Lula deu essa esperança, essa expectativa?
Léo Arcoverde – E a atuação do Gilberto Gil no Ministério da Cultura?
Vinícius Souto – Matilde Ribeiro?
Léo Arcoverde – Recentemente quiseram dividir a verba de 4% (Lei Rouanet - legislação federal que permite às empresas patrocinadoras de eventos culturais um abatimento de até 4% no imposto de renda) com o esporte. O senhor acompanhou isso?
O preconceito no Brasil já diminuiu muito. Os nossos segmentos do movimento negro trabalharam muito pra isso, até para ter hoje esses ministros aí. Quase todos os Estados têm uma Secretaria voltada para inclusão social. Tudo é resultado das diversas lutas do movimento negro. No inicio o movimento negro reclamava e reclamar era perigoso. Quem era do movimento negro era mais perigoso do que quem era do Partido Comunista. “Ele é negro, deve ser comunista”. Depois foi o tempo da contestação, depois da afirmação e o Brasil hoje reconhece que tem preconceitos raciais como tem o mundo inteiro. Hoje já avançou muito. O sonho é um dia não precisar ter Delegacia da Mulher, Movimento Negro... A gente chega lá.
Natália Mendes – As cotas ajudam na diminuição do preconceito?
As cotas foram colocadas erradamente. Porque começou na universidade, tinha que começar lá em cima. No poder, no governo do Estado. Por exemplo, o governo tem que colocar mais secretários e ministros negros. Chego num banco, não tem ninguém, nem pra atender. Tinha que ser direto, mas começou nas universidades, também tem que ter, é claro. Sou completamente favorável às cotas universitárias. Porém, o caminho é outro.
Vinícius Souto – Quem, como o senhor, está nessa batalha pela igualdade?
Agora nossa luta é pela inclusão, é por ocupar postos, é pelo emprego, é lutar contra aqueles que não empregam negros. Há hotéis, geralmente, que não tem um atendente negro. Não os preferem.
Vinícius Souto – Para encerrar, o senhor acha que o Brasil consegue virar uma grande Kizomba?
Acho que não. O Brasil é uma Kizomba, no geral, mas também uma Kizumba. Porque Kizomba é um encontro de confraternização cultural, o Brasil é o país que tem a maior base cultural popular. E é uma grande Kizumba também, uma grande confusão.
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