Ariano Suassuna e o movimento Manguebit
por Anna Paula de Oliveira*
Especial para o Jornal Musical
Em janeiro de 1995, o escritor Ariano Suassuna tomou posse do cargo de Secretário de Cultura do estado de Pernambuco. Sua proposta para a política cultural do governo Miguel Arraes previa o apoio às manifestações populares tradicionais e o financiamento de espetáculos que tivessem essas manifestações como referência. Suassuna programou ainda a criação de vários grupos artísticos e contou com a colaboração de antigos aliados do Movimento Armorial, formado por ele na década de 1970 com o intuito de fundar uma arte erudita baseada na estética popular. Os critérios que deveriam ser adotados pela Secretaria iam ao encontro das intenções armoriais e foram explicitados no polêmico Projeto cultural Pernambuco-Brasil (CEPE Editora, 1995), de autoria de Suassuna. O projeto determinava que, para obter a adesão da Secretaria de Cultura, o artista e o espetáculo deveriam se enquadrar no que o Secretário entendia como "expressão popular" (tradicional, nacional e autêntica), ou se inspirar nela para criar uma arte comprometida com a cultura local.
Ao mesmo tempo, uma nova movimentação, pop e urbana, tomava conta da capital pernambucana. Uma reunião de jovens artistas e produtores atuantes nas mais diversas áreas e empenhados em agitar a vida cultural da cidade. Tratava-se dos mangueboys e manguegirls, inventores do Manguebit, que apresentaram suas propostas no release intitulado Caranguejos com cérebro, impresso no encarte do CD Da lama ao caos (Sony Music, 1994), primeiro álbum da banda Chico Science & Nação Zumbi (na foto acima, o líder do grupo, que completou em fevereiro 10 anos de morte). Este texto compara a fertilidade dos manguezais com a riqueza cultural encontrada na cidade do Recife, alerta para as condições de degradação social e ecológica na qual se encontrava a "quarta pior cidade do mundo pra se viver", e prescreve um choque de energia criativa para recuperar a auto-estima de seus moradores.
O Manguebit havia iniciado sua história no início dos anos 90, e os homens-caranguejos começaram a botar as patinhas pra fora do Recife ainda em meados da década. Em 1994, as principais bandas da cena gravaram seus primeiros álbuns e estavam sendo requisitadas no Sudeste do país e no exterior. Chico e a Nação entoavam um maracatu envenenado por guitarras elétricas e efeitos eletrônicos e isso fez com que o Secretário Estadual de Cultura (na foto ao lado) manifestasse seu desconforto com o que ouvia. "No que uma coisa ruim como o rock pode valorizar uma coisa boa como o maracatu?", dizia Suassuna (Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, 2000). O escritor já alertava, não iria dispensar a verba reservada à Secretaria aos projetos do Mangue. "Eu não vou dar apoio a um movimento que já tem apoio de outras coisas, deixando de lado a cultura popular, que está aí se acabando" (Diário de Pernambuco, 09/07/1995). Sua postura armorial não toleraria um maracatu profanado, deturpado, desviado da "pureza original" e rendido aos apelos da indústria da cultura.
Quando se evoca o armorial, a imagem que vem à tona é a de uma arte movida pelo propósito de garantir a sobrevivência das tradições. Seus promotores se guiaram pelo ideal sistematizado por Suassuna no manifesto de 1974 - intitulado O movimento Armorial -, que consistia em propor uma estética nacional autônoma. Neste manifesto Suassuna defende que as formas da cultura popular tradicional - como a poética da literatura de cordel, as imagens que ilustram os folhetos e a sonoridade dos instrumentos que acompanham sua leitura -, deveriam orientar a criação de uma linguagem tipicamente brasileira. Só assim a arte conseguiria expressar nossa memória cultural e contribuiria para a construção de uma nação independente. Por isso o programa da Secretaria previa o fomento e a valorização das tradições populares e da arte erudita inspirada nestas tradições.
Essa afirmação de uma cultura nacional é reconhecida como uma das principais tendências da arte produzida no Brasil até os anos 60. No caso do Movimento Armorial, as representações nacionais identificadas nas criações populares do sertão nordestino unem-se às referências da cultura clássica européia para gerar uma obra peculiar. Partindo dessa idéia, Ariano Suassuna concebe o Quinteto Armorial como expressão musical de seus princípios estéticos.
O Quinteto era composto por artistas de formação acadêmica e tinha a intenção de criar uma música de câmara marcada pela melodia dos ponteios, loas e cantigas populares. Originalmente os músicos do grupo utilizaram instrumentos eruditos, logo substituídos, por sugestão de Suassuna, pelos instrumentos populares, mais apropriados para reproduzir a sonoridade que ele buscava. Com a pesquisa de instrumentos e de timbre, a intenção do Quinteto parecia ser de aproximar-se da "essência" da musicalidade popular, e não de realizar experimentalismos modernos (abaixo, à direita, a bandeira do movimento)
Entretanto, o contexto contemporâneo apresenta novas formas de diálogo entre as diversas matrizes culturais que compõem nossa sociedade. Em se tratando de música, as colagens sonoras, as intervenções eletrônicas e as misturas de gênero são algumas das configurações assumidas por este intercâmbio. A experiência urbana e a tecnologia musical ofereceram às bandas do Manguebit a possibilidade de citar performances pré-gravadas, reproduzir trechos musicais ou sonoridades características de variadas expressões e ambiências, adotar entoações, utilizar falas, sinais ou ruídos capturados no cotidiano da cidade.
