quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Vinicius de Moraes, o boêmio incurável

Bendito vagabundo
Zuenir Ventura

Eu ainda estava sob o impacto do que acabara de assistir em Campo Grande, Mato Grosso do Sul - a apresentação de um extraordinário violonista chamado Marcelo Loureiro - quando dois jovens me abordaram na saída perguntando se eu por acaso havia conhecido Vinicius de Moraes. Respondi que sim, e eles então pediram que eu contasse algumas histórias do poeta. Era um pouco de curiosidade, mas também um pouco de dúvida: “será que ele conheceu mesmo?”.

Enquanto íamos caminhando, tentei me lembrar de algum caso interessante, mas quase todos os que me vinham à cabeça eram impróprios para menores. Até que me lembrei de um episódio ocorrido no Festival de Cannes, que eu não digo o ano para não permitir a identificação das personagens envolvidas. Depois de uma sessão de cinema, fomos parar no cassino, um grupo de brasileiros comandados por Vinicius e sua mulher de então, uma das nove que ele teve.

Distantes do grupo, nós dois estávamos sentados em bancos altos tomando uísque no balcão do bar, quando se deu o incidente. De costas para a cena, ouvi primeiro um estalo seco, quase metálico; depois, os gritos femininos: “sua p..., p... é você”. Antes de me virar, vi a cara de susto do poeta e seu apelo: “me ajuda, Zuenirzinho”. A sua capacidade de reduzir tudo a um diminutivo era tanta que até em meu nome, que não se presta a esse acréscimo carinhoso, ele conseguia botar um zinho.

Virei-me rápido, saí correndo atrás dele, mas ao chegarmos à roda que então se formara, as duas damas já tinham sido devidamente apartadas e estavam contidas pela turma do deixa-disso. Soubemos então o que acontecera: num ímpeto de ciúme, a mulher do poeta agredira com um estridente tapa uma outra jovem brasileira que fora conosco ao cassino. Quando voltamos para os nossos banquinhos, devo ter olhado com suspeita para Vinicius, porque sua reação foi imediata: “não olha assim pra mim não, Zuenirzinho, dessa vez eu estou inocente!”.

Não faz muito tempo encontrei a agressora. Não foi a primeira vez, mas só então tomei coragem de perguntar sobre aquela distante saia-justa: quis saber se ela não tinha exagerado no surto, se havia mesmo razão para tanto ciúme, se não sentira vergonha do vexame naquela festiva madrugada de Cannes. Confessou que, claro, ficava constrangida até hoje quando se lembrava do incidente, mas ainda acha que teve razão. Quando lhe contei a declaração de inocência que eu ouvira, ela riu: “em matéria de mulher, você não sabe do que era capaz o Vinicius”.

Por uma dessas coincidências que muitos dizem não existir, cheguei de Campo Grande no dia em que Miúcha ia lançar o seu excelente CD “Vinicius & Vinicius”, cantando as músicas que Vinicius fez sem parceiros, sozinho, como autor de melodia e letra. Havia na Modern Soud de Copacabana algo que lembrava o poetinha não apenas pelas filhas e amigos presentes, mas também pelo clima do lugar, uma mistura de loja de disco e de bar-restaurante que hoje ele poderia freqüentar (aliás, uma das presenças mais animadas e animadoras da festa era Maria Amélia. Aos 94 anos, ela foi lá prestigiar a filha e homenagear aquele que foi um dos melhores amigos dela e do marido, Sérgio Buarque de Hollanda. No final, em pé no meio-fio com sua bengalinha, fazia sinal para um táxi).

Não sei se Vinicius teria igual disposição com 90 anos, que é com quanto ele estaria agora. Com restrições, acho que ele não sobreviveria. Preferi ficar me lembrando do boêmio incurável que nunca teve vergonha ou culpa de beber; ao contrário, exibia em público o seu vício, levando o copo de uísque para onde fosse, inclusive para o palco, como um violão. Ele foi o artista que tirou a bebida da clandestinidade.

Na biografia amorosa que escreveu sobre o amigo, o poeta Geraldinho Carneiro lembra os versos que o cronista José Carlos Oliveira fez para serem cantados com a cândida melodia de “Nessa rua, nessa rua tem um bosque”:

“Se eu tivesse, se eu tivesse muitos vícios
O meu nome deveria ser Vinicius
Se esses vícios fossem muito imorais
Eu seria o Vinicius de Moraes.”

Na verdade, mais do que imoral, Vinicius foi amoral, no sentido de que ele mesmo elaborava seus códigos de conduta, se é que tinha algum. Poucas pessoas viveram a vida com tanta liberdade, despudor e prazer. E poucos poetas foram tão sensuais, tão capazes de cantar o amor carnal com tanto lirismo. Seus sonetos sobre o tema podem figurar numa antologia ao lado dos de Camões.

Acho que foi o próprio Geraldinho que disse uma vez que Vinicius tinha a coragem de rimar amor e flor e ainda assim fazer boa poesia. Me lembrei disso ouvindo Miúcha, cuja voz está cada vez mais delicada e parece feita para cantar os amores e desamores do amigo. Que outro poeta teria coragem de incluir em sua “Serenata do adeus” esses versos de um romantismo tão descabelado: “Ah, mulher, estrela a refulgir,/Parte, mas antes de partir/ Rasga o meu coração,/ Crava as garras no meu peito em dor/ E esvai em sangue todo o amor,/ Toda a desilusão”.

Geraldinho lembra que detratores como o marechal Costa e Silva e apologistas como Toquinho e Chico Buarque chamaram Vinicius de vagabundo. “Tudo bem. Na falta de melhor morada, Vinicius fez do entre-lugar da boemia a sua pátria de eleição.” Bendito vagabundo.

Fonte: Saite oficial de Vinicius de Moraes

Publicado originalmente no saite no mínimo, no dia dois de dezembro de 2003. No mínimo, por infelicidade (falta de patrocínio mesmo), teve sua redação definitivamente fechada neste primeiro de agosto do presente ano.

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