Alegria dissonante
por Pedro Alexandre Sanches
Integrante da comissão de frente da bossa nova, o pianista João Donato atravessa fase hiperprodutiva aos 72 anos
O veterano João Donato não se esquece de uma situação que viveu no início da carreira, quando o Brasil não antevia o estouro da bossa nova a partir de 1958. Um amigo músico fora chamado para apresentações num hotel e quis que Donato o acompanhasse ao piano.
Depois da meia-noite, o empresário garantiu o pagamento do cachê, mas pediu que eles interrompessem a apresentação. “O cantor com a voz fraquinha, eu com meus acordes dissonantes, aquilo gerou descontentamento. Naquele momento de transição, éramos tidos como uns chatos”, lembra numa tarde paulistana o autor de temas hoje considerados standards da bossa, como Bananeira, Lugar Comum e Amazonas. O amigo cantor era João Gilberto.
Juntos, os dois jovens joões perambulavam pelas noites musicais cariocas em busca de espaço e sem ter plena consciência de que batiam de frente com as convenções musicais da época. Cerca de 50 anos após o encontro e o surgimento (e, depois, a diáspora) dos principais bossa-novistas, ainda parecem filhotes de um mesmo ninho, mas ficaram diferentes, diferentes demais.
O primeiro contraste refere-se à mítica reclusão do João baiano, o Gilberto. O encontro da reportagem com o João acreano, o Donato, se desenvolve no saguão de um hotel movimentado, na calçada de uma avenida barulhenta, na fila de almoço de uma padaria self-service. Parceiro de estrelas do jazz (como Bud Shank) e da MPB (como Gilberto Gil), João Donato locomove-se com naturalidade por todos aqueles espaços públicos, sem ser abordado (ou mesmo reconhecido, talvez) por ninguém.
Embora classificado por profissionais que o rodeiam como “introspectivo” e “tímido”, estende o hábito do não-isolamento à profissão. Está em São Paulo na sexta-feira 13 para três shows com o cantor e compositor paulista Filó Machado. Nos últimos dez anos, fez discos, shows e parcerias com os instrumentistas Bud Shank, Paulo Moura e Eloir de Moraes, as cantoras Joyce, Wanda Sá, Marisa Monte, Angela Ro Ro e Maria Tita, os cantores Emílio Santiago, Martinho da Vila e João Bosco, os rappers Marcelo D2 e Marcelinho da Lua, e o filho Donatinho (um explosivo tecladista fã de música eletrônica).
“É sempre bom trabalhar em parceria, você não se limita a si mesmo, você tem o outro”, justifica, como se o que diz não fosse o óbvio deixado mais ou menos de lado por uma quantidade alarmante de músicos.
Eis outra diferença entre ele e João Gilberto, com quem compôs em 1958 duas das primeiras criações de ambos, Minha Saudade e Mambinho. O antigo parceiro há décadas lança discos esparsos e rodeados de mistério. Desde 1996, Donato colocou no combalido mercado fonográfico nada menos que 16 CDs e um DVD repleto de convidados (Donatural, de 2005), todos editados por selos independentes.
São amostras de uma produtividade caudalosa e desordenada, às vezes gravada e lançada sem grande rigor. Ora se entrega a criações inéditas e a criativos choques geracionais (como no álbum Maganarroba, de 2002, com vocais de Marisa Monte, D2, Joyce e João Bosco), ora investe em jazz artesanal (como em O Piano de João Donato, deste ano, somente ele e o instrumento).
Ainda que não escape dos círculos de redundância em que patinam a MPB, a bossa e outros guetos musicais, a hiperprodutividade de Donato edifica uma metáfora irônica em plena era do “fim do CD”, como propalam, em público ou privado, agentes da música atual.
“A música não acaba, o que acaba são os meios que a comercializam. Para mim disco nunca foi um objeto que se vende como biscoito, ‘um quilo de música’”, afirma João, na padaria de almoço por quilo, em frente a um prato farto no qual misturou sem preconceitos feijão, melancia, batata, melão, frango, mamão e farofa. “Eles dizem que é assim, que ou vende ou não vende, e se não vende não deu certo. Você era dispensado da gravadora porque não era compatível com as despesas deles.”
