quarta-feira, 30 de maio de 2007

Quem não reage, rasteja - O cinema de Cláudio Assis

Poesia em estado bruto
por Ana Paula Sousa


Protagonista Quem é Cláudio Assis, o mais atacado e bajulado cineasta do momento

Transgressor. Cláudio Assis (foto OGlobo)
À entrada do Espaço Unibanco de Cinema, em São Paulo, Cláudio Assis contempla, sozinho, o cartaz de Baixio das Bestas. Sobre o que matutava, é impossível dizer. Apesar de frases barulhentas e palavrões saltarem de sua boca feito pipoca das velhas panelas, não é simples decifrá-lo.

Assis, 46 anos, o mais atacado e bajulado cineasta brasileiro do momento, fala com tamanha verve que deixa o interlocutor atarantado. Quando não raivoso. Exatamente o mesmo efeito causado por Baixio das Bestas, em cartaz desde o dia 11, alvo de análises mil.

Dois dos melhores críticos de cinema do País, Inácio Araújo (da Folha de S.Paulo) e Luiz Zanin (do Estadão), se entusiasmaram nos respectivos blogs. “Nem sei o que dizer do filme (...). Este me parece o mais duro, mais cruel, mais conseqüente, mais infernal, mais belo dos filmes, brasileiros ou não, que entraram em cartaz ultimamente”, anotou Araújo. “Esse grande filme exige um espectador à sua altura, comovido e lúcido”, constatou Zanin.

Esta repórter viu o filme no Festival de Brasília, em novembro de 2006, e saiu da sala indignada. A sensação era de que Assis, mais do que denunciar a violência na Zona da Mata pernambucana, explorava visualmente a tragédia. As imagens pareciam perversão, cheiravam a misoginia. Difícil separar o que corria pela tela da personalidade agressiva que exibira durante uma entrevista, em 2002, sobre Amarelo Manga, seu primeiro longa-metragem. Ao mesmo tempo, era evidente a força que brotava da tela.

Houve gente que levou a ligação entre autor e obra a extremos. Na revista Piauí, um texto não assinado tachou o filme de “repulsivo, estúpido, abjeto”. O jornalista fantasma almoçou com o diretor e chocou-se: “Demonstrou os modos (estudadamente) mal-educados de um púbere mimado, pois almoçou sem tirar o boné e pontuou todas as frases com palavrões (...) Como era de se prever (em se tratando de um pernambucano macho paca) adorou o prato de carne crua”.

O preconceito embutido no texto realimentou, na internet, as discussões sobre o trabalho do cineasta. No cenário de mornidão da cultura brasileira, em que filmes vão e vêm sem que ninguém os note e autores sorriem para ficar bem na foto do jornal, Assis parece um agente desestabilizador. Pela postura e pela estética.

Ele já ameaçou bater num detrator do curta-metragem Texas Hotel (1999) e insultou Hector Babenco durante um prêmio porque o diretor de Carandiru falou mal de Lula. Foi também um dos que compraram a briga a favor da criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), atacada pelas pontas fortes da indústria de cinema e tevê.

Não por acaso, vive a dar entrevistas. “Teve uma época em que todo repórter, quando precisava de alguém para falar mal de coisas do cinema brasileiro, ligava pra mim. Acho que o chefe dizia: ‘Aquele Cláudio dá frase boa’. Agora até que passou”, diz, num raro momento em que deixa antever certo incômodo com o papel que lhe cabe. “Mas agora estou falando adoidado porque em filme de baixo orçamento você tem de aproveitar a mídia espontânea. Qualquer frase que saia, tá valendo.”

A julgar pelo que foi publicado e pelo conteúdo da primeira hora da conversa com CartaCapital, no café do Espaço Unibanco de Cinema, Assis repete frase quase como quem aperta a tecla play. “Não tenho rabo preso.” “Não faço concessão.” “O Brasil tem mania de rotular.” “Meu cinema é plugado no social.” Uma delas virou slogan: “Quem não reage, rasteja”. Ele também costuma usar a expressão “oxe” antes de uma negação.

“Oxe, eu não faço filme para ser polêmico. Ninguém é somente uma coisa. Você acha, sinceramente, que tem algo polêmico no que falo?”, pergunta, e em seguida responde. “Não tem. Só que muitos outros não falam. Mas jornalista me entrevista para falar da minha obra ou pra ver se eu uso boné? Ficar falando que eu como não sei de que jeito ou que eu bebo é reacionário, desnecessário.”

