Entrevista com Haroldo de Campos
por Pedro Maciel
“O barroco é a literatura das Américas"
Haroldo de Campos é um dos mais polêmicos intelectuais do Brasil. Traduziu tanto Dante quanto os provençais, Ezra Pound e os poetas russos, entre outros nomes da literatura. Fazendo a ponte entre modernos e clássicos, ele desempenhou um papel importante na redescoberta de poetas esquecidos como Sousândrade e na revalorização de personagens como Oswald de Andrade. Haroldo é um dos fundadores do Movimento Concretista, juntamente com Décio Pignatari e Augusto de Campos. Poeta laico não hesitou em enfrentar o desafio de traduzir o capítulo inicial do Gênesis, texto básico do Judaísmo e do Cristianismo, Bere’shith. Sem ver contradição entre “sacralidade e poeticidade”, ele estudou hebraico durante cinco anos para se desincumbir da tarefa.
Como é fazer poesia em um país em que quase ninguém lê?
É aquilo que se poderia chamar: o princípio esperança. Faz-se a poesia em um país em que a maioria não lê; e não lê por duas razões: porque faltam duas reformas fundamentais, uma de melhor e mais justa de distribuição de renda e outra agrária, mas para valer. Quando isso acontecer, sem dúvida, os auditórios aumentarão. E é esperando esses melhores tempos e semeando para aqueles que hoje podem contribuir para isso, que alguém faz poesia. A esperança, como dizia Walter Benjamin, existe por causa dos desesperados.
A poesia é uma espécie de religião natural do homem?
Quando você faz esta pergunta, eu me recordo daquela colocação magnifica... Eu que, recentemente traduzi trechos da Bíblia Hebraica e muitas vezes me via confrontando com a pergunta como é que alguém pode, do ponto de vista laico, traduzir uma obra clássica da religião tanto cristã, quanto hebraica, ou seja, o poeta laico traduzir o texto religioso. Eu dizia que entre poeticidade e sacralidade não há incompatibilidade e lembrava o grande poeta alemão, Novalis, que colocava que “a poesia é o único real absoluto. Quanto mais poético, mais verdadeiro”.
A poesia é a revelação de um mundo sagrado, profano, real, abandonado...
A poesia é a linguagem elevada a sua última potência. O poeta é aquele que é o configurador por excelência da linguagem, qualquer que seja a sua escola; o poeta clássico, o poeta romântico, o poeta simbolista ou um poeta de vanguarda, só pode ser digno do nome de poeta se ele realmente souber manipular a materialidade dos signos, aquilo que o lingüista Roman Jacobson chamava a função poética. Aquilo que faz com que a atenção do poeta se volte para a própria linguagem e saiba configurar a sua mensagem, qualquer que seja o tipo dessa mensagem. Vou dar um exemplo no romantismo brasileiro. Sousândrade é muito mais importante do que Cassimiro de Abreu e os dois publicaram as suas obras na mesma época, em torno de 1857. Sousândrade não era só um poeta romântico, era um designer da linguagem, um configurador da linguagem, seja no nível fônico, seja no nível sintático. Quando esta função lingüistica, a função poética da linguagem não é dominada pelo poeta pode acontecer que ele tenha bons sentimentos, respeitáveis idéias a transmitir, mas não conseguirá fazê-lo através de um poema.
A poesia é também tudo que poderia ter sido...
Certamente. A poesia é uma saudade, em muitos momentos, daquilo que poderia ter sido e que não foi, como dizia Manuel Bandeira. Mas ela também, muitas vezes, é uma previsão do futuro, é o resgate do passado. A poesia trabalha em várias dimensões do tempo.
Qual a importância da miscigenação na cultura, em geral, e na literatura em particular?
O Brasil é um país para o qual é fundamental a idéia de mestiçagem. Desde o começo da civilização. E aqui, é bom lembrar que a nossa literatura começa, por assim dizer, com um padre canário, das ilhas Canárias, o padre Anchieta, que escrevia em latim, português, espanhol e tupi-guarani. E um dos nossos grandes poetas barrocos, o Manoel Botelho de Oliveira, que teve em sua vida um livro publicado, A música do parnaso, tem poemas em português, latim, espanhol e italiano. Quer dizer, esta vocação, a par da sua tendência à mestiçagem e ao caldeamento racial, são características muito importantes que marcam o país não apenas do ponto de vista sociológico, como também do ponto de vista literário.
A literatura brasileira nasceu no período do Barroco.
Os exemplos são os poetas Gregório de Matos e Manoel Botelho de Oliveira. A nossa literatura não nasceu como uma criança primitiva. Ela já nasceu falando a língua mais elaborada da época, que era a língua universal do Barroco que imperava na Itália, na Alemanha, sob várias formas. O Barroco é exatamente a poesia da proliferação metafórica, do labirinto ocultista e também da miscegenação. O Gregório de Matos, como se sabe, escrevia um soneto misturando os termos portugueses, com tupi-guarani e língua africana. O Barroco, pode-se dizer, é a marca característica da literatura das Américas.
Você resgatou poetas nacionais, praticamente esquecidos, como Sousândrade e Gregório de Matos. Como o país pôde esquecer ou marginalizar poetas tão geniais?