Donato passou por todo tipo de gravadora, desde o LP de estréia, Chá Dançante, editado pela Odeon em 1956 e assinado por “Donato e Seu Conjunto”. Ali ele, que teve no acordeom o primeiro instrumento, tocava versões sem voz de baiões de Luiz Gonzaga, sob produção do desconhecido (e nem creditado na capa) Antonio Carlos Jobim.
A Odeon comandou a revolução da bossa, mas não impediu a diáspora dos principais formuladores. Em 1959, Donato mudou-se para os Estados Unidos, onde entrou em pé de guerra com a música brasileira que chama de “samba de teleco-teco”. “Só estava lá o Bando da Lua, de Carmen Miranda, que já tinha morrido. Não me adaptei com eles, disseram que eu estava muito americanizado.”
A história repetia-se pelo avesso, pois antes Carmen é que fora tachada de “americanizada” ao pousar no Brasil num intervalo da longa estadia em Hollywood. “Falei que eles é que só tocam Tico-Tico no Fubá, e me deixaram lá. Fiquei sozinho em Los Angeles, estava encalhado. Fui fazer audições para orquestras mexicanas e cubanas.” Tocou com Tito Puente, Mongo Santamaria e Johnny Rodríguez e somou, às influências de jazz e samba, a da música cubana, que persiste até hoje na bossa desobediente que pratica.
O talento para a mistura exerce poder de sedução sobre públicos planeta afora. Entusiasmado, mas iconoclasta, ele conta da turnê recente de que participou pelo Japão, chamada 100 Golden Fingers, com dez pianistas (a maioria norte-americanos, só ele brasileiro). “É uma espécie de desfile de moda, não exatamente uma situação confortável. Eu tocava música brasileira, quebrava um pouco aquela seriedade, aquele padrão de academia. Todos são meio parecidos, meio em série.”
Instigado a fazer comparações entre o Japão e o Acre natal, saca de uma teoria “donatural” para o curioso interesse do outro lado do mundo pela música que faz: “Os japoneses são índios bem modernos. Têm características indígenas bem arraigadas, são meio acreanos, amazonenses. Tenho certeza de que todos andaram pelas mesmas aldeias originais”.
“Índio bem moderno”, Donato foi exclusivamente instrumentista até 1972, quando pela primeira vez deixou melodias e harmonias se vestirem de letras. Talvez à sombra da enorme voz pequena do outro João, nunca havia cantado. A sugestão partiu do virtuoso cantor pré-bossa-novista Agostinho dos Santos, então um exilado das paradas de sucesso. “Ele me chamou atenção que eu deveria gravar com letra, senão minhas músicas nunca seriam cantadas.”
Nasciam dois discos históricos de Donato, os hippies Quem É Quem (1973, orientado pelo colega de bossa Marcos Valle) e Lugar Comum (1975, todo em parceria com Gilberto Gil). Entre um e outro, atuou como diretor musical do disco Cantar (1974), de Gal Costa, em que o Donato compositor inseriu as célebres A Rã e Até Quem Sabe. O hábito de fazer canções tornou-se mais freqüente. A Paz ganhou letra de Gil em 1986 e foi popularizada por
Zizi Possi. E ele continua a cantar esporadicamente, com voz desajeitada, variante entre pastosa e esfarelada. É outra marca registrada do artista, quase um João Gilberto virado ao avesso.
Na rua, em disco ou no ensaio displicente com Filó Machado, Donato toca o barco despojado, tal e qual o índio acreano (ou cubano, ou norte-americano) imaginário de Lugar Comum. E fala, divertido, sobre o futuro da música e dos CDs (e sobre si): “Nunca fui um pop star, para mim o declínio dos CDs não mudou nada. A tendência da música é melhorar. Qualquer modificação é para melhor, ninguém muda para pior”.