Como de discreto Assis não tem nada, freqüentadores do cinema esticavam os olhos sobre a mesa durante a entrevista. Alguns se manifestavam: “É isso aí, Cláudio! Muito bom”. Outro veio dizer que Baixio das Bestas era o único filme brasileiro de 2007 merecedor de atenção.

Apesar de perturbador, o filme é de uma plasticidade rara. Tem também cenas oníricas, como as do bloco de maracatu avançando como avançaria um vulcão. Há ainda a metáfora de um fosso sendo infinitamente cavado. Mas, e a sordidez? E o retrato de homens e mulheres tratados como seres perversos? E a violência sexual mostrada de forma bruta?

“Meu filme não é violento”, rebate. “Você pode dizer que é forte, contundente. Ele mostra coisas que a classe média não quer ver. Violento é o Bush, é o programa de tevê que bota a polícia matando adolescentes ao vivo. Eu estou mostrando uma realidade do sertão de Pernambuco. Não é chocante o que acontece no cultivo da cana? Mostrar isso é violento? Pena que as pessoas pensem assim. Aquele filme Irreversível é cult porque tem uns minutos de estupro. Aí tem os Tarantinos da vida. Eles são cult. Eu sou violento.”

Assis ataca o cinema nacional, lamenta que cineastas brasileiros sonhem com o Oscar (“Um quer filmar lá, outro quer concorrer a uma vaga pra concorrer a uma vaga para poder perder em Hollywood”) e diz que votou em Lula porque “tucano quer ser faisão”.

O cineasta gosta de contar que é pobre. A mãe era professora primária e o pai trabalhava numa usina de asfalto no Departamento de Estradas e Rodagem (DER). Mais velho de quatro irmãos, vendeu de tudo para ajudar em casa: biscuit, porta-toalha, porta-escova de dente, jogada milionária, carnê do Silvio Santos e livro. Foi também operário e cozinheiro de panelão no DER.

Do pai, herdou a mania por filmes. Passava a cartilha escolar para a filha do bilheteiro do Cine Caruaru e, em troca, entrava no cinema de graça. Aos 16 anos, com amigos do grupo de teatro da cidade, abriu um cineclube. “A gente botou tanta gente lá dentro que o dono do cinema mandou acabar com a sessão. Aí a gente teve de ir para um colégio.”

Assis rebobina rápido a vida. Dos 16, salta para os 20 anos, quando foi fazer faculdade (jamais concluída) e movimento estudantil no Recife. À época, correu periferias exibindo filmes como Braços Cruzados, Máquinas Paradas, de Leon Hirzman. “Teve um momento em que eu disse: não faço mais nada que não seja arte em movimento.” Vieram então os curtas-metragens feitos por paixão, os documentários televisivos e os vídeos institucionais feitos para o bolso. Tinha virado diretor.

“Sempre tive vontade de fazer arte. Quer dizer, nem sabia que era arte. Mas quando era pequeno, eu ficava na piscina e, quando passava um avião, pensava: quero ser como esse avião”, diz, deixando antever os sonhos que a rispidez cobre.

Depois de duas horas de conversa, é mais fácil adivinhar Assis e Baixio das Bestas. Ele repisa a certeza de que está contribuindo para uma tomada de consciência e declama versos da própria lavra (Homens velhos estão rindo/ Morrendo dia a dia/ Com seus sorrisos banguelos/ Que mais parecem agonia...).

Por que a agressão, a vida meio marginal? “Você tem de abrir portas. Ninguém dá oportunidade pra ninguém, meu bem. Eu já me senti invadindo uma festa. Nego olha pra mim, mas eu digo: ‘Eu vou na sua festa, vou tomar seu uísque’. Vivemos numa sociedade exclusivista. Você tá pensando que é fácil?”

Casado com Julia Moraes, neta de Vinicius de Moraes, Assis, que vive entre o Rio e Olinda, tem um filho de 3 anos e outro de 18. Diz que sonha com uma vida um pouco mais fácil para eles e deixa o olhar perder-se. “Se pensar muito, você fica melancólico. Você vai morrendo um pouco a cada dia que vê o quanto é difícil mostrar um filme. O jornalista também não pode ser o jornalista que ele quer. Aí todo mundo sofre. Que dignidade é essa que dizem que eu não tenho? Onde está essa dignidade que eu não sei? Na demagogia? No fim, é como diz o poeta: ‘Quem tem o mel, dá o mel. Quem tem o fel, dá o fel. Quem nada tem, nada dá’.”

Fonte: CartaCapital

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