Isso é uma característica constante não só no nosso país, mas na literatura de um modo geral. Bastaria citar, por exemplo, o caso do grande poeta alemão Hölderlin, que foi completamente marginalizado na sua época e assim tantos outros. Por exemplo, na fase do Barroco, os poetas metafísicos ingleses, que foram resgatados por T. S. Eliot, ficaram muito tempo esquecidos. O próprio Gôngora foi considerado o anjo mau da literatura espanhola. A sua obra foi reativada e ele foi redescoberto, com a geração de Garcia Lorca. O Sousândrade tem um texto muito lindo onde ele diz: “Disseram que o Guesa só seria lido 50 anos depois”. O Guesa é o nome do poema de Sousândrade e ele próprio comenta: “entristeci, decepção de quem escreve 50 anos antes”. De modo que esse é o processo da dialética da recepção. Há muitos casos da recepção de um poeta escapar da audibilidade de um tempo. O caso do Oswald é diferente, ele ficou completamente marginalizado até ser reposto em circulação nos anos 60.
O Oswald foi marginalizado por sua opção política, ou por que o país desconhecia a sua poesia?
O Oswald tinha uma coisa um pouco irônica, um pouco amarga sobre o Brasil. Ele diz que o Brasil padece de “incompetência cósmica”. Mas não foi pôr esta incompetência cósmica que ele foi marginalizado. É claro que a opção política dele contribuiu muito porque já nos anos 30 ele fez uma opção pelo Partido Comunista e lá ficou com a Pagu, só saindo do partido nos anos 50 fazendo uma crítica severa ao stalinismo na tese A crise da filosofia messiânica, em que ele criticava todos os autoritarismos. Mas, por outro lado, não podemos esquecer que o Oswald foi um tremendo polemista. Ele, às vezes, preferia perder um amigo, mas fazer uma boa piada. Embora ele tivesse pessoalmente um comportamento muito civilizado. Ele não era uma pessoa de guardar rancor, polemizava violentamente com um escritor e depois simplesmente esquecia, entregava aos céus e fazia as pazes. Foi o caso, por exemplo, de Tristão de Athaíde. Ele foi muito atacado por Oswald, na época em que Tristão era simpatizante do integralismo; depois, no final da vida de Oswald, Tristão fez uma visita a ele e se reconciliaram. Agora, sem dúvida, muitas pessoas atingidas pela mordacidade e pela virulenta polêmica de Oswald fizeram o possível para que ele fosse esquecido.
Você traduziu trechos bíblicos, a cena da origem, com o título Bere’shith. Qual a sua versão da cena da origem?
Eu traduzi, de fato, a primeira história da criação, que é o capítulo inicial do Gênesis, da Bíblia Hebraica. Estudei hebraico por cinco anos, para este fim. Traduzi os quatro primeiros versículos, do segundo capítulo do Gênesis e, além disto, traduzi um capítulo do Livro de Jó, que é o capítulo 38, onde tem a resposta de Deus a Jó e que só pode ser definida como poesia sublime. Antes eu havia publicado, dois anos atrás, um outro livro que é a tradução total do Eclesiastes ou Qohélet, que significa aquele que sabe, o sabedor. Este livro, consta de 12 capítulos e eu o traduzi na íntegra.
Haroldo, diz um um pequeno trecho do Bere’shith...
Pois não, vou dizer um pequeno trecho do Bere’shith que significa “no começar, no começo”. E dá uma explicação de como eu fiz a tradução para o português. Vou citar o primeiro versículo da Bíblia Hebraica, do Gênesis ou Thorá, que diz assim em hebraico: “No começar/ Deus criando / O fogoágua/ e a terra”. As pessoas acostumadas na tradução que diz “ Deus criou o céu e a terra” ficarão surpresas em esse meu “fogoágua”. A palavra em hebraico é shamáyim. Segundo o mais importante dos intérpretes hermeneutas do texto bíblico hebraico, Rashi de Troyes, ela é composta de duas palavras: esh e máyim, ou seja fogo e água. Achei que essa metáfora extraordinária, embutida na palavra que é abstrata, deveria ser resgatada em sua concretude e traduzida para fogoágua.
Você é um descendente espiritual da tríade de poetas, formada por Ezra Pound, Oswald de Andrade e Mallarmé?
Eu me sentiria honrado se fosse. Desejaria sê-lo, mas esta é a sua opinião. Fico muito contente que você tenha lembrado esta tríade que realmente é extraordinária na minha admiração. O meu livro Galáxias é uma espécie de poema, fica entre a prosa e a poesia, ao invés de ser narrativo, ele é visionário. Diz respeito à visão. E, de fato, entre as influências que me ajudaram na composição deste trabalho estariam desde James Joyce até Oswald de Andrade. A prosa dos dois foi muito importante, como foram importantes as estruturas narrativas de Ezra Pound.
Entrevista publicada no Jornal do Brasil, caderno “Idéias”, em 07/07/1995
Pedro Maciel é autor do romance “A Hora dos Náufragos”, Ed. Bertrand Brasil
pedro_maciel@uol.com.br
Fonte: Cronópios
quinta-feira, 10 de maio de 2007
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Postado por Música e Poesia BR às 10:18
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