O Mangue absorve e reprocessa a arte das revistas em quadrinhos, os recursos estéticos e políticos do hip-hop, as estratégias publicitária do punk, as possibilidades da tecnologia musical, o colorido das roupas compradas nas feiras, a inventividade dos pregões de camelô, a força do maracatu, a malícia e a ironia das emboladas, tudo a favor uma arte pop criativa. E é com esta movimentação que o político Ariano Suassuna se depara ao tentar por em prática, na capital pernambucana, um projeto cultural descontextualizado.
Pensando na cidade do Recife, podemos afirmar que o hardcore é tão tradutor da sua experiência cultural quanto o maracatu ou a embolada. Pensando nas grandes cidades do Terceiro Mundo, vemos crescer, entre jovens artistas, mais marcadamente entre os dedicados à música, a necessidade de expressar uma arte pop autônoma, neste caso, criada pela apropriação da música "estrangeira" e pela fusão desta sonoridade com os ritmos tradicionais locais. Esta outra realidade exige a inauguração de uma nova sensibilidade política, que consiga apreender melhor a multiplicidade e a complexidade das culturas contemporâneas.
Por um outro caminho, Ariano Suassuna fundou seu programa na oposição entre sertão e litoral e valorizou o interior do Nordeste como espaço de manifestação da cultura popular mais "autêntica". Para Suassuna, as tradições sertanejas guardam as raízes mais profundas da nossa identidade cultural, por se encontrarem supostamente livres da "influência perniciosa" da cultura de massas que impera nos centros urbanos. Mesmo assim, a região metropolitana abriga manifestações por ele reconhecidas como legítimas, como o maracatu, por exemplo. E o programa da Secretaria Estadual de Cultura para a cidade do Recife consistia principalmente em apoiar a perpetuação destes folguedos em seus moldes tradicionais, livrando-os da ameaça de extinção que a indústria cultural apresentava. Daí a resistência do escritor em aceitar uma música que segundo ele descaracterizava as "expressões originais do povo brasileiro", contaminando o maracatu com rock e o rap, e transformando-o em mais um dos produtos da cultura industrial.
Sendo que, ao contrário do que previa Suassuna, o Manguebit despertou o interesse da juventude para as manifestações populares tradicionais dentro e fora de Pernambuco, além de chamar atenção da imprensa cultural e do público de música pop para as antigas agremiações de maracatu. Subverteu a idéia de um Nordeste puramente agrário e arcaico, afirmando a multiplicidade de formas culturais atuantes em uma cidade periférica como Recife. Expressou a coexistência entre tradição e modernidade e se apropriou da vitalidade das manifestações populares.
O termo Manguebit nasceu justamente do interesse de seus fundadores em exprimir a convivência cotidiana entre o local e o global na capital pernambucana. Os manguezais são imagem marcante na paisagem recifense, e o mangue representa a fertilidade cultural da cidade na metáfora criada pelos "caranguejos com cérebro". Já o bit, simboliza a tecnologia que, manipulada pelos mangueboys, trabalhou em prol da inventividade artística. A imprensa acabou rebatizando esta movimentação cultural como Manguebeat, o que alterou o sentido original do termo. O "beat" reduz a experiência do Mangue à sua expressão musical e define esta música como um gênero ou um ritmo único. Sendo que a proposta inicial foi de fundar uma cena cultural que permitisse a manifestação dos mais diversos campos e estilos de arte, e não de delimitar um formato estético no qual os participantes teriam que se enquadrar. Diferente de muitos dos movimentos culturais que conhecemos, que se caracterizam por alguma forma peculiar de expressão, o Manguebit distinguiu-se pela pluralidade da arte que produzia e por sua proximidade crítica com a indústria cultural. (Na foto acima, a banda Devotos do Ódio, representante do hardcore pernambucano que ganhou projeção com o advento do Manguebit.)
Como foi visto, ao mesmo tempo em que surgem novas experiências na música pop, cresce, em todo o Brasil, um movimento forte de afirmação de "raízes" que defende a preservação das expressões tradicionais da cultura popular. Não estamos querendo negar aqui que as verbas públicas destinadas à cultura devem privilegiar as expressões que não se adequam aos moldes do mercado e que, portanto, não conseguem se sustentar sem o apoio do Estado. Sabemos também da importância da valorização do popular como alternativa à cultura hegemônica. O que o Manguebit pôs em questão, no estado de Pernambuco, foi os critérios adotados pela Secretaria Estadual de Cultura, que se basearam unicamente na tradição quando deviam atentar para a representatividade social das manifestações culturais. Hoje em dia tornou-se importante que as políticas direcionadas para os centros urbanos levem em consideração tanto a pluralidade e os hibridismos presentes nas cidades quanto a condição massiva da produção cultural. Mais do que lutar contra a proliferação dos meios modernos de criação e difusão de arte, deve-se buscar a democratização do acesso a estes veículos.
Passada mais de uma década da criação do Manguebit, podemos dizer que a experiência também foi válida na medida em que estimulou a criação de programas de rádio e televisão, produtoras de vídeo e cinema, festivais, selos e gravadoras independentes, cooperativas de moda, sites, revistas e fanzines. Os mangueboys movimentaram a vida cultural do Recife e deram visibilidade às mais variadas manifestações, tanto tradicionais quanto pop. Com o passar do tempo e o surgimento de novas gerações de artistas, a idéia de uma cooperativa cultural identificada como Manguebit foi se diluindo, o que é natural e até desejável. Esperamos, agora, que esta inquietação se perpetue como atitude.
*Doutoranda em Letras e autora da dissertação de mestrado O encontro do Velho do Pastoril com Mateus na Manguetown ou As tradições populares revisitadas por Ariano Suassuna e Chico Science.
quinta-feira, 15 de março de 2007
O Dia em que Suassuna enfrentou os Caranguejos com Cérebro
Fonte: JornalMusical
Postado por Música e Poesia BR às 21:59
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