Fonte: CartaCapital
O veterano João Donato não se esquece de uma situação que viveu no início da carreira, quando o Brasil não antevia o estouro da bossa nova a partir de 1958. Um amigo músico fora chamado para apresentações num hotel e quis que Donato o acompanhasse ao piano.
Depois da meia-noite, o empresário garantiu o pagamento do cachê, mas pediu que eles interrompessem a apresentação. “O cantor com a voz fraquinha, eu com meus acordes dissonantes, aquilo gerou descontentamento. Naquele momento de transição, éramos tidos como uns chatos”, lembra numa tarde paulistana o autor de temas hoje considerados standards da bossa, como Bananeira, Lugar Comum e Amazonas. O amigo cantor era João Gilberto.
Juntos, os dois jovens joões perambulavam pelas noites musicais cariocas em busca de espaço e sem ter plena consciência de que batiam de frente com as convenções musicais da época. Cerca de 50 anos após o encontro e o surgimento (e, depois, a diáspora) dos principais bossa-novistas, ainda parecem filhotes de um mesmo ninho, mas ficaram diferentes, diferentes demais.
O primeiro contraste refere-se à mítica reclusão do João baiano, o Gilberto. O encontro da reportagem com o João acreano, o Donato, se desenvolve no saguão de um hotel movimentado, na calçada de uma avenida barulhenta, na fila de almoço de uma padaria self-service. Parceiro de estrelas do jazz (como Bud Shank) e da MPB (como Gilberto Gil), João Donato locomove-se com naturalidade por todos aqueles espaços públicos, sem ser abordado (ou mesmo reconhecido, talvez) por ninguém.
Embora classificado por profissionais que o rodeiam como “introspectivo” e “tímido”, estende o hábito do não-isolamento à profissão. Está em São Paulo na sexta-feira 13 para três shows com o cantor e compositor paulista Filó Machado. Nos últimos dez anos, fez discos, shows e parcerias com os instrumentistas Bud Shank, Paulo Moura e Eloir de Moraes, as cantoras Joyce, Wanda Sá, Marisa Monte, Angela Ro Ro e Maria Tita, os cantores Emílio Santiago, Martinho da Vila e João Bosco, os rappers Marcelo D2 e Marcelinho da Lua, e o filho Donatinho (um explosivo tecladista fã de música eletrônica).
“É sempre bom trabalhar em parceria, você não se limita a si mesmo, você tem o outro”, justifica, como se o que diz não fosse o óbvio deixado mais ou menos de lado por uma quantidade alarmante de músicos.
Eis outra diferença entre ele e João Gilberto, com quem compôs em 1958 duas das primeiras criações de ambos, Minha Saudade e Mambinho. O antigo parceiro há décadas lança discos esparsos e rodeados de mistério. Desde 1996, Donato colocou no combalido mercado fonográfico nada menos que 16 CDs e um DVD repleto de convidados (Donatural, de 2005), todos editados por selos independentes.
São amostras de uma produtividade caudalosa e desordenada, às vezes gravada e lançada sem grande rigor. Ora se entrega a criações inéditas e a criativos choques geracionais (como no álbum Maganarroba, de 2002, com vocais de Marisa Monte, D2, Joyce e João Bosco), ora investe em jazz artesanal (como em O Piano de João Donato, deste ano, somente ele e o instrumento).
Ainda que não escape dos círculos de redundância em que patinam a MPB, a bossa e outros guetos musicais, a hiperprodutividade de Donato edifica uma metáfora irônica em plena era do “fim do CD”, como propalam, em público ou privado, agentes da música atual.
“A música não acaba, o que acaba são os meios que a comercializam. Para mim disco nunca foi um objeto que se vende como biscoito, ‘um quilo de música’”, afirma João, na padaria de almoço por quilo, em frente a um prato farto no qual misturou sem preconceitos feijão, melancia, batata, melão, frango, mamão e farofa. “Eles dizem que é assim, que ou vende ou não vende, e se não vende não deu certo. Você era dispensado da gravadora porque não era compatível com as despesas deles.”
