domingo, 22 de julho de 2007

Autor de O Cheiro do Ralo em entrevista

Entrevista com Lourenço Mutarelli
por Beatriz Leal


Lourenço Mutarelli diz que usava o nanquim de seus desenhos para se defender, como fazem os polvos. Mas em 2002, após nove livros de quadrinhos, o desenhista resolveu trocar o nanquim pelas palavras e lançou seu primeiro romance: O Cheiro do Ralo, que deu vida ao filme de mesmo nome. Depois deste nasceram ainda mais dois: O Natimorto e Jesus Kid. Lourenço Mutarelli dos quadrinhos, da literatura e do cinema – ainda atuou em O Cheiro do Ralo -, também escreve peças de teatro. A voz metálica que sai do viva-voz fala sobre caos da cidade grande, sobre cultura brasileira e sobre as parcerias com Marçal Aquino e Heitor Dhalia, respectivamente roteirista e diretor de O Cheiro do Ralo.

O que influencia mais as suas obras? O contexto político, econômico e social ou a sua individualidade?
Eu acho que a minha individualidade; o aspecto mais psicológico das pessoas em geral. Muito de mim, mas não só de mim. Do que eu observo, do que eu vivencio, de muita observação. Eu estudo muita psiquiatria e algumas outras coisas assim que eu gosto e em geral isso me ajuda muito... para diagnosticar primeiro, para depois criar um personagem.

Que autores tiveram influências nas suas obras, tanto literárias como de quadrinhos?
Literárias pra mim as primeiras grandes influências foram Kafka, Dostoiévski, Machado de Assis e Augusto dos Anjos. Literárias acho que foram essas minhas experiências fortes. Nos quadrinhos foram Will Eisner e muito do quadrinho argentino Muñoz e Bretcha... algumas pessoas do quadrinho argentino me influenciaram muito.

E das suas outras influências literárias, como Kafka e Dostoiévski, você as detecta nas obras de outros autores contemporâneos, como Marçal Aquino, Patrícia Melo ou Daniel Galera?
Olha, eu tenho um problema grave assim, que há mais de dois anos eu não leio ficção. Eu tenho estudado um assunto e tenho dedicado todo o meu tempo de leitura a esse assunto. Então, desse pessoal mais novo eu só li Marçal. Eu conheço essas pessoas, mas eu nunca li nada deles, por uma questão de administrar meu tempo. Então eu não posso opinar muito sobre várias pessoas. Eu acho que o que o Marçal tem forte, que é quem eu conheço mais pessoalmente, conheço mais o trabalho, é o impacto que a gente recebe vivendo em uma cidade como essa (São Paulo), não tem como isso não refletir no nosso trabalho. Por menos que a gente pense ou racionalize essa cidade, inconscientemente isso reflete no nosso trabalho.

Talvez por isso este realismo, predominantemente o urbano, seja uma das formas literárias mais comuns nas obras de Marçal Aquino e na sua também...
Eu acho que, no Marçal ainda tem o jornalismo policial e tudo, né, que você acaba vendo uma outra faceta que não é assim como eu vejo uma família de policiais, então eu ouvia sempre umas histórias... É mais um mundo cão, é mais por trás dessa maquiagem que tenta vender a cidade, a grande metrópole, que tem um olhar que só atrai o turista mesmo, quem está aqui acaba tendo uma ótica muito diferente.

Mas Brasília é incrível, né, Brasília é incrível. Incrível não de maravilhosa, mas assim, a primeira vez que eu fui aí fiquei muito impressionado. Achei que eu estava em uma cidade universitária, que estava numa USP grande, né? É muito distante. Quando a gente é aqui do caos essa coisa muito ordenada, não sei, soa muito... ela não parece uma coisa natural para mim, então tenho um estranhamento. Mas eu tenho amigos aí, é um lugar em que gosto muito das pessoas, as pessoas acolhem muito bem a gente.

A linguagem noir, de autores como Dashiell Hammett, Raymond Chandler ou até Quentin Tarantino exerce alguma influência na literatura, quadrinhos e cinema contemporâneos no país?
Eu acredito que sim, mesmo que a pessoa não tenha lido nada disso. Isso influenciou tanto a cultura, né? Isso está tanto nos filmes que a gente assistiu que a gente acaba se impregnando. Acho que, depois de um modismo que teve muito forte dos filmes de western, o Marçal tem uma seqüela aí que eu acho bem interessante. Acho que veio isso do romance noir mesmo. Acho que esses autores influenciaram demais a cultura num momento em que ela se massificava pelo rádio e televisão. Isso está muito enraizado na gente.

