Poetas Lusófonos - Moçambique - Rui Knopfli (1932 - 1998)
de "Memória Consentida"
Gritarás o meu nome
Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz será
como a do vento sobre a areia:
um som inútil de encontro ao silêncio.
Não responderei ao teu apelo,
embora ardentemente o deseje.
O lugar onde moro é um obscuro
lugar de pedra e mudez:
não há palavras que o alcancem.
gelam-lhe os gritos por fora.
Serei como as areias que escutam
o vento e apenas estremecem.
Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz ouvirá
o próprio som sem entender,
como o vento, o beijo da areia.
Teu grito encontrará somente
a angústia do grito ampliado,
vento e areia. Gritarás o meu
nome em ruas desertas.
Sem nada de meu
Dei-me inteiro. Os outros
fazem o mundo (ou crêem
que fazem). Eu sento-me
na cancela, sem nada
de meu e tenho um sorriso
triste e uma gota
de ternura branda no olhar.
Dei-me inteiro. Sobram-me
coração, vísceras e um corpo.
Com isso vou vivendo.
Mania do suicídio
Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.
Pátria
Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal
e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios
entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso
obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma
remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.
De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória
que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo entrasse
e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.
Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial.
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria
para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.
de Memória Consentida, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1982.
Rui Knopfli nasceu em Inhambane, em 1932 e viveu em Moçambique até 1975. Foi delegado de propaganda médica, poeta, crítico literário e de cinema. Opositor do regime colonialista, colaborou activamente na imprensa independente, casos de A Tribuna e A Voz de Moçambique. Lançou, com João Pedro Grabato Dias, os cadernos de poesia Caliban (1971-72), que reuniram colaboradores como Jorge de Sena, Herberto Helder, António Ramos Rosa, Fernando Assis Pacheco, José Craveirinha e Sebastião Alba. Dirigiu o caderno Letras & Artes (1972-75), da revista Tempo. Traduziu e publicou poetas como T. S. Eliot, Blake, Sylvia Plath, Kavafis, Dylan Thomas, Yeats, Robert Lowell, Pound, René Char, Apollinaire, Octavio Paz e Reverdy. Demite-se do jornal A Tribuna , por objecções de natureza ética, e deixa Moçambique em Março de 1975. Em Julho do mesmo ano radica-se em Londres onde exerceu o cargo de conselheiro de imprensa (1975-97) junto da Embaixada de Portugal na capital britânica. Em 1984 recebeu o prémio de poesia do PEN Clube. Em Portugal tem colaboração dispersa no JL e nas revistas Colóquio-Letras e Ler. Encontra-se representado em algumas antologias, designadamente em Contemporary Portuguese Poetry (Manchester, 1978) e no The Penguin Book of Southern African Verse (Londres, 1989).. Em Bruxelas foi publicado Le Pays des Autres (1995), volume que colige os três primeiros livros. A sua obra é fortemente influenciada pelas suas vivências europeias e africanas, revelando uma forte originalidade e um tom eminentemente coloquial. Morreu em Lisboa em 1998. Em 2003, a empresa nacional casa da moeda, publicou uma antologia dos seus poemas, intitulada “Obra Poética”.
Bibliografia: O País dos Outros (1959), Reino Submarino (1962), Máquina de Areia (1964), Mangas Verdes com Sal (1969), A Ilha de Próspero (1972), O Escriba Acocorado (1978), Memória Consentida (1982), O Corpo de Atena (1984) e O monhé da cobras (1997).
2 comentários:
olá Yerko,
nóssa como a vida é engraçada .. ou melhor sábia!
A pessoa pode dar voltas e voltas, tentando procurar diversos destinos.. mau sabemos que quando a arte nos pega.. ela não larga nunca mais ..
Então eu estava procurando na net algo sobre musica e poesia (pq estou montando um grupo de musica, poesia e teatro)..dai apareceu seu blogger e eu achei muito interessante... tem muitas informações que me serão úteis..
Há! vc tem algo sobre cordel?
Bju,
Ana Catrin. :)
Ana, sobre literatura de cordel te recomendo dar uma olhada em http://www.dominiopublico.gov.br , lá tem diversos livros completos pra baixar, entre eles, livros de cordel.
Beijão!
Yerko Herrera.
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