Donato passou por todo tipo de gravadora, desde o LP de estréia, Chá Dançante, editado pela Odeon em 1956 e assinado por “Donato e Seu Conjunto”. Ali ele, que teve no acordeom o primeiro instrumento, tocava versões sem voz de baiões de Luiz Gonzaga, sob produção do desconhecido (e nem creditado na capa) Antonio Carlos Jobim.
A Odeon comandou a revolução da bossa, mas não impediu a diáspora dos principais formuladores. Em 1959, Donato mudou-se para os Estados Unidos, onde entrou em pé de guerra com a música brasileira que chama de “samba de teleco-teco”. “Só estava lá o Bando da Lua, de Carmen Miranda, que já tinha morrido. Não me adaptei com eles, disseram que eu estava muito americanizado.”
A história repetia-se pelo avesso, pois antes Carmen é que fora tachada de “americanizada” ao pousar no Brasil num intervalo da longa estadia em Hollywood. “Falei que eles é que só tocam Tico-Tico no Fubá, e me deixaram lá. Fiquei sozinho em Los Angeles, estava encalhado. Fui fazer audições para orquestras mexicanas e cubanas.” Tocou com Tito Puente, Mongo Santamaria e Johnny Rodríguez e somou, às influências de jazz e samba, a da música cubana, que persiste até hoje na bossa desobediente que pratica.
O talento para a mistura exerce poder de sedução sobre públicos planeta afora. Entusiasmado, mas iconoclasta, ele conta da turnê recente de que participou pelo Japão, chamada 100 Golden Fingers, com dez pianistas (a maioria norte-americanos, só ele brasileiro). “É uma espécie de desfile de moda, não exatamente uma situação confortável. Eu tocava música brasileira, quebrava um pouco aquela seriedade, aquele padrão de academia. Todos são meio parecidos, meio em série.”
Instigado a fazer comparações entre o Japão e o Acre natal, saca de uma teoria “donatural” para o curioso interesse do outro lado do mundo pela música que faz: “Os japoneses são índios bem modernos. Têm características indígenas bem arraigadas, são meio acreanos, amazonenses. Tenho certeza de que todos andaram pelas mesmas aldeias originais”.
“Índio bem moderno”, Donato foi exclusivamente instrumentista até 1972, quando pela primeira vez deixou melodias e harmonias se vestirem de letras. Talvez à sombra da enorme voz pequena do outro João, nunca havia cantado. A sugestão partiu do virtuoso cantor pré-bossa-novista Agostinho dos Santos, então um exilado das paradas de sucesso. “Ele me chamou atenção que eu deveria gravar com letra, senão minhas músicas nunca seriam cantadas.”
Nasciam dois discos históricos de Donato, os hippies Quem É Quem (1973, orientado pelo colega de bossa Marcos Valle) e Lugar Comum (1975, todo em parceria com Gilberto Gil). Entre um e outro, atuou como diretor musical do disco Cantar (1974), de Gal Costa, em que o Donato compositor inseriu as célebres A Rã e Até Quem Sabe. O hábito de fazer canções tornou-se mais freqüente. A Paz ganhou letra de Gil em 1986 e foi popularizada por
Zizi Possi. E ele continua a cantar esporadicamente, com voz desajeitada, variante entre pastosa e esfarelada. É outra marca registrada do artista, quase um João Gilberto virado ao avesso.
Na rua, em disco ou no ensaio displicente com Filó Machado, Donato toca o barco despojado, tal e qual o índio acreano (ou cubano, ou norte-americano) imaginário de Lugar Comum. E fala, divertido, sobre o futuro da música e dos CDs (e sobre si): “Nunca fui um pop star, para mim o declínio dos CDs não mudou nada. A tendência da música é melhorar. Qualquer modificação é para melhor, ninguém muda para pior”.
Fonte: CartaCapital
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