Há elementos em sua narrativa e em seus desenhos que você considera como fatores de ruptura lingüística e temática?
Eu costumo falar que eu desenho e escrevo não como eu quero, mas como eu consigo. Se eu inovo em alguma é porque eu não consigo fazer direito. Eu não tenho essa pretensão e nem esse pensamento quando estou fazendo alguma coisa. Ela sai mais ou menos do jeito que me agrada e do jeito que ela vai fluindo... Tudo que eu faço é experimental, eu faço como uma experiência. Então eu não estou preocupado se eu vou agradar, se eu vou ser aceito ou não. Eu faço pela experiência. Acho que isso talvez, somado ao fato de eu não conseguir fazer uma coisa mais formal, acho que acaba criando o que pode determinar um estilo, talvez. Mas não existe essa intenção, entende? Ela acaba acontecendo talvez por isso, porque eu me permito experimentar. Tentar fazer do meu jeito, com o que eu tenho nas mãos.

Qual é a importância da interação entre formas de arte diferentes (literatura, cinema, teatro, quadrinhos...) para a cultura de modo geral?
Eu acho que é fundamental pra qualquer... acho que o grande problema dos quadrinhos no Brasil, é que a maioria das pessoas que fazem quadrinhos só bebem os quadrinhos, diretamente, pelo menos. E eu acho fundamental a gente estar aberto ao teatro, ao cinema, literatura, quadrinhos... eu acho importante perceber as diferenças e as semelhanças que existem entre essas formas de comunicação e de expressão.

A mistura tem dado resultados interessantes, né...
Eu acho bastante interessante e acho que é quase... é cada vez mais difícil que não haja essa interação, né? Eu acho que cada vez mais a gente abre os olhos e experimenta e mistura possibilidades, porque cada vez a gente tem mais recursos pra isso.

Quais são as diferenças no diálogo entre autor e espectador dos livros para o cinema para os quadrinhos?
A minha primeira experiência marcante de diferença entre quadrinho e literatura, a única grande diferença é o respeito com o que você é tratado fazendo uma e outra coisa. Existe um abismo de diferença de tratamento que você recebe, mas não pelo leitor imediato. Você não tem um retorno imediato. O meu primeiro retorno imediato que tive foi com a minha primeira peça de teatro, que como minha cara não é conhecida, eu fui algumas vezes assistir a peça e eu podia ver tudo o que funcionava ou não funcionava, eu tinha uma resposta imediata. Isso variava com a platéia, mas eu sempre tinha uma resposta imediata. Eu nunca tinha experimentado esse retorno tão direto. Isso foi muito importante pra mim, foi muito prazeroso vivenciar essa experiência. No cinema você tem isso de uma forma semelhante, embora o filme demore tanto pra ficar pronto que, quando fica pronto, você não agüenta mais ver nem ouvir falar e aí você não acaba vivenciando muito. Eu vivi muito pouco isso, só nos festivais eu senti o público reagindo ao filme, mas aí é um público diferente porque é um público de festival.

Como você enxerga a relação entre produção artística e a indústria de distribuição cultural?
Eu acho que isso depende. No geral, é tudo muito mal distribuído. Acho que acaba, se você persiste fazendo seu trabalho de alguma forma, você vai arrebanhando pessoas que descobrem seu trabalho, e acabam indo atrás, que acabam sendo independentes dessa distribuição. Esse agrupamento acaba ajudando você, por outro lado, a ter uma distribuição um pouco melhor. Mas acho muito mal distribuído, embora existam entidades e experiências que são bastante positivas. Se não fosse o Sesc, e outras iniciativas privadas... por mais que isso seja limitado, acho que isso possibilita a viabilização de muita coisa, indiretamente.

Nina é um filme mais complexo e elaborado. Qual a importância de produções com este tipo de linguagem, na contramão dos temas mais recorrentes, para a cultura brasileira?
Eu entrei no Nina, porque eu achava... isso é culpa do Heitor (Dhalia, diretor), né... é muito a visão do Heitor mesmo. E gostei justamente por isso. Embora eu também ache que outras formas... também é legal você experimentar coisas que estão se repetindo e você tentar dar um pouco da sua cara ou da sua visão, até pra quebrar um pouco essas coisas que se repetem. E o Nina tem toda uma concepção, que eu acho que no fim das contas ele não alcançou, como geralmente não alcança, o objetivo. Mas ele foi uma experiência muito estimulante e muito interessante. Eu só acho que o resultado ficou aquém do que a gente vislumbrava durante o processo. Para mim, pelo menos. Minha opinião pessoal, assim... Quando o filme começou a ser montado, ele começou a ser montado de tantas formas diferentes e por estar muito envolvido eu tinha já uma concepção do que seria. Eu estranho, pra mim causa um estranhamento, o corte final do filme. Eu achei que ele tinha uma outra direção que me agradava mais.

