quarta-feira, 16 de maio de 2007

Ronnie Von em reportagem da CartaCapital

Leia abaixo a reportagem sobre Ronnie Von que está na revista CartaCapital desta semana (16 de Maio de 2007 - Ano XIII - Número 444). Aproveite e baixe os dois volumes de Tudo de Novo - Tributo ao Ronnie Von que o Música&Poesia disponibiliza, desde o dia três de maio, aqui no blog. Esta edição de Carta Capital pode ser adquirida nas bancas.


Pobre menino rico
por Pedro Alexandre Sanches

Os jovens descobrem os rocks de Ronnie Von, enquanto ele se distrai com um programa de variedades na tevê aberta

A Jovem Guarda foi um movimento musical ultracomercial desenvolvido nos anos 60 por jovens pobres, suburbanos ou interioranos, culturalmente desinformados e politicamente alienados, certo? Mais ou menos. Perdido nas malhas do “reino” governado por Roberto Carlos, havia ao menos um rapaz oriundo de família rica, filho de diplomata, formado em economia, admirador de jazz, bossa nova e música erudita. Ronnie Von era o nome artístico dele.

Mais de 30 anos depois da estréia como cantor de iê-iê-iês dos Beatles traduzidos para o português, Ronaldo Lindenberg von Schilgem Cintra Nogueira toca em frente a carreira de publicitário (é dono de uma agência) e vive afastado da criação musical. De herança dos tempos da Jovem Guarda, quando cantava e apresentava programas televisivos movido pela pinta de galã, mantém contato direto com o público de segunda a sexta, na tela da Rede Gazeta.

O programa Todo Seu liquidifica um perfil popular com certas pitadas de sofisticação e sem as apelações habituais. Pesquisas mostram que cerca de 70% dos espectadores pertencem às classes A e B, assim como o apresentador, um fluminense de Niterói que mora em uma mansão no bairro paulistano do Morumbi.

O dado simultâneo de conflito e aproximação espontânea entre camadas sociais distantes é uma constante na história de Ronnie. Ele se lembra de quando a família descobriu, ouvindo no rádio o programa Disco Estrelinha, que o jovem herdeiro havia virado cantor.

“Minha tia-avó convocou uma reunião familiar, o tom era ‘onde foi que nós erramos?’, ‘criamos uma cobra para nos picar’, ‘esse menino vai colocar nosso nome na lama, nesse ambiente promíscuo’...”, lembra. “Outras famílias tinham os filhos envolvidos com bossa nova, e estava tudo bem. Comigo não teve acordo, saí dali arrasado. Vim para São Paulo, com a mão na frente, a outra atrás. Fiquei num hotelzinho discutível na praça Júlio Mesquita, com moças de vida difícil, rufiões, policiais.”

Convertido em sucesso instantâneo, conheceu o que hoje chama de “preconceito às avessas”. “Comecei a ouvir textos no rádio, ‘esse filhinho de papai está ocupando o lugar de alguém que precisa’. Eu tinha cara de quem acabou de sair do banho, era pior ainda. Diziam que eu era ‘o usurpador do trono do Rei’. Aconteceu essa segregação e essa realidade, eu nunca participei da Jovem Guarda.”

Tampouco os amigos de juventude e colegas de “música brasileira ortodoxa” o pouparam. “Meus pares da esquerda não aceitavam aquela ‘música de alienados’ feita com ‘instrumentos eletrônicos’. Minha amiga Elis Regina dizia: ‘Você ficou louco? O que está fazendo com esse bando de cabeludos?’ É um ambiente muito cruel, muito duro. Fui considerado menor a vida inteira. E foi preciso a molecada da garagem para redescobrirem o que fiz.”

Refere-se ao fato de que se afastou da música há dez anos, mas a música não parece querer se afastar dele. À revelia, um Ronnie Von surpreso testemunha o interesse crescente de jovens roqueiros de perfil independente e experimental pela obra inconseqüente que criou, sobretudo no intervalo entre 1968 e 1973.

O resultado mais recente do interesse é o Tributo ao Ronnie Von, que a jornalista Flávia Durante dirigiu de modo independente, com bandas recrutadas numa comunidade de devoção ao cantor no Orkut. Sem edição tradicional em CD por enquanto, o projeto está disponível na internet (www.ronnievon.blogspot.com), para download exclusivo e gratuito. O tributo virtual reúne 30 bandas em recriações dos rocks e baladas da chamada “fase psicodélica” de Ronnie. Já rendeu mais de 15 mil downloads. Ou seja, tem sido mais consumido que a grande maioria dos discos brasileiros em circulação no mercado tradicional.

“Procurei a discografia dele na internet e me apaixonei perdidamente”, conta Flávia. “Alguns dos participantes são realmente fãs, vários com histórias curiosas, como a Royale, de Piracicaba, cujo vocalista não se chama Ronaldo à toa: a mãe era fanática pelo Ronnie.”

