domingo, 22 de julho de 2007

Não sabe o quanto a alegria dela me faz sofrer...

A CIDADE ADORMECIDA (Rubem Alves)

Sei que as intenções dela são boas. Ela não faz por maldade. Faz por alegria. Mas não sabe o quanto a alegria dela me faz sofrer... Colocou na porta do seu apartamento um calendário regressivo anunciando quantos dias faltam para o Natal. Ela se alegra por antecipação...

Para mim é o contrário. O que sinto, não sei se é tristeza ou irritação. Não é que eu não goste do Natal. A minha tristeza e irritação acontecem porque amo o Natal. Sei que isso deve estar confuso. Preciso explicar esse paradoxo. Vou me valer de uns versos do poema de Cassiano Ricardo, "Você e o seu retrato".

"Por que tenho saudade / de você, no retrato, / ainda que o mais recente? / E por que um simples retrato, / mais que você, me comove, / se você mesma está presente?"

O resto do poema são variações sobre essas duas perguntas terríveis que qualquer pessoa odiaria ouvir do amante ou da amante! O seu retrato... Como amo o seu retrato! Olhando para o seu rosto paralisado no papel - você está sempre do mesmo jeito, olhando-me com aquele olhar de criança, eterno -, sinto uma alegria mansa que eu queria ter sempre. Sabe, preciso confessar, o seu retrato, em que você está ausente, me comove mais que o seu rosto, quando você está presente. A sua presença perturba o amor que sinto por você, no retrato. Se você estivesse sempre ausente, se eu tivesse somente o seu retrato, eu a amaria mais...

Resumindo: a gente ama mais na ausência que na presença. Porque o objeto ausente existe iluminado pela luz de fantasia, fora do tempo. O objeto amado ausente é um emissário da eternidade.

Havia uma casa da minha infância que eu muito amava. Sempre me lembrava dela, tinha saudades, queria voltar lá. Voltei. A casa estava lá. Mas não era a mesma. Sim, era a mesma, mas não era a casa que eu amava na minha fantasia.

Thomas Antônio Gonzaga escreveu um poema em que ele, movido pela saudade, volta aos lugares da sua infância. Volta aos mesmos lugares mas, por mais que procure, não encontra os seus lugares. Tudo está diferente. E cada estrofe termina com esse refrão: "São esses os sítios?

São esses. Mas eu o mesmo não sou...". Ao final ele recobra a lucidez e reconhece que todos os lugares amados estão nos mesmos lugares onde estavam. Então, o que mudou? "Mudaram-se meus olhos de triste que estou..."

A alma é o lugar onde estão guardadas, como se fossem quadros, as cenas que o amor tornou eternas. O retrato da amada de Cassiano Ricardo. A casa velha onde morei. Os lugares da infância de Thomas Antônio Gonzaga. De vez em quando a saudade os chama do seu esquecimento. É o que acontece com o retrato do Natal que mora na minha memória poética, que é amassado pela realidade do Natal que vai acontecer no dia marcado no calendário regressivo da minha vizinha, tão simpática e amiga...

O meu retrato de Natal, desbotado, me faz lembrar de uma expressão antiga: "a cidade adormecida". Todos dormem. Grande é o silêncio exceto pelo vento nas árvores, um latido distante de algum cão, o canto de um galo que se equivocou no horário. As estrelas velam. É uma cena de tranqüilidade. Quando se dorme, a vida passa devagar. Bachelard observa que até mesmo um criminoso adormecido provoca sentimentos de ternura. Dormindo, todos nos tornamos crianças. Hoje as cidades não dormem mais. Hoje o Natal acontece nas cidades que não dormem. Mas o meu Natal só acontece numa cidade adormecida que só existe no meu retrato...

Sugerida por
Silene Marcato

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