Quem tem acesso somente ao produto final dificilmente percebe isso...
Essa é uma grande vantagem também, porque você recebe aquilo que é pronto e você não tem esse sofrimento todo da expectativa ou dos desvios de curso, né? Eu acho que o Nina para mim tem isso. Foi um filme difícil de realizar, teve muito problema no meio, então, de qualquer forma, eu acho um grande mérito e uma grande coragem ter sido feito, justamente por ser totalmente na contramão do que se fazia.

Como foi fazer parte d’O cheiro do ralo, com as peculiaridades que o filme apresenta em financiamento e produção?
A princípio, eu sempre quis ficar distante, eu não queria me envolver no processo, porque desde o começo eu achava que o mais interessante para mim era ter esse outro olhar, a adaptação mesmo. Mas eu acabei fazendo, tendo que ajudar. Quando o Selton não podia fazer teste com elenco, eu acabei fazendo alguns testes no lugar dele e ele acabou me convidando pra fazer um personagem e foi muito bom pra mim, foi muito divertido, mas eu tentei não interferir em nada. Quem opinava era o Heitor e o Selton. Quando alguém me perguntava eu falava que não sabia de nada, porque eu fiz o livro e isso era o filme e são coisas totalmente diferentes. Mas foi um set totalmente... muito bacana, muito passional, a gente tinha uma relação muito boa, foi uma união muito grande, foi muito divertido, muito prazeroso participar do processo.

Mas, e no que diz respeito ao orçamento, muito mais baixo do que o usual? Você já deve até estar meio cansado desse tipo de pergunta...
(risos) Não. Eu acho que isso talvez tenha propiciado esse clima tão agradável, porque todo mundo que estava lá, estava lá porque gostava do projeto. Ninguém estava lá por dinheiro. Todo mundo estava cedendo seu trabalho, abrindo mão de receber ou trocando isso por uma participação no futuro. Então as pessoas estavam lá por paixão mesmo. E isso refletia muito no ambiente. Ninguém estava lá porque ia ganhar dinheiro, não era essa a idéia. Então, todas as pessoas que entraram ou gostavam do livro ou gostavam do projeto ou gostavam do Selton ou do Heitor. Tinha sempre uma relação afetiva com o que estava sendo feito. Então o fato de ter sido feito da forma que foi feito, acho que é um exemplo de que isso pode acontecer. O Heitor fala isso, que não é o ideal, porque senão chega uma hora em que as pessoas que colocam dinheiro e que se juntam e tal não vão ter mais dinheiro pra fazer nada, mas era a única forma do filme acontecer, então eles optaram por fazer. Mas eu não participei de nada dessa relação de produção ou financeira, eu ouço as histórias mais ou menos como vocês ouvem, meio indiretamente.

Legal mesmo é a idéia de parceria entre as pessoas para realizar um projeto...
Isso eu acho muito legal e acho que isso acabou criando um clima muito favorável. E que, de alguma forma, as pessoas do cinema falam isso e parece que tem uma verdade, esse clima parece que fica impresso no negativo, sabe? É uma coisa que, sei lá, talvez o filme vá bem até por isso também, porque é isso: tava todo mundo junto, se divertindo e afim de fazer. O filme ia sair com duas cópias... no fim saiu com 17, e foi muito bem de público.

Como passou a trabalhar com Heitor Dhalia e qual é a importância de parcerias como estas para a produção cultural do país?
Acho que a importância disso a gente não vai conseguir perceber agora. Se esse filme ficar, perdurar, ou se for uma tendência a possibilitar outros, daqui a um tempo a gente vai saber a importância disso. Eu não sei até que ponto isso é importante ou isso é importante só para as pessoas que estão envolvidas, eu não sei qual a relevância disso. Na minha parceria com o Heitor a ponte foi justamente o livro O Cheiro do Ralo. Ele me procurou pra comprar os direitos, aí ele acabou conhecendo meus quadrinhos, e ele estava na pré-produção do Nina, e me convidou pra fazer os desenhos. Foi uma parceria muito boa, foi muito bom trabalhar com ele, foi uma experiência legal. A gente tem muita identidade, mas ao mesmo tempo a gente tem muita diferença. Acho que a nossa parceria foi isso, não sei se a gente faria uma parceria no futuro, eu acho muito difícil isso acontecer.

E com o Marçal Aquino, como foi?
O Marçal participou do primeiro almoço, quando eu conheci o Heitor, ele indicou o livro para o Heitor ler. Ele é uma pessoa... eu adoro o Marçal, ele é uma pessoa extremamente gentil e divertida que eu gosto muito de encontrar e eu tenho uma afinidade muito grande com ele, uma gratidão imensa por essa generosidade de ele estar... a literatura em geral me recebeu muito bem, muito de braços de abertos, e o Marçal é um grande exemplo disso pra mim, é uma pessoa que gosto muito, muito mesmo, é uma pessoa que eu tenho um afeto muito grande. E ele participou, a gente se encontrou, ele participou do primeiro almoço. Ele fez de certa forma essa ponte e a gente ainda se encontrou algumas vezes os três, e aí depois ele seguiu os dois trabalhando a adaptação. Eu não participei da adaptação.