Grande parte do culto atual ao artista se origina de Ronnie Von, gravado em 68 com o maestro erudito Damiano Cozzella e recém-relançado em CD pela gravadora Universal. Era um disco de humor não só psicodélico (nome que se dava à época ao rock feito supostamente sob o efeito de drogas alucinógenas), mas também tropicalista, sem que o autor tivesse muita consciência disso.

Malsucedida em termos de vendagens, a “fase psicodélica” espremeu-se entre duas outras, de apelo fortemente comercial. Entre 1966 e 1967, Ronnie firmara a imagem de “pequeno príncipe”, com sucessos como A Praça, de Carlos Imperial, também descobridor de Roberto Carlos. De 1977 em diante, virou ídolo romântico com baladas radiofônicas como Tranquei a Vida (1977) e Cachoeira (1984).

“Quem dizia o que eu tinha de cantar era o departamento de marketing da gravadora. Cantava o que mandavam, se o diretor dizia ‘vai por aqui’ eu ia. Até hoje, na tevê, é assim. Eu me deixo envolver, não tenho personalidade forte o suficiente para me insurgir, dizer ‘não, eu não quero’. Quanta bobagem eu fiz na vida. Errei muito mais que acertei”, auto-avalia.

Mas Ronnie Von também marcou alguns gols. Foi ele, por exemplo, quem impulsionou a primeira banda 100% original de rock brasileiro, os Mutantes de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias.

Assim ele se lembra do episódio: “Eu só tinha uma ligação mais forte com os Mutantes. Dei o nome ao grupo, levei para meu programa na Record, O Pequeno Mundo de Ronnie Von. Muitos anos depois, fiquei sabendo que fui contratado para ser anulado, para não concorrer com o Jovem Guarda (o programa de Roberto Carlos na Record). Não havia elenco, éramos só os Mutantes e eu. Tocávamos o lado A de Revolver (disco de 1966 dos Beatles), intervalo comercial, o lado B de Revolver, pronto”.

No mesmo embalo, foi criado o álbum Ronnie Von Nº 3 (1967), um dos primeiros balões-de-ensaio para o lançamento da Tropicália. “Foi o maior fracasso da minha vida, quebrou minhas duas pernas. Ninguém comprou, foi devolvido à gravadora”, avalia. Os arranjos eram do maestro Rogério Duprat. Os Mutantes e os Beat Boys, futuras bandas tropicalistas, o acompanhavam. Nenhum desses nomes constava dos créditos do disco, apenas o do então iniciante Caetano Veloso, como compositor e vocalista da faixa Pra Chatear.

“Não aparecia o nome de ninguém, não sei por quê. Perdi completamente o contato com Rita Lee. Convidei 36 vezes para ir ao meu programa, não sei se ela não gosta de mim”, lamenta. “Eu não sou chegada em programas de tevê. Dia desses a gente junta a creche e faz um piquenique”, Rita responde.

Algo parecido aconteceria em 1981, quando ele gravou Visagem, de Fagner e Fausto Nilo. “Tecnicamente, é a canção mais bem gravada da minha vida, com arranjo de Cesar Camargo Mariano. Não aparece o nome dele, a mesma história de novo.”

De modo geral, profissionais de renome pareciam se envergonhar de imprimir a assinatura lado a lado com a de Ronnie Von. Àquela altura, ele já andava imerso na onda dita “romântica”, ou “brega”.

Diz que se sentiu alijado e viveu situações de humilhação por conta da segmentação vigente. “Eu comungo dos mesmos ideais dos formadores de opinião, leio o que eles lêem. Mas acham que no ofício deixo a desejar. Quando é assim, você nem se olha no espelho. A pior luta do homem é a luta com ele próprio.”

A zona máxima de confusão entre tantos valores se deu nos impopulares discos confusos por excelência, que misturavam Tropicália, rock rural, canções de Tom Jobim, Ivan Lins e Zé Rodrix, utopia pan-americana, até um ponto de umbanda levado na guitarra (Cavaleiro de Aruanda, do argentino Tony Osanah, dos Beat Boys).

São essas as canções que seduzem o público roqueiro jovem de 2007. Aqui, os músicos de agora sublinham a empatia pela inconsciência do “pequeno príncipe”, como relata o entusiasta Leonardo Bonfim, um dos participantes do tributo virtual: “Eu pirei completamente no disco de 68. Acho um dos melhores discos psicodélicos de todos os tempos”. No Japão, o LP tropicalista chega a ser vendido por 1,8 mil dólares.

Aos 62 anos, o pobre menino rico do iê-iê-iê assiste à movimentação como um espectador incrédulo e algo distante. Talvez seja esse, desde sempre, um retrato fiel dele e da música pop que tentava fazer, ao comando dos departamentos de marketing, para o “povão”.


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