O que as obras destes artistas, como Marçal Aquino, Beto Brant e Heitor Dhalia, trazem de inédito para a cultura brasileira?

É essa coragem de tentar fazer o que eles querem, o que tem a ver pra eles, não por dinheiro, mas, enfim, por um ideal, mais por aquilo que eles querem fazer, né? E acabam fazendo coisas diferentes, o que é ótimo. Eu acho que esse é um valor pra cultura, é a diversidade, é mostrar que o Brasil não é só o sertão. O Brasil, e muito São Paulo também, é uma mistura de muitas coisas, de muitas culturas.

Então, com essa relação temática – essa história de quebrar um pouco o sertão e trazer mais o urbano – e a relação lingüística que os filmes têm com os livros, o conjunto lingüístico-temático pode trazer uma quebra no que já existe de cinema brasileiro, uma ruptura, no cinema e na literatura?
Eu acho que vem acontecendo e acho que isso acontece mesmo no Cinema, Aspirinas e Urubus, ele mostra a realidade que a gente conhece, mas por uma perspectiva e com uma delicadeza que eu acho muito nova. Acho que mesmo que você fale de coisas que estão sendo ditas, se é um olhar um pouco mais sensível, eu acho que isso traz uma contribuição. A afinidade que existe entre o nosso trabalho e que acaba refletindo nas nossas pessoas, eu, pelo menos, penso que cada uma dessas pessoas fazendo seu trabalho, não pensando "ah, eu vou mostrar isso", mas pensando na sua realidade, no que ela vive, no que ela vê e tenta mostrar, dividir isso... não sei se existe um, pelo menos da minha parte não existe, um dogma ou "ah, eu vou mostrar isso porque isso não está sendo mostrado", não. Eu vou falar isso porque essa é minha língua dentro desse país, então eu acho que é mais ou menos isso. Uma questão de você impor, de certa forma, através do seu trabalho, sua identidade.

Pra quem olha de fora, o que parece é que não há a intenção de se fazer algo necessariamente novo, mas que está sendo feito...
Isso acaba trazendo o novo, gerando o novo. Eu acho que o novo não nasce com a intenção de ser novo. Ele nasce com sinceridade e com experimentação e com pessoas que de repente tentam realizar o seu trabalho contra a corrente e não encontram uma forma de produzir isso, de uma forma fácil ou com parceiros grandes. Então elas se juntam e fazem o seu trabalho, que foge porque as grandes produções visam o que dá certo. Elas vão martelar nessa tecla porque dá certo e nunca vão arriscar. E elas devem começar a arriscar agora, por exemplo, quando surge uma coisa diferente, que dá um resultado, e esse resultado é financeiro, é um resultado de bilheteria ou de uma massa, de atrair uma massa de público, aí eles começam a se pautar nesse tipo de coisa pequena que aponta o caminho e aí eles começam a investir um pouco. Então isso acaba refletindo através de experiências corajosas... Porque, para mim, fazer um livro não custa nada. Mas para se fazer um filme custou... Essa parceria é um trabalho muito maior, que por outro lado atinge um número de pessoas multiplicado à potência, né?

Dos filmes roteirizados pelo Marçal Aquino O Cheiro do Ralo parece ter dado mais resultado, né?
O Invasor parece que tinha dado uma bilheteria legal... não tenho certeza se foi 100 mil, ou alguma coisa assim, mas parece que O Invasor teve um, eu nem sei se a venda foi o cinema ou se foi DVD ou VHS. Eu sei que foi um filme que foi muito bem aceito, sei lá, acho que tinha uma novidade, um frescor ali que acabou atraindo, talvez isso indiretamente encoraje outras pessoas a fazerem... então, talvez o primeiro que fez um e não foi tão visto ou tão aceito, encorajou o outro a fazer um outro que vai seguir uma trilha que já começou a ser aberta de alguma forma, mesmo que outros tenham menos visibilidade.

Se é que esses artistas apresentam uma linguagem cultural inédita, como você denominaria essa nova vertente?
(risos) Puxa vida... Eu não tenho a menor idéia. Eu sou muito ruim com conceitos e rótulos assim, eu não sei dizer... Não sei mesmo que nome eu daria.

*Esta entrevista também foi publicada em o balde e em formato editado no jornal Esquina do UniCEUB.

Fonte: OverMundo

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